"Isto não é uma fotografia como as outras é um desses postais de pacotilha e preto e branco que se compram em Sintra com o Palácio da Vila ou Monserrate ou o Castelo (...)que meu pai não sei porque meteu no álbum que me emprestou num domingo em que fui ao Jardim Constantino para evitar que a minha mãe continuasse a sarrazinar-me o juízo ao telefone na choradeira habitual(...)"
António Lobo Antunes [01]
No período que antecedeu a Revolução Francesa, Henry Isnard afirmou que "fazer um pacto social significa redigir o ato através do qual um determinado número de pessoas entra em acordo para formar uma associação", ao passo que "fazer uma constituição, ao contrário, significa apenas determinar a forma de governo ou a configuração dos poderes que deve reger a sociedade que é formada. Um cria a sociedade, o outro a organiza". [02]
Pelo conceito de Isnard, de um acordo ou pacto emergiria o poder legitimamente constituído. O pacto social seria, então, um estágio anterior à elaboração de uma Constituição.
Essa relação entre o clamor social e a Constituição pôde ser vista a partir da convocação dos Estados Gerais, em 1789, quando a pressão burguesa pelo fim dos privilégios de que gozavam os nobres e o clero deixou de ser uma reivindicação meramente econômica para vir a ser efetivamente política.
As reivindicações burguesas passaram a recair sobre a composição dos Estados Gerais. Nesse sentido, "o Abade de Sieyès, que mais tarde proporia que os Estados Gerais se transformassem em Assembléia Constituinte, denunciava que duzentos mil privilegiados franceses eram representados pelas duas ordens (nobreza e clero), contra o Terceiro Estado, que representava vinte e cinco a vinte e seis milhões de pessoas. Em 27 de dezembro, o Rei autoriza a duplicação do número de representantes do Terceiro Estado, nos Estados Gerais, convocados para o dia 1º de maio de 1789. A burguesia obtém, desse modo, o dobro dos representantes, isto é, 600 membros contra 300 da nobreza e 300 do clero." [03]
Quando os Estados Gerais foram então reunidos, a maioria burguesa passou a defender, invocando a titularidade originária do poder constituinte, sua transformação em uma Assembléia Constituinte, rompendo a ordem jurídica e política anterior, rompendo os paradigmas do Antigo Regime.
As lições de Hobbes, Rousseau e Locke serviram de base para a teoria de poder constituinte desenvolvida por Sieyès, que significa um rompimento com a ordem jurídica, em busca das ilimitadas possibilidades de um mundo novo, uma nova Constituição.
Daí porque assiste razão ao jurista alemão Friedrich Müller [04], quando se utiliza do termo "gewalt" ao tratar do poder constituinte do povo, termo esse que possui uma dupla acepção, podendo ter sentido de violência ou poder.
O poder constituinte originário, até mesmo por ser um poder anterior à normatização do Estado, à sua própria constituição, independe da formalização de uma Assembléia Constitucional para se manifestar, independe da própria elaboração de um texto constitucional, pois a ele é anterior. A origem do poder não é formal, mas sim material, mas sem a sua exteriorização formal se perde, sendo apenas um fugaz momento histórico-social.
Na lição de Müller, "a constituição de si mesmo não se faz por meio da redação e subscrição de um papel chamado ‘Constituição’. Uma associação se constitui realmente pela práxis, não pelo diploma; não por meio da entrada em vigor, mas pela vigência: diariamente, na duração histórica.". [05]
A ruptura, a autonomia do poder constituinte originário acaba por equipará-lo à revolução, o que traz a questão para um grande paradoxo, se analisarmos as previsões constitucionais atinentes ao "Estado de Exceção". Visando proteger o Estado Constitucional, o legislador [06] constituinte prevê situações que alteram a anormalidade da ordem constitucional, revoluções ou movimentos bélicos, políticos, sociais, que desafiam a estrutura do Estado legitimamente constitucional.
Mas como mensurar essa legitimidade, pois não é o povo o titular do poder constituinte originário? Se esse povo desafiar o Estado Constitucional por meio de uma Revolução Popular, ainda que pacificamente constituída, estará afrontando a ordem Constitucional presente, podendo sofrer represálias mediante a restrição a direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que estará exercendo um novo poder constituinte originário.
Quando uma ordem constitucional deixa de ser legítima, passando a ser apenas legal? Até que ponto a sociedade enfrenta momentos de ruptura identificáveis a ensejarem o advento de uma nova Constituição?
Esse é o grande problema a ser enfrentado quando tratamos da discussão sobre a Constituição Européia, ou das reformas constituintes propostas na América do Sul atualmente.
Poderíamos chamar constituinte o órgão estabelecido por Estados Soberanos para a elaboração de uma Carta Constituinte a ser respeitada por todo o povo pertencente a estes Estados Soberanos? Ora, é o povo o titular do poder constituinte originário, mas se esse povo elege representantes, que por sua vez escolhem representantes para compor uma Assembléia Constituinte supra-nacional, fragmenta-se esse poder de tal forma que a representatividade da representação está comprometida.
Invocando mais uma vez a lição de Chignola:
"Por esses trilhos, a idéia do poder constituinte é progressivamente absorvida na máquina da representação. De motivo originário, onipotente temporalidade do pacto, o poder constituinte – como se quisesse manter intocada a sua excepcionalidade absoluta, o seu caráter de irredimível eventualidade – é reduzido a simples norma de produção do direito e internalizado no sistema dos poderes constituídos." [07].
A absorção do poder constituinte pela falta de representatividade do poder constituído, que pode ser vista em sucessivas reformas constitucionais que alteraram a proposta original da Constituição de 1988, sem que houvesse qualquer indício de clamor social nesse sentido, permitiu a entrega de um maior poder ao chamado poder constituinte reformador, que muitas vezes se afasta da mutação constitucional, entendida como modificação não formal desse poder originário.
Assim, verifica-se que a manifestação do poder constituinte originário é um verdadeiro paradoxo, pois, à medida em que surge do clamor social inicial e legítimo, exterioriza-se por meio do sistema representativo, estando, já nesse momento, constituído.
Daí porque é extremamente complexa a análise da legitimidade ou não das recentes propostas de reforma constitucional, pois está essa legitimidade relacionada ao sentimento de criação de uma nova ordem constitucional emanado do povo, utilizado o binômio de poder-violência (no sentido de ruptura) proposto por Müller.
Invocar o poder constituinte originário para a manutenção de uma relação de poder, ou para a perpetuação do poder, contraria a própria essência de ruptura desse poder constituinte, o que deslegitimaria uma convocação constituinte para a aprovação popular da falta de alternância no poder, princípio da República.
Assim, parece importante analisar as alterações não formais da constituição para se saber se coexistem ou não com sua proposta inicial, o que indicaria uma necessidade ou não de ruptura.
Cabendo ao Judiciário a defesa da constituição, caberia a ele a análise da situação abstrata imposta, razão pela qual caberia controle de constitucionalidade de propostas de convocação de assembléia constituinte, verdadeiro paradoxo advindo do conflito entre uma ordem constitucional posta e uma nova, ainda proposta.
A própria dificuldade em indicar a necessidade do surgimento de um poder constituinte originário transfere a importância deste poder para a questão da manutenção desse poder constituinte no curso de uma ordem constitucional por ele imposta. Portanto, pode ser transposta para a ordem constitucional atual a lição de Chignola [08], analisando os desdobramentos da Revolução Francesa, propondo um novo foco de debate para o poder constituinte: "O debate se deslocará para a questão da organização dos poderes e para o equilíbrio constitucional a ser produzido entre eles".
O foco deixa de ser a questão de o poder constituinte ser anterior à ordem constitucional, mas sim a forma como esse poder constituinte continuará resguardado ao longo da vigência desse texto constitucional dele emanado.
Nesse sentido, o poder constituinte originário passou a ser representado por vezes em maior grau pela jurisdição constitucional do que por meio de reformas do texto constitucional, até mesmo através do importante papel político exercido pelo Supremo Tribunal Federal [09].
Quando o Tribunal Constitucional exerce a função de guardião da Constituição, transcende a esfera jurídica de atuação, até mesmo pelo fato de a carta constitucional ser um retrato político, social, econômico e jurídico do povo e das relações de poder, entre poderes constituintes e constituídos, guardando princípios instituidores do Estado Democrático de Direito.
Invocando a lição de Seabra Fagundes [10]:
"Quando se diz que o Supremo Tribunal Federal exerce função política, fala-se o que é óbvio. Porque funções políticas exercem todos os órgãos de cúpula do Poder Público(...)".
O papel político exercido pelo judiciário na defesa da Constituição está adstrito à defesa do próprio poder constituinte, ainda que por um poder constituído. Assim, não assiste razão à contradição apontada por Schmitt [11], quando assevera que "uma expansão ilimitada da justiça não transformaria o Estado em jurisdição, mas sim, inversamente, os tribunais em instâncias políticas. Isso não jurisdicizaria a política, mas sim politizaria a justiça. Justiça constitucional seria então uma contradição em si mesma".
A importância da jurisdição constitucional está presente nesse binômio político-jurídico exercido pelo Judiciário, que por muitas vezes superará o papel preponderantemente político do Legislativo (que possui maior discricionariedade para afastar-se da normatividade da constituição, e com ela do poder constituinte originário). Cabe a invocação da lição do italiano Mauro Cappelletti [12]:
"(...) Quando o juiz é livre para basear as próprias decisões em preceitos vagos e não escritos de eqüidade, sua atividade não pode ser diferenciada da do legislador, no que concerne aos seus limites substanciais. E até a atividade do juiz vinculado à lei, aos precedentes, ou a ambos dificilmente pode ser diferenciada do ponto de vista de seus limites substanciais, da do legislador, cujo poder de criação do direito esteja sujeito aos vínculos ditados por uma constituição escrita e pelas decisões da justiça constitucional. Deste ponto de vista, a única diferença possível entre jurisdição e legislação não é, portanto, de natureza, mas sobretudo de freqüência ou quantidade, ou seja, de grau, consistindo na maior quantidade e no caráter usualmente mais detalhado e específico das leis ordinárias e dos processos judiciários ordinários, em relação às normas constitucionais – usualmente contidas em textos sucintos e formuladas em termos mais vagos – como da mesma forma relativamente às decisões da justiça constitucional. Daí decorre que o legislador se depara com limites substanciais usualmente menos freqüentes e menos precisos que aqueles com os quais, em regra, se depara o juiz: do ponto de vista substancial, ora em exame, a criatividade do legislador pode ser, em suma, quantitativamente mas não qualitativamente diversa da do juiz.(...)".
A autonomia inicial do poder constituinte, portanto, não permite a sua banalização por meio de alterações constitucionais formais que se afastam dos anseios de um povo titular daquele poder. O seu caráter de violência-poder não permite essa banalização, pois os princípios e garantias resguardados pelo texto constitucional retratam o equilíbrio entre o poder constituinte e o poder constituído, não cabendo ao último usurpar sua representatividade visando à manutenção de poderes políticos com base em supostos anseios populares. Deve a discussão acerca do poder constituinte transcender o campo político permeado por mesquinhas disputas de poder e interesse entre oposição e governo, razão pela qual mais uma vez destaco as palavras de Luis Roberto Barroso [13], na nota à 2ª edição de seu livro:
"Escrevo essa nota no momento em que o país enfrenta uma grave crise política, motivada pela reprodução atávica de alguns vícios políticos nacionais. Ainda assim, a Constituição reina soberana e ninguém cogitou de qualquer solução que não seja o respeito à legalidade constitucional. Nessa matéria – ao menos nessa- percorremos e superamos os ciclos do atraso. Na vida sempre há o que comemorar".
Notas
01 ANTUNES, António Lobo. Eu hei-de amar uma pedra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 157.
02 CHIGNOLA, Sandro, Constituição e limitações do poder, in DUSO, Giuseppe (org). O Poder – História da Filosofia Política Moderna. Petrópolis(RJ): Vozes, 2005, p. 201.
03 STRECK, Lenio Luiz & MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência Política e Teoria do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 53.
04 MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo. Trad. Peter Neuman. São Paulo: RT, 2004, p. 15.
05Idem, ibidem, p. 26.
06 Note-se o uso do termo legislador, o que encerra um paradoxo no próprio sentido do poder constituinte originário, pois ao serem eleitos legisladores, deixa o poder de ser constituinte para ser constituído.
07Op. Cit., p. 204.
08Idem, ibidem, p. 205.
09 "Na perspectiva dos juristas e legisladores europeus, o juízo de constitucionalidade acerca de uma lei não tinha natureza de função judicial, operando o juiz constitucional como legislador negativo, por ter o poder de retirar uma norma do sistema. E vem daí o segundo fundamento para a decisão de se criar um órgão que não integrasse a estrutura do Poder Judiciário: o tribunal constitucional não deveria ser composto por juízes de carreira, mas por pessoas com perfil mais próximo ao de homens de Estado." BARROSO, Luis Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 48.
10 FAGUNDES, Miguel Seabra. A Função Política do Supremo Tribunal Federal. Revista dos Tribunais vol. 49/50, p. 08.
11 SCHMITT, Carl, O Guardião da Constituição, in Barroso, Op. Cit., p.52.
12 CAPPELLETTI, Mauro, Juízes Legisladores? Trad. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 26/27.
13 Op. Cit., p. XVII.