Capa da publicação Neoconstitucionalismo: justificativa e consequência
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O neoconstitucionalismo:

a exigência histórica, a justificativa filosófica e a consequência teórica

30/11/2023 às 18:07
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Apesar das críticas, a criação e aplicação do direito sob a perspectiva do pós-positivismo e, consequentemente, do neoconstitucionalismo, apresenta-se como a melhor saída para os anseios democráticos que devem marcar a contemporaneidade.

RESUMO: Os arbítrios estatais da pré-modernidade fizeram eclodir uma ordem jurídica fundamentada no primado da lei, na segurança jurídica, no afastamento dos valores e no papel meramente político das Constituições.Os paradigmas clássicos desse momento, conhecido como constitucionalismo moderno, acabaram traindo os seus objetivos iniciais ao legitimarem as atrocidades do século XX, que dizimaram vidas, com o aval das inquestionáveis leis. O Neoconstitucionalismo, que teve a Segunda Guerra Mundial e a Ditadura Militar como referencias históricos, surge com a legitimação Pós-positivista, buscando dar ao Direito um caráter Ético. Os sistemas jurídicos, assim, reconhecem o papel normativo dos princípios constitucionais, a normatividade das Constituições, o que levou a diversas consequências, como a expansão da jurisdição constitucional e o surgimento de um novo paradigma interpretativo, em âmbito constitucional.

Palavras-chave: Neoconstitucionalismo; Pós-positivismo; Interpretação constitucional; Constituição.

 

1.     Introdução

Discute-se, na doutrina brasileira e internacional, a existência de um novo momento constitucional, a que se convencionou chamar de Neoconstitucionalismo. Segundo seus defensores, trata-se, como se infere do nome, de um novo constitucionalismo, isto é, de um conjunto de premissas que, alterando substancialmente os paradigmas do constitucionalismo clássico, busca dar resposta aos anseios sociais da Pós-Modernidade.

O objeto deste artigo é, portanto, as principais motivações e características deste novo momento constitucional. Para tanto, buscaremos compreender, inicialmente, a construção do Constitucionalismo, analisando os aspectos da conjuntura da Modernidade que tornaram necessárias a imposição de uma ordem jurídica que submetesse a atuação estatal ao crivo da lei.

Em seguida, adentraremos na discussão do Neoconstitucionalismo propriamente dito, o que faremos em três partes: na primeira, buscaremos as raízes históricas desse novo paradigma constitucional, com o fito de justificar social e politicamente a necessidade de transpor os limites do constitucionalismo clássico e sua legitimação positivista; em seguida, é importante perceber a reviravolta jusfilosófica, consubstanciada na substituição do Pós-positivismo ao positivismo jurídico puro; por fim, apontaremos as consequências desse processo para a aplicação do direito constitucional, em termos de teoria jurídica.

A partir dessa reflexão, entendemos ser possível a compreensão qualitativa dos caracteres diferenciadores do Neoconstitucionalismo, entendido como mais um passo no processo histórico da Teoria Constitucional e que, malgrado a importâncias das ressalvas feitas por diversos doutrinadores, entendemos consubstanciar-se na mais adequada opção constitucional para a correspondência da atuação Estatal com as aspirações advindas com a Pós-Modernidade, sua complexidade, dinamicidade e fluidez.

2.     O constitucionalismo moderno: o escudo contra a arbitrariedade

Introdutoriamente, é imprescindível analisar o que vem a ser o fenômeno chamado de constitucionalismo, quais os elementos sociais que o tornaram necessário e quais os efeitos da sua consolidação enquanto paradigma jurídico, político e filosófico. Partir disso afigura-se como crucial para, posteriormente, entender o (suposto) novo movimento constitucional que vem sendo defendido por vozes de relevante peso jurídico, chamado de Neoconstitucionalismo. É preciso, portanto, iniciar pelas raízes desse processo histórico para poder compreender quais as suas folhas e o porquê de seus frutos.

Para tanto, faz-se necessário voltar os olhos à realidade histórico-social que deu ensejo ao surgimento das primeiras manifestações constitucionais e, nesse sentido, é forçoso reconhecer que o substrato político e jurídico que possibilitou as condições objetivas para o surgimento do constitucionalismo situa-se no momento histórico do aparecimento e da consolidação dos Estados Modernos, mais especificamente do Absolutismo Estatal, sintetizado, classicamente, na célebre frase “O Estado sou eu” (“L’Etatc’est moi”), atribuída ao monarca francês Luís XIV.

Com efeito, é nesse contexto de intensa exploração do poder político, de concentração das funções estatais na pessoa do monarca, de fortalecimento do Estado e de ausência de participação popular nas decisões políticas das nações, em que se visualiza a necessidade de garantir, ainda que minimamente, os direitos da pessoa humana, por meio da positivação escrita de normas. Apresenta-se, dessa forma, o constitucionalismo como verdadeiro escudo contra as arbitrariedades do Estado através da institucionalização de instrumentos de limitação do exercício do poder em face dos cidadãos e das cidadãs. Em suma,

(...) fala-se em constitucionalismo moderno para designar o movimento político, social e cultural que, sobretudo a partir de meados do século XVIII, questiona nos planos político, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo a invenção de uma nova forma de ordenação e fundamentação do poder político. (CANOTILHO, 2003, p. 52).

Resultado dos clamores populares pelo fim do Estado absolutista, o constitucionalismo caracteriza-se, portanto, pela introdução e valorização dos direitos individuais na ordem jurídica, com o principal objetivo de evitar a invasão no âmbito da liberdade pessoal pelo monarca e/ou governante, por meio do exercício das prerrogativas conferidas em razão da governabilidade.

Diversos fatores históricos contribuíram para a construção desse novo momento de organização estatal. Na Inglaterra do século XVII, por exemplo, destaca-se a edição de verdadeiras declarações de direitos, que trouxeram para o âmbito da institucionalização algumas garantias em favor do cidadão e, em contrapartida, em desfavor da liberdade arbitrária de atuação da Monarquia. Com efeito, em “1628, o Parlamento submeteu ao rei a PetitionofRights, com substanciais limitações ao seu poder” (BARROSO, 2011, p. 33) e não se deve esquecer também que o “Bill ofRights, de 1689, promulgado pelo Parlamento, entrando em vigor já no reinado de Guilherme d”Orange, como resultado da Revolução Gloriosa, de 1688” (BATISTA; PRADO, 2008, p. 7466), intensificou, ainda mais a sujeição da Monarquia às autorizações do legislativo para o exercício de diversas de suas atribuições.

Isso reverberou, especialmente, nas Treze Colônias Americanas, que, insatisfeitas com as medidas restritivas impostas pela metrópole – a Inglaterra –,guerrearam pelo fim da colonização, o que resultou, em 1776, na edição da Declaração de Independência, considerada “um marco na história das ideias políticas, passando a simbolizar a independência das treze colônias americanas, ainda como Estados distintos” (BARROSO, 2011, p. 38). O modelo constitucional americano trouxe uma constatação bastante interessante e que serviria, tempos depois, para firmar um outro (ainda mais recente) sistema constitucional, qual seja, a de que a “importância da declaração americana se constitui na vinculação efetiva dos poderes do Estado (legislativo, executivo e judiciário) elevando ao Poder Judiciário o papel de guardião dos direitos fundamentais” (BATISTA; PRADO, 2008, p. 7467).

Não obstante a inegável relevância das experiências britânica e americana, é na França onde encontramos o verdadeiro estopim do processo popular – tome-se em sentido amplo – de limitação do poder estatal. A Revolução Francesa, mais que a Inglesa e a Americana, espalhou pelo mundo sua ideologia e, com isso, reformulou a feições do Estado com tamanho estrondo que pode ser definido como um verdadeiro divisor de águas da história humana. Luís Roberto Barroso, aliás, é categórico ao afirmar que:

(...) foi a Revolução Francesa, com seu caráter universal, que incendiou o mundo e mudou a face do Estado – convertido de absolutista em liberal – e da sociedade, não mais feudal e aristocrática, mas burguesa. Mais que isso: em meio aos acontecimentos, o povo torna-se, tardiamente, agente de sua história (BARROSO, 2011, p. 47).

Complementa o mencionado autor, com ênfase, que “consolidaram-se valores como o sufrágio universal, a soberania popular, a separação de Poderes, a proteção dos direitos individuais, com ênfase nas liberdades públicas, na igualdade formal e na propriedade privada” (BARROSO, 2011, p. 50). De fato, ao longo da consolidação do constitucionalismo na modernidade, o horizonte desse processo era sempre a limitação do poder estatal, por meio da consagração, em documentos de qualificação constitucional, dos direitos que impedissem a superposição do Estado na esfera particular de cada cidadão e de cada cidadã. Ademais, considerando que o nascedouro do constitucionalismo é o processo liberal-revolucionário burguês, garante-se o resguardo à propriedade privada e a ruptura política, jurídica e social com as classes operárias.

Portanto, a rigor, somente a partir da Modernidade é que se pode propriamente falar em constitucionalismo, pois é com as conquistas históricas acima referidas que se concebem as primeiras ordens jurídicas voltadas para a limitação material, estrutural e processual do exercício do poder estatal, dotada da devida legitimidade, geralmente contempladas em documentos (constituições) formais e rígidas. José Emílio MedauarOmmati, a propósito, é pontual:

 Com a modernidade, o sistema do Direito passou a operar com um código específico: direito/não direito (Recht/ Unrecht). E o que permitiu o fechamento operacional do sistema jurídico foi justamente o surgimento da Constituição formal e rígida. (...) Essa Constituição apresentaria todas essas características em decorrência da função que passaria a desempenhar: a criação, conformação e regulação das relações políticas, bem como a limitação aos poderes estatais. Além disso, seria um instrumento de universalização dos então privilégios que, nessa nova linguagem, seriam chamados de direitos. (OMMATI, 2012, p. 17-18).

 Tudo isso se desenvolve sob o manto da legitimação positivista, que, direcionada pelos anseios cientificistas, expurga da ordem jurídica quaisquer interferências de caráter moral e/ou metajurídico, encontrando no próprio conjunto de normas as suas justificativas e desenhando as pretensões de unidade e completude do sistema. Em reforço,“[...] a validade do direito se funda em critérios que concernem unicamente a sua estrutura formal (vale dizer, em palavras simples, o seu aspecto exterior), prescindindo do seu conteúdo”; (BOBBIO,1995, p. 131).

Concluindo, é nesse cenário do positivismo jurídico, calcado no formalismo e na insalubridade avalorativa, em que se ergue o Estado Constitucional Moderno, sustentado por Constituições, em geral, escritas e cujo “núcleo central (...) é composto por normas de repartição e limitação do poder, aí abrangida a proteção individual em face do Estado” (BARROSO, 2011, p. 62-63). Não obstante ao salto qualitativo, em termos de conquistas de direitos, possibilitado pelo constitucionalismo, ainda se fala, nesse estágio, em Democracia, Cidadania e Estado de Direito em sentido formal, o que somente sofrerá flexibilização tempos mais tarde, e que traz consigo um perigo epistemológico: estar a serviço de sistemas políticos bem dicotômicos, até mesmo das “mais fascistas ditaduras” (OLIVEIRA, 2003, p. 29).

3.     Neoconstitucionalismo: a superação sem a total negação

O Estado de Direito consolida-se ao longo do século XIX, na Europa, em torno de dois aspectos primordiais: “separação de Poderes e proteção dos direitos individuais” (BARROSO, 2011, p. 265). Em seguida, passa-se ao momento do Estado Constitucional de Direito, onde se exige a compatibilidade formal e material das leis perante uma Constituição rígida. Mas esse processo histórico não chegou ao fim, pelo seu próprio caráter de continuidade dialética, de modo que diversos fatores, de ordem histórica, filosófica e teórica, podem ser considerados para a defesa de que se vive, na contemporaneidade, em um novo momento constitucional, chamado por muitos autores de Neoconstitucionalismo.

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Ressalte-se, mais uma vez, a necessidade de se compreender as condicionantes desse novo modelo de ordem constitucional para que, a partir disso, seja possível assinalar as suas principais características e as suas repercussões na estruturação da ordem jurídica, na relação entre todas as suas normas e na forma como elas são interpretadas. Nesse sentido, partiremos, agora, a apontar o marco histórico do neoconstitucionalismo, com o escopo de assimilar de que maneira a realidade social contribuiu para a mencionada mudança paradigmática; em seguida, é preciso perceber as alterações em âmbito de justificação, indicando o marco filosófico da nova face constitucional; por fim, é essencial o reconhecimento de relevantes modificações na aplicação do direito constitucional, o que caracteriza o marco teórico do neoconstitucionalismo.

Feita essa reflexão, será possível a compreensão do fenômeno do Neoconstitucionalismo, defendido por inúmeros autores de renomada reputação e que, se aceitas as considerações aqui apontadas, significa mais uma etapa do processo histórico da teoria constitucional. Contudo, é importante ressalvar que esse novo paradigma não se desenvolve de forma homogênea, apresentando, em verdade, diferentes aspectos a depender do lugar onde está sendo construídoe, por esse motivo, há quem fale da existência de “Neoconstitucionalismos”. Em suma, não existe “somente uma percepção do que vem a ser essa nova ideologia constitucional; isso porque, está em plena fase de construção” (FERNANDES, 2010, p. 103).

3.1.A história clama por mudanças

A teoria constitucional, por referir-se, em última análise, a uma verdadeira teoria da organização do Estado e suas relações com os particulares, deve a sua origem, desenvolvimento e transformação ao conjunto de elementos que marcam a complexidade social. Ou seja, todo esse processo mantém estrita relação com o que se desenvolve no cotidiano das diversas classes sociais, afinal de contas, é a malha de interações sociais que pede determinado tipo de Estado e, por assim dizer, de modelo constitucional. Assim aconteceu com a necessidade de submeter a atuação estatal ao crivo da lei (Estado de Direito) e, posteriormente, da Constituição (Estado Constitucional de Direito).

Com o neoconstitucionalismo não poderia ser diferente. Assim, diversos acontecimentos contribuíram para a formação do novo paradigma constitucional, possibilitando o devido solo para que se fincassem as raízes de um Estado submetido a uma ordem de elementos que englobam a lei e a Constituição, mas que, por seus aspectos diferenciadores, transpõe os limites até então estabelecidos. Para os fins deste trabalho, seguiremos os apontamentos do professor Luís Roberto Barroso (2011), destacando, na Europa Ocidental, o período posterior à Segunda Guerra Mundial, e, no âmbito nacional, o processo de redemocratização que desaguou na promulgação da Constituição Federal de 1988, para identificar o marco histórico do neoconstitucionalismo.

Com efeito, “os acontecimentos horrendos da Segunda Guerra Mundial foram fundamentais para legitimar a renovação das cartas constitucionais” (PRADO; BATISTA, p. 7469), uma vez que se tornou visível a “traição” positivista, isto é, a possibilidade de uso das suas justificações de cunho cientificista para a instauração de Estados totalitários e dizimação de populações consideradas inferiores, como judeus, negros e homossexuais. Levadas aos diplomas legislativos, essas concepções recebem o status de normas jurídicas, tidas como verdades inquestionáveis, válidas por sua adequação formal, ainda que, materialmente falando, o seu conteúdo esteja em desacordo com valores de ordem moral.

O judiciário, em reforço, não tinha a prerrogativa de adentrar na discussão acerca da adequação valorativa dessas normas, que cabia tão somente ao poder legislativo, devendo a ele a tarefa única de declarar a vontade do legislador. Era o juiz, portanto, um mero expectador do processo de aplicação das normas, um simples instrumento para a concretização, tal qual escrita, da intenção mais imediata do legislador. De fato,

Não havia na aplicação da norma a busca de parâmetros de justiça. Na concreção do direito, aspectos valorativos (moral) permaneciam afastados. Mesmo que a regra estivesse em dissonância com a justiça, precisava ser aplicada tal como o legislador a promulgou (FERNANDES, 2010, p. 104).

Constatada essa perigosa impropriedade, aflora a necessidade de repensar o papel das constituições e, por assim dizer, do modelo de aplicação das normas jurídicas. Ultrapassar as limitações interpretativas, recolocando a busca da justiça no processo de aplicação das leis e normas constitucionais, passa a ser um compromisso político-ideológico das ordens jurídicas do pós-guerra. A reconstitucionalização da Europa, portanto, nas palavras do eminente professor Luís Roberto Barroso, “redefiniu o lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições contemporâneas” (BARROSO, 2011, p. 267). O referido autor, a propósito, lembra que a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã) de 1949, a Constituição italiana de 1947, a reconstitucionalização de Portugal (1976) e da Espanha (1978), exemplificam esse processo que culmina com a ruptura da consideração meramente política das Constituições.

No Brasil, é também a busca pela democracia que concede as bases para a construção de um novo momento constitucional. Afinal de contas, a saída de um sistema estatal baseado em supressão de garantias fundamentais, em superposição do Estado em relação ao cidadão e no diminuto (senão, inexistente) papel exercido pelas Constituições, levam-nos a afirmar que a promulgação da Constituição Federal de 1988, rompendo com a conjuntura ditatorial então existente, representou uma revolução nas estruturas do Estado brasileiro e suas instituições.

Do mesmo modo como se deu na Europa, foi o reconhecimento da legitimação dada pelo ordenamento jurídico a muitas problemáticas advindas com a Ditadura Militar, que se perpetrou a essencialidade de modificação das bases do Estado brasileiro. O processo constituinte, de fato, com a consagração de uma extensa lista de direitos no texto constitucional e a realocação da Constituição para uma posição de direção cogente, marca uma nova conjuntura de valorização do direito constitucional. Em suma, “sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração” (BARROSO, 2011, p. 268).

Suscintamente, esses são os principais marcos históricos do surgimento do chamado Neoconstitucionalismo. Foi por meio desses fatores, dentre outros, em busca da construção de uma realidade social democrática confrontada com a desumana destruição da cidadania, que uma nova configuração estatal afigurou-se como urgente. Era um compromisso político evitar as brutalidades anteriormente desencadeadas e mais compromissado, ainda, estava o Estado em não justificar essas atrocidades nos dias que viriam.

3.2.O pós-positivismo: valores na objetividade normativa

Conforme antes mencionado, o Estado de Direito pressupõe a submissão de toda atuação estatal às determinações do legislador, em razão do prestígio que a lei adquiriu naquele momento histórico. A necessidade de segurança, estabilidade, certeza e possibilidade de previsão da conduta do Estado perante o cidadão encontrou o devido agasalho de legitimação filosófica no Positivismo Jurídico, cujas bases científicas, de aplicação “subsuntiva” das normas, sem quaisquer considerações valorativas, adequaram-se às necessidades de limitação das arbitrariedades do período pré-modernidade.

Diante disso, cumpre mencionar, nesse momento, a justificação filosófica do Neoconstitucionalismo, buscando compreender as modificações que possibilitaram, em termos de correntes de pensamento, a formação de um novo momento constitucional. É importante lembrar que tal legitimação filosófica tem por objetivo a superação das limitações encontradas no jusnaturalismo e no positivismo jurídico.É naquilo que ficou conhecido como Pós-positivismo onde encontramos a mencionada legitimação.

De fato,

“se não houver na atividade jurídica um forte conteúdo humanitário o direito pode servir para justificar a barbárie praticada em nome da lei, (...), o legislador, mesmo representando uma suposta maioria, pode ser tão opressor que o pior dos tiranos” (MARMELSTEIN, 2008, p. 10).

O pós-positivismo, nessa perspectiva, vem sedimentar a incapacidade do positivismo jurídico em lidar com a complexidade pós-moderna – diante da constatação da incompletude do sistema jurídico –, buscando, dessa forma, evitar a aplicação das normas jurídicas quando estas forem incompatíveis com elementos de ordem moral/ética. Ronald Dworking, importante referência no assunto, chega mesmo a afirmar que as teorias que defende e que vem para superar os dogmas positivistas constituem um verdadeiro “ataque geral contra o positivismo” (DWORKIN, 2002, p. 35). Segundo BARROSO, contudo, isso não significou uma negação absoluta nem do positivismo nem do jusnaturalismo, revelando, talvez, uma sublimação “dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de ideias, agrupadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo” (2011, p. 269).

Em verdade, aqueles que defendem o Pós-positivismo “relativizam a separação entre Direito e Moral, admitindo critérios materiais de validade das normas” (VALE, 2009, p. 47). A incerteza do jusnaturalismo e a prisão do positivismo dão lugar, agora, a um modelo jusfilosófico que contempla a segurança jurídica, por meio da existência de um conjunto de normas, mas que também reconhece a limitação legal e, por isso, pressupõe a consideração de uma ordem de valores na sua interpretação e aplicação.

Os valores, dessa forma, são relançados ao sistema jurídico, com a devida força, sendo-lhes reconhecida a possibilidade de impor padrões de condutas, ainda que o caráter difuso do seu conteúdo exija um processo de “densificação”, isto é, de delimitação diante do caso concreto. Miguel Reale, em sua magnitude, assevera que “toda norma enuncia algo que deve ser, em virtude de ter sido reconhecido um valor como razão determinante de um comportamento declarado obrigatório” (2006, p. 33-34). São, portanto, os valores considerados mais importantes para a coletividade que adentram na ordem jurídica, como resultado de uma escolha política, que também se dá em um contexto valorativo.

Nesse sentido, FERNANDES ressalta que “a forma e o momento da inserção dos valores no sistema são alterados; os valores permeiam o sistema tanto no momento da confecção da norma como durante sua aplicação” (2010, p. 125). Em seguida, lembra o mencionado autor, de forma coerente, que os princípios jurídicos são os vetores dessa inserção, uma vez que são verdadeiras “pautas axiológicas, abertas e indeterminadas” (MENDES et al., 2007, p. 121).

As normas constitucionais do tipo regra, conforme a classificação de Ronald Dworking (2006), por seu reduzido grau de abstração, não carreiam a mesma carga valorativa, pois a discussão axiológica acerca de seu conteúdo exaure-se no momento de sua confecção pelo Constituinte ou Legislador. Robert Alexy, nessa linha de pensamento, afirma que “o conteúdo axiológico dos princípios é mais facilmente identificável que o das regras” (ALEXY, 2008, p. 109) e, diante disso, considerando que as Constituições contemplam normas do tipo regra e normas do tipo princípio, somente quanto a estes é que se dará uma densificação de cunho valorativo quando da sua aplicação aos fatos de interesse jurídico.

Outra contribuição pós-positivista de relevância e que reforça o papel dos valores na ordem jurídica foi o reconhecimentos dos princípios – o recanto axiológico – como espécies de normas. Até então, funcionavam tão somente como instrumentos de integração do sistema jurídico ou parâmetros de interpretação. O pós-positivismo, por seu turno, permite a sua aplicação imediata nos conflitos decorrentes das relações sociais. Luís Roberto Barroso sintetiza afirmando que:

“Pela eficácia direta (...), o princípio incide sobre a realidade à semelhança de uma regra, pelo enquadramento do fato relevante na proposição jurídica nele contida. (...) Portanto, e em primeiro lugar, um princípio opera no sentido de reger a situação da vida a qual incide, servindo como fundamento para a tutela do bem jurídico abrigado em seu relato” (BARROSO, 2011, p. 342-343).

 Como os princípios carregam os valores indisponíveis para o corpo social, nada mais adequado do que a sua lotação no texto constitucional, e, por esse mesmo motivo, as Constituições passam a ocupar o centro do sistema jurídico. Quer-se dizer, com isso, que, malgrado existam princípios fora da Constituição, todas as normas jurídicas voltam-se para as diretrizes constitucionais, buscando legitimação formal e, especialmente, material, dado o peso de essencialidade que estas abarcam e que condicionam aquelas. Com efeito,

 A Constituição passa a ser o local propício para os princípios, pois passa ao epicentro das discussões jurídicas com a superação da era dos códigos, irradiando efeitos sobre a atividade política e jurídica. As Constituições são centrais para o século XX e XXI como os códigos foram para o século XIX (FERNANDES, 2010, p. 138).

 O reconhecimento do pós-positivismo jurídico é algo bastante recente e, mesmo assim, não é completamente pacífico. Não obstante a isso, diversas críticas já recaem sobre esse processo, especialmente no que toca à banalização da identificação do que é princípio constitucional, direito fundamental, dentre outras coisas. O professor Daniel Sarmento chega mesmo a falar que se vive uma “panconstitucionalização” e “oba-oba constitucional” (2009, p. 288-301), de modo que é essencial perceber que, dentro da Constituição, existem normas do tipo regra e normas do tipo princípio. É importante registrar tais ponderações, mas reitera-se a força com que o Pós-positivismo assentou-se na comunidade jurídica nacional e internacional, o que representa importante passo na consolidação de um novo momento constitucional.

3.3.A aplicação das normas constitucionais no momento neoconstitucional: o primado da Constituição

Como consequência dos fatores históricos – em especial a Segunda Guerra Mundial e a Constituição de 1988, no Brasil – e dos aspectos jusfilosóficos que sedimentaram uma necessidade de modificação dos ângulos de abordagem da Constituição, afloram novas considerações ao processo de concretização da ordem constitucional. O professor Barroso, mais uma vez, merece ser citado, ao enumerar três transformações importantes que repercutiram substancialmente na aplicação do direito constitucional, quais sejam: “a) o reconhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional” (BARROSO, 2011, p. 284). Partiremos, nesse ponto, a analisar sucintamente cada um desses elementos, com vistas a compreender o alcance prático do Neoconstitucionalismo.

Já apontamos que, com o pós-positivismo, os princípios jurídicos e, mais especificamente, os princípios constitucionais, ganham normatividade, sendo-lhes permitida a aplicação direta às relações sociais. Indicamos, também, que tais normas jurídicas, por levarem, em seu âmago, os valores mais importantes para a coletividade, foram recepcionadas com a devida adequação pelas Constituições. Foi no texto constitucional onde a abstração e fluidez dos princípios conformaram-se com perfeição.

Pois bem, a consequência disso é o reconhecimento do poder normativo da própria Constituição, isto é, a Constituição é mais que uma carta de diretrizes, mais que um conjunto de conselhos, mais que um horizonte a ser buscado. As disposições constitucionais são, antes de qualquer outra coisa, normas jurídicas e, por isso mesmo, podem e devem exercer uma função vinculativa, cogente, impositiva. As promessas constitucionais devem ser cobradas e cumpridas e o seu desrespeito deve ser sancionado.

Antes da erupção das novas premissas constitucionais, as constituições funcionavam tão somente como Cartas políticas, isto é, traziam consigo um singelo simbolismo, um anúncio de um modelo de sociedade que devia servir como farol para a imperfeição social. O Neoconstitucionalismo, embora não negue esse importante papel, atribui-lhes uma função até então desconsiderada: a imperatividade. Portanto, as normas constitucionais – dentre elas, os princípios, é claro – impõem padrões de condutas que devem ser seguidos e aplicados.

Soma-se a isso a atuação cada vez mais incisiva do Poder Judiciário, em sede constitucional, fundamentada na supremacia da Constituição, segundo a qual ela deve orientar a edição e aplicação de todas as normas jurídicas, uma vez que irradia os seus valores por todo o sistema jurídico. É a Constituição o filtro de legitimação das normas e, por isso, é preciso que haja um conjunto de instrumentos que protejam a sua ordem de valores e, acima de tudo, uma instituição que fiscalize o uso e o respeito a eles. O Judiciário ganha, dessa forma, prerrogativa essencial, consistente na guarda da Constituição.

Se, no Estado Legal, a lei ocupava posição de superioridade, apresentando-se como inquestionável, uma vez que representava a vontade geral, legitimada pelo sistema representativo, com o Neoconstitucionalismo, o Judiciário, buscando defender a ordem constitucional, pode, inclusive, invalidar atos do Poder Legislativo, visto que a palavra final cabe ao texto constitucional e não à lei, devendo esta adequar-se àquele. A instrumentalização disso pode ser visualizada por meio do surgimento das Cortes Constitucionais na Alemanha e na Itália, por exemplo, e com a disseminação do controle de constitucionalidade, inclusive abstratamente.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal possui ampla participação na averiguação da compatibilidade formal e material das normas jurídicas em relação ao texto constitucional. Ademais, a partir da Constituição Federal de 1988, diversos outros sujeitos passaram a ter a legitimidade para provocar a jurisdição constitucional, como minorias políticas e entidades representativas. Tudo isso leva alguns autores a falarem na existência de um certo Ativismo Judicial. A título de registro,

Ao se fazer menção ao ativismo judicial, o que se está a referir é à ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em detrimento principalmente da função legislativa, mas, também, da função administrativa e, até mesmo, da função de governo. (...) da descaracterização da função típica do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros Poderes (RAMOS, 2010, p. 116-117). 

O terceiro elemento teórico importante para o Neoconstitucionalismo é a remodelação dos paradigmas interpretativos, o que fez surgir uma Nova Hermenêutica Constitucional. Além do pós-positivismo e da força com que passa a se apresentar a jurisdição constitucional, diversos outros fatores contribuíram decisivamente para essas alterações de ordem interpretativa. 

(...) a complexidade da vida contemporânea, tanto no espaço público como no espaço privado; o pluralismo de visões, valores e interesses que marcam a sociedade atual; as demandas por justiça e pela preservação e promoção dos direitos fundamentais; as insuficiências e deficiências do processo político majoritário – que é feito de eleições e debate público; enfim, um conjunto vasto e heterogêneo de fatores influenciaram decisivamente o modo como o direito constitucional é pensado e praticado (BARROSO, 2011, p. 287-288). 

O julgador, no panorama neoconstitucional, parte dos problemas postos à sua apreciação para a interpretação das normas jurídicas, exercendo, portanto, um papel bem mais criativo do que possuía sob o manto do positivismo jurídico e seu Estado de Direito. Reconhece-se a normatividade dos princípios e da Constituição, a possibilidade de choque entre eles e a entronização do método da ponderação, ou da concordância prática, como instrumento de solução desses conflitos. Ademais, exsurge com força o papel da argumentação jurídica como legitimação dessa interpretação, fundamentada na razão prática (BARCELLOS, 2005), especialmente diante dos chamados conceitos jurídicos indeterminados.

Em rápidas palavras, esses são os principais marcos da teoria Neoconstitucional para o sistema jurídico. A abrangência da discussão é ampla demais para concentrar-se nos limites deste excerto, mas, conquanto que se tenha atingido os elementos peculiares que nos levam a admitir a existência de um novo momento constitucional, já teremos conquistado nosso objetivo. Os estudos acerca do Neoconstitucionalismo não param e nem devem parar, vez que diversas consequências práticas já estão se desenvolvendo com muita intensidade, o que influi na relação do Estado e o particular e entre os particulares. Compreender esses efeitos com o intuito de evitar ao máximo os seus prejuízos para uma ordem democrática é, afinal, a sina constitucional a que aderimos no processo histórico-dialético de construção de uma ordem jurídica justa. 

4.     Considerações finais 

O Direito, enquanto instituição social situada em um contexto histórico, deve a sua configuração ao conjunto de fatores que dão sustentação à realidade social. O Direito Constitucional, em sua especificidade, anda junto com o desenrolar das feições políticas dos Estados e é, nessa perspectiva, que devemos analisar o processo histórico que culminou com a construção e defesa de um momento constitucional chamado de Neoconstitucionalismo.

Essa nova configuração constitucional surge em contraposição ao constitucionalismo clássico. Este, fundamentado em bases positivistas, de cunho cientificista, embora venha junto com a edição de diversas constituições formais e escritas, concede à lei o primado na ordem jurídica. Nascido em um contexto de ascensão burguesa, marcado pelas Revoluções liberais, o seu objetivo maior era a limitação da atuação governamental, evitando, dessa forma, os abusos que marcaram o período pré-modernidade. Por isso, o positivismo jurídico afastou quaisquer valorações para o processo de aplicação das normas jurídicas, devendo o magistrado apenas declarar mecanicamente a vontade do legislador.

A constatação de que tais paradigmas avalorativos foram utilizados para a legitimação formal de inúmeras atrocidades levou a necessidade de repensá-los. A Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, que ceifaram inúmeras vidas sob uma pretensa superioridade de determinadas populações sobre outras, além da Ditadura Militar, no Brasil, que impôs uma ordem jurídica totalitária, cega a quaisquer garantias fundamentais, fez aflorar o compromisso político de alterar o modelo constitucional, com vistas a não mais serem justificadas atuações estatais como as supramencionadas.

É nesse escopo que os valores adentram no sistema jurídico, devolvendo um conteúdo ético ao Direito, sem que haja uma negação por completo das normas jurídicas. É o momento do pós-positivismo, que mescla o jusnaturalismo e o positivismo jurídico, tentando superar as limitações de cada um e introduzindo um novo modelo jusfilosófico de pensar o Direito, que parte da distinção entre regras e princípios, do reconhecimento destes como espécies de normas jurídicas e, portanto, como instrumentos que impõem condutas, ainda que carreguem em si maior grau de abstração, pois são eles os vetores axiológicos do sistema jurídico.

Tudo isso leva ao reconhecimento da normatividade da própria Constituição, uma vez que esta passa a ser o abrigo dos princípios (não o único, mas o principal) e, por via de consequência, passa a ser possível a exigência da concretização direta das promessas constitucionais o que interfere diretamente no papel da ordem constitucional. Além disso, o Neoconstitucionalismo é marcado por uma expansão jurisdicional, consubstanciada na ampliação da atuação do Poder Judiciário na fiscalização da compatibilidade formal e material de todas as atividades estatais às diretrizes constitucionais e no aumento dos legitimados a provocar esse processo de averiguação. Por fim, aflora uma nova hermenêutica constitucional, que concede ao magistrado papel criativo no momento de aplicação das normas, que reconhece a força dos princípios constitucionais, que estabelece critérios inovadores de solução dos conflitos que por ventura se estabeleçam entre esses princípios, dentre outros aspectos.

Tudo isso nos leva a concluir pela existência de um novo momento constitucional, que supera as limitações do constitucionalismo clássico, inaugurando uma ordem jurídica voltada para a segurança e para a justiça. Não devemos fechar os olhos para as críticas ao neoconstitucionalismo ou, mesmo, para os apontamentos de quem nega a existência de um novo paradigma constitucional, que, infelizmente, não puderam ser objeto deste trabalho, mas entendemos que a criação e aplicação do Direito sob a perspectiva do Pós-positivismo e, consequentemente, do neoconstitucionalismo, apresenta-se como a melhor saída para os anseios democráticos que devem marcar a contemporaneidade. 


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Sobre o autor
Dylvan Castro de Araujo

Mestre em Direito pela Unisinos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Dylvan Castro. O neoconstitucionalismo:: a exigência histórica, a justificativa filosófica e a consequência teórica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7456, 30 nov. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107436. Acesso em: 23 dez. 2024.

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