“As organizações não morrem devido à falta de lucros. Elas morrem de falta de caixa.” (Willian Lazier)
Herbert L. A. Hart e Ronald Dworkin, nos seus livros de Teoria Geral do Direito, polemizam sobre a solução dos casos difíceis, isto é, aqueles em que o direito não tem nenhuma resposta (Dworkin) e os que estão numa zona de penumbra de incerteza (Hart).
Casos difíceis podem transformar-se em casos controvertidos, isto é, aqueles em que o juiz se depara com interpretações díspares de juristas de nomeada e decisões conflitantes, proferidas por egrégios tribunais de Justiça.
A antecipação de recebíveis atuais foi um caso controvertido; a de recebíveis futuros continua a sê-lo na doutrina e na jurisprudência, conforme é de domínio público e constatou criteriosa pesquisa, realizada por Teixeira Fortes Advogados: de 30 acórdãos do TJSP, lavrados entre 2014 e 2022, 16 a excluíram da recuperação judicial; 14 adotaram orientação contrária, não tendo o julgamento do AgInt no REsp nº. 1.932.780-SP, da Terceira Turma do STJ, posto fim ao dissídio jurisprudencial.
O conflito de opiniões e julgados sobre o tema – que se arrasta desde 2005 - suscita duas indagações:
(a) se as causas da antecipação e da securitização de recebíveis são idênticas para a fiduciante e a securitizada (capitalizarem-se) e idênticas, as finalidades (obter lucros com minimização dos riscos), por que ambas não estão excluídas dos efeitos da recuperação judicial?
(b) diante do fato incontestável de os clássicos métodos de interpretação da lei – filológico, lógico, sistemático e teleológico – não terem extinguido o dissenso, o que cumpre ao juiz fazer?
A resposta à primeira é simples: a antecipação de recebíveis é uma cessão condicional, limitada, resolúvel; a securitização, uma cessão pura e simples, definitiva, irrevogável, irretratável, irreversível.
A segunda, exige breve digressão.
Para cumprir a missão de fazer Justiça às partes, o juiz deve:
(a) atentar para a advertência de Georges Ripert: “(…) quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito” (apud Guilherme Mendes Resende, in “Direito e Economia nos julgamentos do Supremo”, Valor Econômico, 21.11.2023, p. E-2);
(b) “mergulhar” no cotidiano das empresas;
(c) considerar as vantagens econômicas e competitivas inerentes a esse expedito mecanismo de capitalização;
(d) adotar uma abordagem pragmática, instrumental e empírica do caso (Richard A. Posner) e valer-se, em seu raciocínio, da análise econômica do direito;
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(e) agir com judiciosa discricionariedade,
(f) ponderar, sopesar, os efeitos práticos de sua decisão e
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(g) ter em mente os seguintes postulados:
enquanto permanecerem contabilizados no “contas a receber”, os recebíveis só servem para a aferição do rating score de crédito das empresas. Isso, contudo, não basta; para quem quer, antes e acima de tudo, manter-se em atividade e, depois e sempre, expandir-se, é imprescindível monetizá-los.
a conversão antecipada de recebíveis atuais e futuros em recursos financeiros disponíveis é o meio mais simples, rápido, barato e eficaz de prover o caixa com dinheiro novo (as mais das vezes, a transferência é instantânea - um toque de uma única tecla do computador).
a operação (a) é realizada com celeridade (sem a tirania do aparelho burocrático), por vezes sem garantias (dependo do rating do devedor) e a custos reduzidos (menores taxas de juros); (b) fortalece o capital de giro, estrutura o fluxo de caixa e melhora os indicadores de liquidez; (c) torna as empresas mais eficientes, prósperas e resilientes.
com dinheiro em conta corrente e aplicações financeiras disponíveis, as empresas têm reais possibilidades de (a) negociar condições diferenciadas com fornecedores de bens e serviços e bancos e instituições não financeiras; (b) rivalizar com as concorrentes; (c) enfrentar a ameaça de produtos substitutos.
se, como ensina o Professor de Negócios na Stanford University’s Law Scholl, Willian Lazier, “as organizações não morrem devido à falta de lucros. Elas morrem de falta de caixa”, é imperioso estimular a transformação de recebíveis em dinheiro para ser usado a todo e qualquer momento para o que “der e vier”.
julgamentos contrários ao fiduciário, (a) vão acirrar a discussão sobre “subsídios cruzados” nas operações com recebíveis de cartão de crédito; (b) elevar os juros do rotativo; (c) inibir o crescimento do florescente mercado de special situations, “classe de ativos que representou cerca de 25% do capital privado disponível para investimento em 2022” (Valor, ed. 5.859); (d) impor a utilização em grande escala da chamada “proteção contratual”, isto é, de cláusulas que restringem a liberdade de gestão (convenants) e formalizam a constituição de garantias reais e pessoais para prevenir perdas por inadimplência do devedor.
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a antecipação de recebíveis, contratadas vezes sem conta em todos os cantos do país, beneficia, direta e indiretamente, empresas, sócios/acionistas, empregados, prestadores de serviços, credores, consumidores, a coletividade, municípios, estados e a União Federal.
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo: o Supremo Tribunal Federal escudou-se no pragmatismo jurídico para resolver casos controvertidos, i.e., descriminalização do aborto; união homoafetiva; registro civil para transgêneros; equiparação entre injúria racial e racismo; porte de maconha; lei da ficha limpa.
O Supremo Tribunal Federal tem aplicado, em seus julgamentos, ano após ano, a análise econômica do direito, conforme restou patente da “obra de 2021, do juiz federal Guilherme Caon”, segundo esclarece Guilherme Mendes Resende, assessor especial da presidência do STF e economista-chefe do CADE entre 2016 e 2023, verbis: “(…) É digno de nota os avanços do diálogo entre Direito e Economia nas decisões da referida Corte (…) entre 1991 a 2014, foram identificados 20 julgamentos em que houve a utilização de fundamentos econômicos, não havendo, em regra, uma adesão explícita à análise econômica do Direito. Já entre 2015 a 2019, um período de apenas cinco anos, foram encontrados 19 julgados em que o STF utilizou argumentos econômicos” (artigo do Valor Econômico citado).
Ciente da importância da antecipação de recebíveis futuros para o mercado de bens e serviços e o mercado financeiro e de capitais, consciente dos efeitos econômicos e sociais que a sua sentença produzirá e no exercício responsável do poder discricionário que a lei lhe confere, o juiz deve decidir que a antecipação de recebíveis futuros, ou não performados, ou a performar, não se submete aos efeitos da recuperação judicial da fiduciante.