3. A NECESSIDADE DA COMPROVAÇÃO DA AUTORIA E DA MATERIALIDADE: ANÁLISE DA PRODUÇÃO DA PROVA À LUZ DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
No processo penal, a comprovação da autoria e da materialidade do crime é essencial para que uma pessoa seja considerada culpada e condenada. Esses mecanismos são fundamentais para a formação do convencimento do juiz sobre a responsabilidade penal do acusado, isso porque é a partir da comprovação desses elementos que é formada a tese para induzir o magistrado a fim de absolver ou condenar o réu. Magalhães Gomes Filho sustenta que:
Os mecanismos probatórios visam à formação e a justificação do convencimento judicial, [...] pois somente a concreta apreciação da prova, verificável pela motivação da sentença, assegura a efetividade do direito à prova. (GOMES FILHO, 1997, p. 89).
A comprovação da autoria do crime refere-se à pessoa que efetivamente praticou o ato criminoso, ou seja, é a identificação do autor daquele ato, é quem realmente o cometeu. Já a materialidade diz respeito à existência concreta do fato criminoso, assim dizendo, é a demonstração de que o crime de fato ocorreu.
A necessidade de comprovação da autoria e da materialidade do crime está relacionada ao princípio da presunção da inocência, que estabelece que toda pessoa é considerada inocente até que sua culpa seja comprovada. À vista desse princípio, é necessário para que alguém seja condenado, que haja provas suficientes que demonstrem, além da existência do crime, a participação efetiva do acusado na sua prática, isto é, para culpar um indivíduo de algum crime que veio a ocorrer, precisa haver provas suficientes de sua autoria e da materialidade, para que assim possa levar o convencimento do magistrado na hora de tomar sua decisão. Baseando na doutrina de Paulo Rangel (2023):
A prova, assim, é a verificação do thema probandum e tem como principal finalidade (ou objetivo) o convencimento do juiz. Tornar os fatos, alegados pelas partes, conhecidos do juiz, convencendo-o de sua veracidade. Portanto, o principal destinatário da prova é o juiz. (RANGEL, 2023, p. 397)
As provas entranhadas no processo penal podem incluir depoimentos de testemunhas, documentos, laudos periciais, vídeos, áudios, entre outros meios de prova. É importante ressaltar que as provas devem ser realizadas de acordo com os princípios e garantias constitucionais e legais, assegurando o direito à ampla defesa e ao contraditório, expressamente previsto na Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, LV.
A comprovação da autoria e da materialidade do crime é indispensável para uma decisão justa e para garantir que apenas os réus sejam responsabilizados no curso processual. A ausência de provas suficientes a respeito da autoria e da materialidade, poderá resultar na absolvição do acusado, uma vez que a dúvida deverá ser interpretada em favor do réu, conforme o princípio do "in dubio pro reo", implicitamente adotado no art. 386, VII do CPP.
O inciso VII do artigo 386 do Código de Processo Penal, estabelece que, quando a acusação busca comprovar um fato e, ao final da instrução processual, há uma dúvida razoável sobre a sua existência, esse fato não pode ser declarado como provado. Nesse caso, o fato em questão deve ser considerado inexistente e não provado, o que leva à aplicação da sentença absolutória conforme previsto no referido inciso.
Nos artigos 202 ao 225 do Capítulo VI do Código de Processo Civil, aborda a utilização da prova testemunhal em processos penais, estabelecendo os critérios e condições para sua admissibilidade e avaliação, regidos pelo princípio da oralidade, salvo nos casos excepcionais previsto no artigo 221, §1º do CPP. De acordo com esse capítulo, a prova testemunhal é aceita como um meio legítimo de se obter evidências em um processo penal. Para que uma pessoa seja considerada apta a testemunhar, ela deve possuir a capacidade de compreender a importância desse ato e ser compreendida pelo juiz e pelas partes envolvidas. Reis (2023, p. 155).
Além disso, a testemunha deve comprometer-se a dizer a verdade, sujeitando-se a penalidades em caso de falso testemunho. Durante o processo, as testemunhas são ouvidas em audiência, sendo questionadas pelo Ministério Público, defesa e juiz, seguindo uma ordem determinada pelo magistrado, frequentemente iniciando-se pelo lado da acusação.
É importante ressaltar que a falta de outros elementos de prova corroborando o depoimento da testemunha não impede a condenação. No entanto, se os depoimentos das testemunhas forem contraditórios ou insuficientes para formar uma convicção, o juiz pode desconsiderá-los, como pode-se verificar em Matida; Nardelli; Herdy (2020).
Recomenda-se que a prova testemunhal seja reforçada por outras formas de evidência, como prova documental ou pericial, para fortalecer a robustez da evidência apresentada. Isso porque, o artigo 155 do CPP é explícito ao dizer que contudo, a liberdade de condenação do magistrado é limitada, pois o juiz está proibido de basear a sua decisão apenas nas informações recolhidas durante a investigação, uma vez que nesta fase não está garantida a prerrogativa de exercício do estatuto constitucional de processo contraditório (artigo 5º LV, CF). Existem também situações em que uma testemunha pode estar impedida de depor, como nos casos de parentesco com o acusado ou quando ela própria for parte interessada no processo.
Em suma, no processo penal, a comprovação da autoria e da materialidade do crime é fundamental para a formação do convencimento do juiz no que diz respeito a responsabilidade penal do acusado, guardando os princípios do devido processo legal e da presunção da inocência.
3.1. DISTINÇÃO ENTRE PROVA E ELEMENTO INFORMATIVO
No processo penal, há uma distinção entre prova e elemento de prova. Tais termos são usados para descrever diferentes aspectos da produção e apresentação de evidências durante o decurso processual.
A prova refere-se ao conjunto de elementos apresentados pelas partes com o objetivo de convencer o juiz sobre a existência ou inexistência de um fato relevante para o processo. A prova é o meio pelo qual se busca demonstrar a verdade dos fatos alegados pelas partes, para assim levar o convencimento do magistrado a veracidade da tese. Consoante ao próprio Código de Processo Penal:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. (CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, 1941)
Essas provas podem ser colhidas por depoimentos de testemunhas, documentos, perícias, vídeos, áudios ou outros meios de prova apresentados em juízo graças as partes requeridas.
Já os elementos de prova são os componentes individuais que compõem a prova como um todo. São os elementos específicos, como um documento, um depoimento de uma testemunha, um laudo pericial, uma gravação, entre outros. Cada elemento de prova contribui para a formação do conjunto probatório e para a construção do raciocínio lógico e conclusivo sobre a matéria em discussão.
Em resumo, a prova é o conjunto amplo de elementos apresentados no processo com o objetivo de demonstrar a verdade dos fatos, enquanto os elementos de prova são os componentes individuais e específicos que compõe essa prova, fornecendo subsídios para a análise e esclarecerem o juiz sobre os fatos em questão.
3.2. PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA
A presunção da inocência é um princípio basilar e essencial no âmbito do processo penal, amplamente reconhecido em múltiplos sistemas jurídicos ao redor do mundo, incluindo o sistema jurídico brasileiro. Também conhecido como princípio da não culpabilidade, esse preceito fundamental consagra o princípio de que toda e qualquer pessoa é presumida inocente até que sua culpa seja devidamente comprovada de forma legal, em um processo justo e definitivo.
Considerando então a contribuição de Dezem (2017), a importância e a relevância desse princípio residem na proteção dos direitos e liberdades individuais, garantindo que ninguém seja injustamente acusado, detido ou condenado. Em sua essência, a presunção da inocência visa evitar que um indivíduo seja estigmatizado, marginalizado ou punido antes que sua culpa seja estabelecida mediante um devido processo legal.
Ao atribuir à pessoa acusada o status de inocente, a presunção da inocência impõe um ônus probatório ao Estado, que deve demonstrar de maneira robusta e convincente a culpabilidade do acusado. É incumbência das autoridades competentes apresentar evidências sólidas, coletadas de acordo com os procedimentos legais estabelecidos, e submetê-las a uma análise criteriosa e imparcial. Somente quando a culpabilidade do acusado é comprovada de forma legítima e definitiva é que se pode considerar a sua condenação.
Tomando por base a obra de Dezem (2017), esse princípio protege não apenas os direitos do indivíduo acusado, mas também salvaguarda a integridade e a credibilidade do sistema de justiça como um todo. Ao estabelecer uma balança equilibrada entre o poder punitivo do Estado e a proteção dos direitos individuais, a presunção da inocência é um pilar fundamental da justiça, garantindo a imparcialidade, a equidade e a legitimidade dos processos penais.
No contexto brasileiro, a presunção da inocência é protegida pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso LVII, que estabelece que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Essa salvaguarda constitucional reforça a importância desse princípio como um direito fundamental de todo cidadão brasileiro, assegurando que a justiça seja realizada de forma justa e equitativa. Isso significa que, durante todo o processo penal, desde a fase de investigação até a fase de julgamento, o acusado é tratado como inocente e goza de todos os direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição e pelas leis.
A presunção da inocência, acarreta a responsabilidade da acusação, ou seja, do Ministério Público, de apresentar provas suficientes e convincentes para demonstrar a culpabilidade do acusado. Essa obrigação recai exclusivamente sobre a acusação, garantindo que apenas o réu sofra as consequências. Caso o Ministério Público não consiga comprovar suas acusações para refutar a alegação de álibi do réu, conforme discutido pela doutrina de Rangel (2023), isso resultará na absolvição do réu:
Não há que se confundir ônus com dever jurídico do Ministério Público em provar o fato. O ônus é um encargo, uma obrigação para consigo mesmo. Pois se a lei (cf. art. 5º, LVII, da CRFB) encarrega alguém de praticar um ato em seu próprio benefício e o encarregado não o realiza, não o pratica, ninguém, a não ser o próprio, suportará o prejuízo. Não há que se falar em imposição de pena para o encarregado. (RANGEL, 2023, p. 50)
Além disso, a presunção da inocência implica que o acusado tem o direito de ser ouvido sobre a acusação, de ser ouvido em sua defesa, de ter um julgamento justo, com todas as garantias processuais, e de contar com a assistência de um advogado. O acusado também tem o direito de permanecer em silêncio, sem que isso seja interpretado como uma expressão de culpa, assim como diz expressamente no art. 5º, LXIII. CF e também no CPP no art. 186.
A presunção da inocência é um princípio fundamental para garantir a proteção dos direitos individuais e o equilíbrio entre o poder punitivo do Estado e a salvaguarda dos direitos fundamentais do indivíduo. Ela busca evitar condenações injustas e assegurar que a culpabilidade seja estabelecida de forma justa e com base em provas reais.
3.3. CARGA DA PROVA NO PROCESSO PENAL
No processo penal brasileiro, a carga da prova recai, em regra, sobre a acusação para comprovar a culpa do acusado, sendo assim, o ônus da prova é de quem acusa. Assim, cabe a quem tem interesse na demanda apresentar provas suficientes para convencer o juiz da culpa do acusado. A acusação deve produzir provas que demonstrem, de forma clara e convincente, a existência do fato criminoso, bem como a autoria ou participação do acusado no crime. Baseando-se na obra de Rangel (2023) essas provas devem ser produzidas de acordo com as garantias constitucionais e legais, respeitando o contraditório, a ampla defesa e os direitos fundamentais do acusado:
À luz do sistema acusatório, bem como do princípio da ampla defesa, inseridos no texto constitucional, não é o réu que tem que provar sua inocência, mas sim o Estado-administração (Ministério Público) que tem que provar a sua culpa. (RANGEL, 2023, p. 50)
Considerando a obra de Aury Lopes Júnior (2017) é necessário compreender que o processo penal tem como finalidade principal a busca pela verdade dos fatos, por meio da análise das provas colhidas. É a partir dessas provas que o juiz terá condições de realizar o juízo de reconhecimento em relação a um evento passado. No entanto, é essencial ressaltar que qualquer decisão judicial deve se basear exclusivamente em provas obtidas de forma legal e durante o devido processo penal. Isso significa que apenas as provas colhidas de acordo com as regras e garantias processuais serão consideradas para embasar as decisões.
Além disso, os fundamentos que legitimam as decisões judiciais no processo penal são o respeito às normas democráticas, em especial a imparcialidade do juiz, alicerçada na busca pela verdade por meio das provas, e a motivação das decisões. É necessário superar a mentalidade inquisitiva pré-Constituição de 1988, que ainda persiste de forma forte. Independentemente da linha criminológica adotada, o que importa é o programa constitucional estabelecido, com uma abordagem garantista, baseando em Rangel (2023, p. 46).
Dessa forma, é evidente que, conforme a Constituição Federal, o ônus probatório recai integralmente sobre o acusador. Esse é o resultado do sistema acusatório adotado pela Carta Magna, assim como a lei 13.964/2019 inseriu no artigo 3º - A do CPP, a regra da estrutura do sistema acusatório que afasta o juiz do papel de protagonista, transformando-o em um observador imparcial dos fatos, assim como se extrai do Artigo 3º - A do Código de Processo Penal Brasileiro “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. O juiz não atua como ator no processo, mas sim como espectador, garantindo a equidistância das partes e a objetividade na apreciação das provas. Á vista disso, extrai-se de Rangel “Nesse caso, o juiz fortaleceria seu papel de garantidor, impedindo que a testemunha fosse coagida por uma das partes, ou, quiçá, respondesse uma pergunta subjetiva ou impertinente” (RANGEL, 2023, p. 46).
No entanto, é importante destacar que o ônus da prova pode ser invertido em algumas situações específicas. Isso ocorre quando a lei atribui ao acusado a responsabilidade de provar certos fatos que podem afastar sua culpabilidade ou reduzir a pena, como nas hipóteses de legítima defesa, estado de necessidade, entre outras excludentes de ilicitude ou culpabilidade. Nesses casos, cabe ao acusado produzir as provas necessárias para demonstrar sua versão dos fatos e o fundamento de sua defesa,
Em suma, no processo penal brasileiro, a regra geral é que a carga da prova recai sobre a acusação, ou seja, o Ministério Público, enquanto ao acusado é garantido o direito à ampla defesa, assim como Rangel traz em sua obra “O Ministério Público, portanto, deve provar a existência do fato típico, ilícito e culpável, narrado na denúncia e praticado pelo réu, assumindo, por inteiro, o ônus da acusação feita.” (RANGEL, 2023, p. 51). No entanto, em situações induzidas, o ônus da prova pode ser atribuído ao acusado, de acordo com o que estabelece a lei.