3. DOS SERVIÇOS A SEREM EXECUTADOS DE FORMA CONTÍNUA – UMA MUDANÇA DE PARADIGMA.
Não podemos desprezar os transtornos causados pela citada vinculação, notadamente nos casos em que se entende impossível a prorrogação contratual, por restarem estranhos às reduzidas hipóteses de exceção estipuladas pelo artigo 57 do estatuto licitatório.
Nessa discussão, ganha relevo a concepção do conceito de serviço contínuo, hipótese do inciso II do artigo 57.
O dispositivo permite que a duração dos contratos relacionados à prestação de serviços a serem executados de forma contínua tenha sua duração prorrogada, por iguais e sucessivos períodos, com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada essa duração prorrogada, em regra, a sessenta meses.
Sobre esse tema, há duas questões que merecem especial enfrentamento, e que iremos abaixo analisar.
3.1. Desarrazoabilidade da Prorrogação apenas por períodos iguais e sucessivos.
A primeira questão relaciona-se à infeliz alteração, no dispositivo, proposta pela Lei nº 9.648/98, que restringiu a possibilidade de prorrogação apenas por períodos iguais e sucessivos.
Quanto à sucessão dos períodos, não há maior problema. Com relação à limitação que impõe que sejam iguais, contudo, pode conduzir a situações esdrúxulas e despidas de razoabilidade.
Exemplifiquemos um serviço contínuo, cuja necessidade de contratação tenha ocorrido apenas em setembro do ano corrente e pactuada em outubro do mesmo ano. Havendo necessidade e vantagem na continuidade contratual, será razoável impor que as prorrogações resguardem o reduzido prazo de 3 meses?
Norberto Bobbio, [12] no que diz respeito à ciência jurídica, distingue o jurista em duas espécies: o jurista conservador, intérprete, transmissor de um corpo de regras já dadas e o jurista pesquisador, criador, ele mesmo, de regras que transformam o sistema dado.
Segundo o jurista italiano, a atividade principal pela qual se executa a primeira função é a interpretação do direito; a atividade principal pela qual se exerce a segunda é a pesquisa do direito.
Pela primeira concepção, o objeto da ciência jurídica é o conjunto de regras postas e transmitidas que, em um determinado momento histórico, são aplicáveis pelo juiz. Como se vê, a tarefa do jurista nessa situação não é dar vida a regras novas, mas, sim, indicar quais são as regras existentes e interpretá-las. Já na segunda concepção da função do jurista, o direito não é um sistema de regras já postas e transmitidas, o objeto da ciência jurídica deve ser não tanto as regras, mas os próprios fatos sociais dos quais as regras jurídicas são valorações. Não foi à toa que Bobbio defendeu que "o jurista torna-se cada vez mais sensível ao fenômeno da "práxis", onde quer que ela se manifeste, seja no mundo empresarial, sindical, judiciário ou administrativo". Nessa perspectiva, a principal atividade do jurista não é mais a interpretação de um direito já construído, mas a pesquisa de um direito a ser construído.
Parece que o presente dilema revive a prédica do revolucionador jurista italiano que, outrora seguidor do Positivismo clássico de Kelsen, [13] avançou seus ensinos na conclusão de que o aplicador da norma, além de resguardar a coerência do ordenamento, deve buscar nos fatos sociais e em outros ramos do conhecimento a adequada compreensão do direito positivado.
Uma harmonização com regras de gestão administrativa e do mercado demonstra que uma resposta afirmativa à questão outrora posta, impondo prorrogações com o reduzido prazo de 3 meses, são totalmente absurdas e comprometeriam a própria atividade contratual da Administração. O cumprimento da letra fria da Lei prejudicaria a própria função da norma, de regrar as contratações públicas com o objetivo de garantir a opção mais vantajosa.
Em situações como a ventilada no exemplo, tal exigência é desprovida de bom senso, derivando de má técnica legislativa, já que a preocupação do legislador foi apenas evitar contratações com o prazo demasiadamente prolongado, atitude aparentemente permitida pela redação anterior do dispositivo, que não continha o limite temporal de sessenta meses.
Outrossim, a regência dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade permite a avaliação jurídica adequada na aplicação do direito na efetivação da função administrativa, uma vez que práticas desarrazoadas e desproporcionais se mostram visceralmente contrárias aos valores jurídicos que governam o Estado Democrático de Direito. [14]
Nesta feita, a estipulação de prazos iguais para as prorrogações deve ser desprezada, quando contrária ao interesse público contratual envolvido, podendo haver prorrogação por prazo superior ou inferior, desde que, almejando a obtenção de preços e condições mais vantajosas para a Administração, respeite a vinculação ao respectivo exercício financeiro e ao limite temporal estipulado pela Lei.
Usando o exemplo já indicado, a prorrogação poderia ser pactuada por prazo superior a três meses (período anterior), embora, por respeito ao limite relacionado ao exercício financeiro, tivesse sua vigência restrita ao seu término, sendo cabível nova prorrogação, caso presentes os requisitos legais.
3.2. O conceito de serviços contínuos.
Outro problema, em relação ao inciso II do artigo 57, deriva da compreensão do conceito de serviços contínuos. O extinto MARE (posterior Secretaria de Estado da Administração e do Patrimônio, vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão), em sua IN nº 18, conceituou serviços contínuos da seguinte forma: "São aqueles serviços auxiliares, necessários à Administração para o desempenho de suas atribuições, cuja interrupção possa comprometer a continuidade de suas atividades e cuja contratação deva estender-se por mais de um exercício financeiro".
Este conceito foi reproduzido pelo TCU em seu manual de orientações, [15] e induz a concluir que a compreensão de serviços contínuos pode variar de acordo com a necessidade para o desempenho das atribuições do órgão, e apenas deveriam ser entendidos como contínuos os serviços essenciais à atividade administrativa.
Essa interpretação indica um conceito mais restrito que o apresentado pela Lei, que exige apenas que a prestação de serviços seja executada de forma contínua, não fazendo qualquer vinculação ao desempenho das atribuições administrativas ou ao comprometimento de suas atividades. A restrição proposta pelo extinto MARE parece equiparar-se à hipótese de prestação de serviços públicos essenciais de execução contínua prevista no inciso III do artigo 57 do Projeto de Lei aprovado pelo Congresso (que originou a Lei nº 8.666/93), porém vetada pelo Presidente da República.
Essa compreensão, seguida pelo TCU, leva a transtornos inequívocos e pode, seguida radicalmente, descambar em prejuízo ao atendimento do interesse público.
Admitindo a interpretação restritiva do inciso II do artigo 57, conforme disposto pela IN nº 18 do extinto MARE, imaginemos uma contratação de prestação de serviço de execução continuada (Ex: Manutenção de um equipamento, não vinculado ao essencial desempenho das atribuições administrativas ou ao comprometimento de suas atividades), [16] cujo tempo de execução deva ser de 04 meses; usando a compreensão literal do caput do artigo 57 (pressupondo que a prestação pretendida não se enquadra nas exceções deste dispositivo), caso essa necessidade ocorra após o mês de setembro, num determinado órgão, restaria prejudicada sua contratação, já que a relação contratual não poderia perdurar além do dia 31 de dezembro e não poderia ser prorrogada (não cabe aqui, também, a aplicação das hipóteses previstas no § 1 º do artigo 57).
Qual seria a solução para o órgão contratante? Esperar janeiro para realizar o negócio jurídico? Decerto que impor esse rigor formal seria absurdo, um disparate.
Marçal é um crítico da imposição desse elemento de essencialidade, defendendo, em sua já clássica obra, que não há fundamentos que respaldem essa orientação e que "invocar a presença de um serviço essencial para aplicar o dispositivo equivale a ignorar a razão de ser do dispositivo". [17]
Assiste razão ao renomado doutrinador, os limites para incidência do dispositivo (inciso II do artigo 57) já estão expressamente previstos, não havendo motivo evidente para o elemento de essencialidade que se pretende impor. Devemos ressaltar, todavia, que tal interpretação restritiva é fulcrada na preocupação dos órgãos de controle com a prorrogação indiscriminada de serviços, prejudicando a competitividade pela continuidade de contratações não essenciais.
Essa preocupação, que é justa, ignora que a possibilidade de prorrogação pode servir como fomento à competitividade, permitindo a percepção de melhores preços, pelos reflexos naturais que uma maior extensão contratual pode causar no interesse dos participantes. Ademais, como elemento condicionante da prorrogação, a própria Lei já estipula a necessidade de vantagem em relação aos preços praticados no mercado.
O pensamento em contrário conduz a uma extravagante situação em que, nos contratos de execução continuada que não se vinculem a atividades essenciais da Administração ("necessários o desempenho de suas atribuições, cuja interrupção possa comprometer a continuidade de suas atividades"), para a necessária continuidade de sua execução, é melhor a realização de novo certame, embora em prejuízo do interesse público, pela perspectiva de preços maiores de contratação.
Uma saída jurídica parece ser a interpretação ampla do conceito de serviço contínuo, de forma que a "essencialidade" deva ter relação não apenas com a natureza da atividade administrativa, mas também com a atividade contratada. Esse elemento deixaria de ser concebido como uma imposição técnica, para ser consagrado como algo intrínseco à pretensão contratual. Uma pretensão contratual que, por sua natureza, exija essencialmente dilação da prestação contratual, deve ser interpretada como serviço contínuo, o que permitiria que seu edital previsse a prorrogação, mesmo não tendo relação com atividades essenciais do órgão administrativo.
Essa percepção também permite uma atitude racional em relação aos contratos de prestação de serviços que, embora de curta execução e despidos de essencialidade em relação à atividade administrativa, tem sua continuidade exigida pela própria natureza das obrigações envolvidas, como a garantia contratual dos serviços prestados, que podem se estender além do exercício financeiro.
Com esse entendimento, ignorando a citada Portaria do extinto MARE e sua interpretação restritiva, podemos resolver alguns dos problemas causados pela precária regulamentação legal acerca da matéria, deixando de impor uma essencialidade inexistente na Lei e, ao mesmo tempo, impedir a prorrogação de serviços cuja execução continuada não faça parte da essência da prestação contratada.
Impor, como pretendem alguns, uma interpretação exageradamente restritiva do que possa ser os serviços contínuos autorizados pelo legislador, cria mais problemas que soluções no seio da Administração Pública.
4. CONCLUSÃO
Em conclusão, reiteramos que, ao menos em relação às prestações contratuais que ensejam dispêndio de recursos públicos, faz-se necessário vincular, como regra, a duração dos contratos à vigência dos créditos orçamentários, não apenas pela disposição do artigo 57 do estatuto licitatório, mas como efeito do planejamento orçamentário, respeito ao princípio da interdependência entre os Poderes e do conceito de gestão fiscal responsável aprimorado com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Essa compreensão é apenas limitada nas exceções previstas pela Constituição e pela Lei Complementar nº 101, por autorização constitucional, o que não engloba a hipótese de serviços contínuos, do que resulta ser inadmissível a estipulação de contratos de execução continuada que extrapolem o exercício financeiro, sobre o argumento de adequação ao inciso II do artigo 57 da Lei nº 8.666/93.
Nesses casos, há uma necessária vinculação temporal do contrato aos respectivos créditos orçamentários, sendo possível a prorrogação contratual nos limites permitidos pela legislação. Noutro diapasão, as hipóteses de serviços de execução continuada devem ser mais amplas do que aquela imposta pelo extinto MARE e adotada pelo Tribunal de Contas da União, permitindo-se, em resumo, a prorrogação em todas situações em que a execução continuada seja não apenas essencial à atividade administrativa, mas também natural à atividade contratada.
Notas
01 Vide sua obra: Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Dialética. 11ª Edição. Pág. 505.
02 Idem.
03 Curso de Licitações e contratos administrativos. Ed. Atlas. Pág. 245.
04 TCU - Acórdão nº 3.564/2006 - 1ª Câmara
05 Licitações & Contratos, Orientações básicas. 3ª Edição. Pág. 243
06 Idem.
07 TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2ª Edição. Método. Pág. 316.
08 DEZEN JÚNIOR, Gabriel. Curso Completo de Direito Constitucional. Volume I. 8ª Edição. Vestcon. Pág. 701.
09 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 3.ª ed. Saraiva. 2001. p. 1109.
10 CARVALHO, André Régis de. (Tese) Unbalancing powers: where are the governos? Strengthening of the Federal Government and the Emergence of the New Federalism in Brazil. 2006. Orientador: David Plotke. New School for Social Research, N.S.S.R., Estados Unidos.
11 MARTINS, Ives Gandra e NASCIMENTO, Carlos Valder do. (Org.). Comentários à Lei de Responsabildiade Fiscal. 2001. Saraiva. Pág. 116/117.
12 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. Ed. Manole. 2007 (Traduzido para o português).
13 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. 2006. Editora Ícone. (traduzido para o português)
14 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. 2006. Malheiros. Pág. 545.
15 Licitações & Contratos, Orientações básicas. 3ª Edição. Pág. 335.
16 Lembramos que a 1ª Câmara do TCU decidiu que os serviços de manutenção, instalação (montagem e desmontagem) de paredes divisórias, armários embutidos, balcões etc. com fornecimento de materiais, não tem natureza contínua, não podendo ser aplicado o disposto no art. 57, II, da Lei nº 8.666/1993 (Acórdão nº 1.331/2007)
17 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11ª Edição. Dialética. Pág. 504.