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A possibilidade [mínima] de ANPP após a prolação de sentença condenatória

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Alguns defendem a possibilidade do ANPP para fatos anteriores à lei somente até o recebimento da denúncia, outros somente até a sentença e, por fim, há quem defenda até o trânsito em julgado definitivo da condenação.

Serei sucinto sobre um assunto complexo e, ainda, controvertido acerca do acordo de não persecução penal (ANPP), a partir de um caso concreto inserido em processo recentemente arquivado no STF, no qual, enquanto Advogado, atuando pro bono publica, obtive êxito.

O ANPP foi inserido no CPP por força da Lei n. 13.964, de 24.12.2019,[2] ao trazer o novel art. 28-A,[3] pegando emprestado o modelo já existente na legislação processual italiana. Mas, com precário nível técnico, isso a partir da sua denominação.[4] Nesse sentido:

Portanto, seguindo esta tendência, em junho de 2015 entrou em vigor a nova redação do artigo 131, bis, do Código Penal Italiano, no qual crimes com pena máxima de até cinco anos, e desde que não haja relevante consequência, nem seja o autor do fato um a pessoal habitualmente envolvida em crimes, poderá o Ministério Público propor o arquivamento fundamentadamente. Esta medida foi adotada até mesmo na Itália recentemente, mesmo havendo a previsão expressa da obrigatoriedade da ação penal no artigo 112 da Constituição daquela Nação. Porém, a lei utilizou a saída de se estabelecer que nestas hipóteses não seria crime, no aspecto material. Curiosamente, as reclamações sobre estes arquivamentos partiram de setores ligados à defesa daquele país, e não dos órgãos estatais.[5]

Antes da alteração do CPP o ANPP já vinha sendo aplicado, por força da Resolução n. 181, de 7.8.2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, em seu art. 18, já o previa. Com o advento da nova lei, retornou uma velha discussão já travada noutros momentos, eis que a norma é mista, tendo conteúdo material mais benéfico ao suposto agente. Ela será retroativa?

Por fatos de 27.5.2019, um homem foi denunciado no dia 13.8.2019, como incurso nas penas dos artigos 147 e 345 do CP (respectivamente, ameaça e exercício arbitrário pelas próprias razões) e art. 14 da Lei n. 10.826, de 22.12.2003 (porte de arma). Ele me pediu ajuda e, em resposta acusação, sustentei a ilegitimidade ativa do MPDFT para o crime do art. 345 do CP, por ser de ação de iniciativa exclusivamente privada (art. 345, parágrafo único do CP), o que foi acolhido.

Na sentença, de 2.12.2019, houve absolvição do crime do art. 147 do CP e condenação pelo do art. 14 da Lei n. 10.826/2003. Pena aplicada, 2 anos de reclusão e 10 dias-multa. Então, houve apelação do sentenciado, em 8.12.2019.

No dia 20.2.2020 os autos retornaram à vara de origem, momento em que foi requerido o ANPP, visto que já tinha se passado o prazo de vacatio legis (30 dias), ex vi do art. 20 da Lei 13.964/2019. Porém, o juízo não se pronunciou e restituiu o processo para a turma criminal. Ali, requereu-se ao relator da apelação o ANPP.

Os autos foram enviados ao MPDFT, o qual sustentou a preclusão, concretizada pela prolação da sentença condenatória. A turma, por maioria, negou provimento à apelação. Então, foi interposto Embargos Infringentes, conhecido e, por maioria, improvido.

Foram interpostos Recurso Especial (REsp) e Recurso Extraordinário (RE). Mas, esqueci de juntar a petição deste último, embora tenha pagado as suas custas e elaborado a petição de interposição.

O relator do REsp conheceu do recurso e julgou o mérito monocraticamente, negando provimento ao mesmo. Então, sobreveio agravo interno, o qual foi conhecido e improvido.

Em favor do condenado, impetrei habeas corpus substitutivo do recurso. Fiquei preocupado porque o relator é Pastor de igreja evangélica e o paciente é notório homossexual. Fui surpreendido pela liminar concessiva da ordem de habeas corpus. A Procuradoria-Geral da República interpôs agravo interno, o qual foi conhecido e improvido, nos seguintes termos:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ART. 28-A DO CPP. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL.  NORMA DE NATUREZA MISTA OU HÍBRIDA (MATERIAL E PROCESSUAL). APLICAÇÃO RETROATIVA A PROCESSOS EM CURSO QUANDO DA ENTRADA EM VIGOR DA NORMA. LIMITE TEMPORAL: TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO. DESNECESSIDADE DE CONFISSÃO ANTERIOR.

1. O art. 28-A do CPP é norma de natureza híbrida, ou mista, porque, embora discipline instituto processual, repercute na pretensão punitiva (de natureza material), devendo retroagir, ante o princípio da retroatividade da norma penal benéfica (CRFB, art. 5º, inc. XL).

2. O conteúdo processual da norma (e do instituto) obriga observar como marco temporal o momento processual do ANPP, e não o tempus delicti.  3. A retroatividade alcança processos em curso, tendo como limite o trânsito em julgado, pois, após esse momento, encerra-se a persecução penal e inicia-se a persecução executória.

4. O recebimento da denúncia e a existência de sentença condenatória não impedem a propositura do acordo.

5. No ANPP, a confissão não se destina à formação da culpa, podendo, então, haver retroação da norma a acusados não confessos, ainda que condenados, desde que o façam posteriormente, nos termos da lei.

6. O julgamento definitivo do Habeas Corpus n. 185.913/DF pelo Plenário, certamente, contribuiria para a segurança jurídica e a pacificação social sobre o tema. No entanto, após as idas e vindas concernentes à sua pauta, a análise da matéria tornou-se imperativa, sob pena de negar-se jurisdição, especialmente diante de recentes pronunciamentos de Ministros da Segunda Turma.

7. Agravo regimental do Ministério Público Federal ao qual se nega provimento.[6]

A matéria é controvertida, sendo que alguns defendem a possibilidade do ANPP para fatos anteriores à lei somente até o recebimento da denúncia, outros somente até a sentença e, por fim, há quem defenda até o trânsito em julgado definitivo da condenação. Essa última é a minha posição.

O Habeas Corpus n. 185.913/DF foi afetado ao plenário do STF. Seu relator é o Ministro Gilmar Mendes, o qual, ao afetar ao Tribunal Pleno, demonstrou as divergências internas sobre a matéria. A divergência está presente, também, na doutrina.[7]

Com esse texto espero contribuir para a evolução do conhecimento da matéria e, especialmente, com aqueles que desejam um caminho para o sucesso perante algum tribunal, isso acerca retroatividade da ANPP aos fatos que são anteriores à Lei n. 13.964/2019.


[2] Também denominado de pacote anticrime, a ementa da lei [Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal] demonstra o quanto o seu ardoroso defensor, ex-Juiz Federal e então Ministro da Justiça, é pedante.

[3] Código de Processo Penal:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

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§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:

I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;

II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e

IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.

§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.

§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.

§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.

§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo.

§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.

§ 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.

§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia.

§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.

§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo.

§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.

§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.

[4] JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Primeiras impressões sobre a Lei n. 13.964/2019, aspectos processuais. In MADEIRA, Guilherme; BADARÓ, Gustavo; CRUZ, Rogério Schietti (Coord.). Código de processo penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. v. 1, p. 384-385.

[5] MELO, André Luís Alves de. A disfuncional confissão no acordo de não persecução penal (ANPP). Consultor Jurídico, MP no Debate, 21.12.2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-dez-21/mp-debate-disfuncional-confissao-acordo-nao-persecucao-penal/#:~:text=O%20ANPP%20(Acordo%20de%20N%C3%A3o,no%20artigo%203%C2%BA%20do%20CPP.>. Acesso em: 19.12.2023, às 19h.

[6] BRASIL. STF. 2ª Turma. Habeas Corpus n. 214.456/DF. Min. André Mendonça. Julgamento, em 3.7.2023.

[7] (1) Não comentou, inicialmente, a retroatividade da lei: NUCCI, Guilherme de Souza. Pacote Anticrime comentado: Lei n. 13.964, de 24.12.2019. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 60-66. (2) Equivocadamente, sustenta-se que o STF firmou jurisprudência no sentido de ser cabível o ANPP somente para fatos anteriores ao recebimento da denúncia: GARCETE, Carlos Alberto. 80 anos do código de processo penal: a paulatina naturalização do sistema acusatório. In MADEIRA, Guilherme; BADARÓ, Gustavo; CRUZ, Rogério Schietti (Coord.). Código... (op. cit.). p. 233.

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Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. A possibilidade [mínima] de ANPP após a prolação de sentença condenatória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7482, 26 dez. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107779. Acesso em: 3 mai. 2024.

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