Os grandes centros urbanos do Brasil vêm sofrendo muito nos últimos anos com a crescente violência e surto de crimes patrimoniais. Os furtos e roubos de cartões de crédito e celulares têm se proliferado em velocidade alarmante em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro. E boa parte dos crimes são perpetrados em plena luz do dia, em locais de grande circulação, tidos como cartões postais. É o que ocorre, por exemplo, na Avenida Paulista – um dos pontos mais icônicos da capital paulista – onde somente em 2022 foram registrados mais de cinco mil furtos e roubos de celular1.
Se há dez anos atrás ter a carteira furtada ou roubada era um dos maiores pesadelos do transeunte paulistano, atualmente o problema é substancialmente maior quando temos o celular subtraído. Isto porque, na última década, houve grandes avanços da tecnologia e acelerada integração informatizada entre aplicativos, de modo que, nos dias de hoje, os celulares são o principal repositório e fonte de armazenamento de informações sensíveis, como dados pessoais e bancárias, conteúdos íntimos, etc. E, para piorar, há muitas pessoas que guardam o cartão de crédito na capinha do celular, em substituição da carteira.
Ainda que protegidos por senha, os criminosos já encontraram soluções tecnológicas para transpor as travas de segurança dos aparelhos. Assim, minutos após o furto ou roubo, os infratores potencialmente têm acesso aos aplicativos bancários das vítimas, realizando diversas transações fraudulentas até que a conta seja esvaziada e o limite dos cartões estourado.
Quando as tradicionais carteiras (contendo documentos e cartões de crédito, obviamente) são subtraídas, o prognóstico também não é animador, pois milhares de consumidores aderiram à modalidade de pagamento por aproximação, que dispensa a digitação de senha para aprovação da compra. Ademais, mesmo que se desconheça a senha, a posse do cartão físico e do documento de identidade da vítima possibilita a realização de compras online, pois os bandidos têm acesso à numeração e código de segurança do cartão e CPF do titular.
Mas o pior cenário certamente ocorre quando os cartões são surrupiados em conjunto com o celular, pois, tendo acesso aos aplicativos de banco e e-mail das vítimas, é possível que os criminosos alterem e/ou descubram a senha dos plásticos, além de poderem realizar compras por aproximação ou online. Por fim, alguns bancos ainda disponibilizam em seus aplicativos a ferramenta de criar um cartão de crédito virtual, o qual, sem dúvidas, também pode ser utilizado pelos fraudadores para tirar ainda mais dinheiro da vítima.
Neste contexto fático, indaga-se: as vítimas que tiveram prejuízo financeiro devido a furto ou roubo de cartão e/ou celular têm algum direito de indenização perante suas respectivas instituições financeiras? Abaixo, apresentaremos alguns elementos jurídicos que ajudarão a delinear a resposta.
Em primeiro lugar, é necessário pontuar que as relações comercias entre cliente e banco são regidas pelo Código de Defesa do Consumidor (“CDC”), o qual estabelece em seu art. 14 que os fornecedores de serviços (inclusive bancários e de crédito) têm responsabilidade objetiva (aquela que independe de culpa) pelos prejuízos advindos aos seus clientes:
“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido.”
Trata-se de consectário jurídico da teoria do risco da atividade, segundo a qual o agente que desenvolve e explora atividade econômica potencialmente lesiva deve se responsabilizar pelos vícios, defeitos e riscos do serviço prestado, independentemente de culpa. Segundo Maria Helena Diniz2:
“A responsabilidade objetiva funda-se num princípio de equidade, existente desde o direito romano: aquele lucra com uma situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes (ubi emolumentum, ibi onus; ubi commoda, ibi incommoda)”
Do ponto de vista do consumidor, nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves3, “basta a prova da relação de causalidade entre a conduta e o dano” para que surja o direito de indenização pelo dano sofrido. Frise-se que a aplicabilidade do CDC aos bancos já foi pacificada pelo STJ na Súmula 279: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.
Registre-se, outrossim, que a prática de crime (ato de terceiro) não afasta, automaticamente, a responsabilidade das instituições financeiras, vez que há ilícitos criminais e civis que se inserem no risco inerente à atividade bancária, não podendo ser considerados exclusivamente problemas de segurança pública.
Como as transações fraudulentas são realizadas dentro do ambiente bancário (aplicativos e, possivelmente, em caixas eletrônicos) e também por intermédio de produtos disponibilizados pelos bancos (cartão de crédito, cartão virtual, etc.), as circunstâncias do caso concreto podem ensejar a ocorrência de fortuito interno, decorrente do risco inerente à atividade bancária, possibilitando a responsabilização das instituições financeiras nos termos da Súmula 479 do STJ:
“As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.”
Pois bem. Nos casos de furto ou roubo de cartões e celulares, é comum que as transações fraudulentas sejam realizadas de maneira sequencial, movimentando-se substanciais quantias em curto espaço de tempo, muitas vezes no mesmo estabelecimento e em total discrepância com o perfil de consumo da vítima.
Tais fatos indicam a ocorrência de “fortuito interno”, consubstanciado pela falha no sistema bancário de segurança e de prevenção à fraude, com violação aos deveres de guarda e custódia do patrimônio do correntista – deveres estes que são inerentes e indissociáveis da atividade bancária típica. Sobre o tema, Sobre o tema, Gustavo Tepedino4 ensina:
“Nesse cenário, e considerando que, na sociedade cada vez mais complexa e industrializada, os danos "devem acontecer", cunhou o conceito de caso fortuito interno, assim entendido o evento que se liga à pessoa ou à organização da empresa, ou seja, aos riscos da atividade desenvolvida pelo agente, e incapaz de exonerá-lo. Afinal, cuida-se de fatos que, embora fortuitos, se encontram contidos no âmbito da atividade em cujo desenvolvimento deu-se o dano. Passou-se, assim, a entender que os danos decorrentes dos eventos relacionados à pessoa ou à empresa do agente se conectam a ela por nexo de causalidade e deveriam por ela ser evitados, razão pela qual deve por eles responder.”
Saliente-se, porém, que o ônus de provar a violação ao perfil de gastos incumbe ao consumidor, pois se trata de prova de fácil produção, bastando que o cliente solicite seus extratos bancários e faturas à instituição financeira. Em posse de tais documentos, é possível aferir se as transações ilegítimas são – objetivamente – discrepantes ou não do padrão habitual de consumo do correntista vítima de fraude.
Como não poderia deixar de ser, este entendimento tem sido acolhido (embora não de forma unânime) pela jurisprudência pátria. A título de exemplo, colacionamos abaixo ementa de recente julgado TJSP que corrobora a tese esposada neste artigo. Confira-se:
“APELAÇÃO – FURTO DE CARTÃO - OPERAÇÕES FRAUDULENTAS – Pretensão da autora de reforma da respeitável sentença de improcedência dos pedidos de declaração de inexigibilidade de débito e de restituição de valores – Cabimento – Hipótese em que cabia ao agente financeiro demonstrar a regularidade das movimentações financeiras – Ocorrência de falha nos sistemas de segurança bancários – Contratação de quatro empréstimos no mesmo dia e realização de transferências expressivas ao longo de poucas horas – Operações fora do padrão de consumo da autora – Má prestação de serviços que evidencia a responsabilidade da instituição financeira pelos danos causados – Fraude praticada por terceiro que não exime o banco de responder pelos prejuízos causados ao consumidor (Súmula 479, STJ) – Danos materiais decorrentes de transações fraudulentas – Restituição na forma simples, em razão da inexistência de má-fé do banco – Dano moral configurado pelo desgaste físico, emocional e psíquico enfrentado pela autora, bem como pelo prejuízo financeiro - Indenização por dano moral fixada em R$ 5.000,00 que se mostra razoável – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.”5
Diante das premissas acima fixadas, recomenda-se que as vítimas de fraudes bancárias decorrentes de furto ou roubo de celular e cartão de crédito comuniquem os fatos – tão logo possível – ao banco responsável, solicitando o bloqueio imediato da conta e de todos os cartões. Após, o consumidor deverá registrar boletim de ocorrência, encaminhando-o em seguida ao banco para formalizar a contestação de eventuais transações fraudulentas perpetradas após o crime.
Caso a contestação administrativa do cliente seja negada, orienta-se que a vítima procure um advogado especialista em fraudes bancárias para estudar a viabilidade de um processo judicial para obter indenização dos prejuízos sofridos.
Notas
1 Fonte: G1/Fantástico. <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2023/03/27/sao-paulo-teve-mais-de-200-mil-registros-de-ocorrencias-de-furto-e-roubo-de-celular-em-2022-mostra-levantamento.ghtml > Acesso em 04.04.2023.
2 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil, v. 7. 35ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 68.
3 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil, v. 4. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 362.
4 TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil, v. 4. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 110.
5 TJSP. Apelação Cível nº 1000227-38.2022.8.26.0604, 13ª Câmara de Direito Privado, j. em 13.03.2023