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Do direito à liberdade de expressão e da proibição ao discurso de ódio

09/01/2024 às 21:55

Resumo:


  • A Constituição Federal do Brasil de 1988 assegura o direito à liberdade de expressão, mas não permite o anonimato, garantindo o direito de resposta e indenização por danos.

  • O discurso de ódio ("hate speech") não é protegido pela liberdade de expressão e é combatido para preservar a dignidade humana e a igualdade.

  • As limitações à liberdade de expressão devem respeitar outros direitos fundamentais, como a vida, a igualdade e a dignidade da pessoa humana.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A liberdade de expressão tem limites: o discurso de ódio ataca a dignidade humana e a igualdade, exigindo repreensão da sociedade.

Palavras-chave: Constituição Federal. Direito à liberdade. Liberdade de expressão. Hate Speech. Discurso de ódio.


Introdução

A Constituição Federal de 1988 surgiu durante um processo de redemocratização do país, no qual visou-se afastar o período da ditadura com a previsão de diversos direitos e garantias fundamentais. É inegável que referido período representa uma ferida na história do país, sendo certo que foi marcado por abusos de poder, um regime totalitário e situações de censura política, ideológica, artística e jornalística.

Passados pouco mais de trinta e cinco anos da promulgação da Carta Magna, ainda são enfrentados diversos percalços para o pleno alcance dos direitos e garantias que esta buscou conferir. O presente artigo abordará um destes direitos expressamente previstos na Carta Magna: a liberdade de manifestação de pensamento.


Da liberdade de expressão

O art. 5º, em seus incisos IV e V, assim prevê:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros, residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

(...)

Em primeiro, há que se mencionar que a liberdade está inserida no caput do art. 5º da Carta Magna, sendo este um dos direitos fundamentais de importância mais consagrada.

Segundo bem preceituam Ingo Wolfgang, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero:

De acordo com o que se verifica a partir da dicção do art. 5º, caput, da CF, a liberdade constitui, juntamente com a vida, a igualdade, a propriedade e a segurança, um conjunto de direitos fundamentais que assume particular relevância no sistema constitucional brasileiro.1

Para alcançarmos a ideia inicial de liberdade, deve-se retomar ao conceito trazido pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que em 1789 preceituou:

Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.

Nota-se que o conceito de liberdade partia do pressuposto de que o homem poderia fazer tudo aquilo que não prejudicasse o próximo, ou seja, sua liberdade alcançaria até a liberdade do seu semelhante, não podendo quaisquer destes ultrapassá-la para não avançarem nos limites de cada qual.

Ademais, a liberdade abrangeria tudo aquilo que não fosse vedado em lei.

Acerca do assunto, Ingo Wolfgang e outros acrescentam:

O preceito consagra a ideia liberal originariamente presente no pensamento dos autores clássicos do liberalismo, segundo a qual todo ser humano possui uma área ou esfera de liberdade pessoal que não pode ser de qualquer modo violada e na qual pode desenvolver suas faculdades e vontades naturais livres de qualquer interferência externa. Já no âmbito do constitucionalismo brasileiro, nos comentários ao art. 72, caput, da Constituição de 1891, Carlos Maximiliano conceituava a liberdade como “o direito que tem o homem de usar suas faculdades naturais ou adquiridas pelo modo que melhor convenha ao mais amplo desenvolvimento da personalidade própria, sem outro limite senão o respeito ao direito idêntico atribuído aos seus semelhantes.2

Há que se acrescentar que, entre a liberdade e legalidade, há uma congruência de inegável importância. A Constituição Federal expressamente prevê, em seu art. 5º, inciso II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Desta forma, a liberdade representará fazer tudo aquilo que não prejudique outro particular e que não esteja vedado em lei.

Insta salientar que este conceito se aplica somente aos particulares, uma vez que, para a Administração Pública deve haver prévia permissão legal para que esta atue, ou seja, subordina-se a legalidade para sua atuação.

Pois bem, abordado este conceito inicial acerca da liberdade trataremos agora do objeto deste artigo, qual seja, a liberdade de manifestação do pensamento.

Com efeito, verifica-se que está expressamente previsto na Constituição Federal que é livre a manifestação do pensamento, vedando-se tão somente o anonimato.

A princípio incumbe mencionar que a liberdade de manifestação do pensamento possui um grande histórico de previsão constitucional.

Segundo Ingo Wolfgang e outros:

(…) é preciso registrar que tais liberdades se fazem presentes na trajetória constitucional brasileira desde a Carta Imperial de 1824. Com efeito, de acordo com o art. 179, IV, daquela Constituição, “todos podem communicar os seus pensamentos, por palavras, escriptos, e publical-os pela Imprensa, sem dependencia de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que commetterem no exercicio deste Direito, nos casos, e pela fórma, que a Lei determinar”. Na Constituição de 1891, art. 72, § 12, constava que “em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato”. O texto da Constituição de 1934, todavia, foi mais detalhado, como se percebe da redação do art. 113, n. 9: “Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos independe de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política ou social”.

Inserido no contexto da assim chamada ditadura do Estado Novo, o texto da Constituição de 1937 já reflete uma ideologia menos liberal, estabelecendo fortes limitações ao exercício da liberdade de expressão, como se percebe da redação do art. 122, n. 15 e alíneas a, b e c, de acordo com o qual “todo cidadão tem o direito de manifestar o seu pensamento, oralmente, por escrito, impresso ou por imagens, mediante as condições e nos limites prescritos em lei. A lei pode prescrever: a) com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia da imprensa, do teatro, do cinematógrafo, da radiodifusão, facultando à autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou a representação; b) medidas para impedir as manifestações contrárias à moralidade pública e aos bons costumes, assim como as especialmente destinadas à proteção da infância e da juventude; c) providências destinadas à proteção do interesse público, bem-estar do povo e segurança do Estado”.

Fruto da derrocada do período autoritário anterior, mas ainda assim estabelecendo algumas limitações ao exercício da liberdade de expressão, a Constituição de 1946, no seu art. 141, § 5.º, estabelecia que “é livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos casos e na forma que a lei preceituar, pelos abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe”. Tal fórmula foi seguida quase que integralmente pela Constituição de 1967, como se verifica mediante a leitura do art. 150, § 8.º: “É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica e a prestação de informação sem sujeição a censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos independe de licença da autoridade. Não será, porém, tolerada a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe”.

Por fim, mediante alteração introduzida pela EC 1/1969, o art. 153, § 8.º(antigo art. 150), passou a ser redigido da seguinte maneira: “É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, bem como a prestação de informação independentemente de censura, salvo quanto a diversões e espetáculos públicos, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da autoridade. Não serão, porém, toleradas a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes”.3

Percebe-se que, ao longo do tempo, o conceito de liberdade sofreu algumas alterações quanto a previsão constitucional, sendo certo que com o contexto trazido pelo Estado Novo refletiu-se uma ideologia menos liberal e com expressas possibilidades de censura realizadas pelo Estado.

Posteriormente, com o período autoritário que se seguiu, em que pese a previsão de “livre manifestação do pensamento, de convicção política ou filosófica” é cediço que a censura se propagou, atingindo manifestações políticas, artísticas e culturais.

Ultrapassado referido período, com a promulgação da Carta Magna de 1988, o poder constituinte buscou afastar o passado, até então recente, com uma Constituição Federal enriquecida por diversos direitos e garantias fundamentais, os quais buscavam alcançar um real Estado Democrático de Direito.

Já em seu preâmbulo a Carta Magna demonstrou a sua face mais garantista, com valores sociais e democráticos. Segundo Pedro Lenza:

No preâmbulo da CF/88 foi instituído um Estado Democrático, destinado a assegurar os seguintes valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias: (i) o exercício dos direitos sociais e individuais; (ii) a liberdade; (iii) a segurança; (iv) o bem-estar; (v) o desenvolvimento; (vi) a igualdade; (vii) a justiça.4

E ainda, acerca da declaração de direitos complementa:

Os princípios democráticos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos estão consolidados no texto, consagrando direitos fundamentais de maneira inédita, por exemplo, ter tornado o racismo e a tortura (que já havia sido abolida – art. 179, XIX, da Constituição de 1824) crimes inafiançáveis;5

Acerca da Constituição Federal de 1988 afirma Bernardo Gonçalves:

Diferentemente de Constituições pretéritas, apresenta um sistema de direitos e garantias fundamentais logo no início do texto (dando-lhe ênfase). Nesse sentido, após os princípios fundamentais (que, para boa parte da doutrina apresentam como ponto fulcral a dignidade da pessoa humana), teremos o Título II dos direitos e garantias fundamentais, prevendo um rol exemplificativo de direitos individuais e coletivos, um rol de direitos sociais (incluindo direitos como os dos trabalhadores), direitos de nacionalidade, direitos políticos e de organização em partidos políticos. É bom que se diga que esses direitos fundamentais não estão apenas no Título ora referido, pois percorrem uma série de normas constitucionais. Nesse sentido, citamos apenas como exemplo os direitos ambientais (de 3ª dimensão) previstos no art. 225 da Constituição.6

Desta feita, verifica-se que a Carta Magna visou conferir diversos direitos fundamentais e sociais ao longo de seu teor, visando, principalmente, conferir a cada cidadão o alcance da dignidade da pessoa humana. Para tanto, abordou de forma analítica direitos sociais, de nacionalidade, direitos políticos, dentre outros.

Ultrapassado este estudo inicial incumbe trazer a deslinde o assunto tema deste artigo, qual seja, a liberdade de manifestação do pensamento.

Contudo, necessário se faz questionar, referida liberdade de manifestação de pensamento encontra alguma limitação?

A liberdade de manifestação do pensamento não se perfaz um direito absoluto, ultrapassados certos limites, possibilitar-se-á a responsabilidade civil e até mesmo criminal de quem agiu com indevido excesso. Além disso, há que se acrescer que é expressamente previsto constitucionalmente a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, conforme preceito contido no art. 5º, inciso X da Carta Magna.

Acerca do assunto Bernardo Gonçalves assim afirma:

Nesses termos, para a doutrina dominante, falar em direito de expressão ou de pensamento não é falar em um direito absoluto de dizer tudo aquilo ou fazer tudo aquilo que se quer. De modo lógico-implícito a proteção constitucional não se estende à ação violenta. Nesse sentido, para a corrente majoritária de viés axiológico, a liberdade de manifestação é limitada por outros direitos e garantias fundamentais como a vida, a igualdade, a integridade física, a liberdade de locomoção. Assim sendo, embora haja liberdade de manifestação, essa não pode ser usada para manifestações que venham a desenvolver atividades ou práticas ilícitas (antissemitismo, apologia ao crime e etc).7

Ademais, há que se trazer a deslinde que a liberdade de manifestação do pensamento traz em seu teor um aspecto positivo, qual seja, a possibilidade de exteriorizar a própria opinião, e um aspecto negativo, qual seja, a vedação à censura.

Há que se mencionar, ainda, que a Constituição Federal veda expressamente o anonimato. Isso ocorre como forma de proteção a pessoa eventualmente lesada por manifestação de outrem que ultrapasse os limites do aceitável.

O inciso V do art. 5º assim prevê: “V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;”.

Nesse sentido, em caso de danos a terceiros por manifestação de opinião caluniosa, difamatória, lesiva, ofensiva e que ultrapasse os limites do aceitável, poder-se-á utilizar do direito de resposta, ou desagravo, bem como, responsabilizar o causador por danos materiais, morais ou à imagem.

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Segundo leciona Nathalia Masson:

O que a Constituição não resguarda é o anonimato da manifestação. Isso porque eventualmente, no exercício dessa faculdade, o sujeito pode agir abusivamente e ferir direitos de outrem (honra ou imagem, por exemplo), ou até mesmo cometer um ilícito penal, casos em que sua identidade será imprescindível para viabilizar a responsabilização aplicável à hipótese.8

Há que se acrescer que outro efeito relacionado a vedação ao anonimato refere-se a impossibilidade de se aceitar denúncias anônimas para fundamentar a instauração de um inquérito policial.

Segundo Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:

A vedação ao anonimato impede, também, como regra geral, o acolhimento de denúncias anônimas (delação apócrifa), conforme se constata das seguintes conclusões do Min. Celso de Mello em importantíssimo julgado sobre o tema:

(a) os escritos anônimos não podem justificar, só por si, desde que isoladamente considerados, a imediata instauração da persecutio criminis, eis que peças apócrifas não podem ser incorporadas, formalmente, ao processo, salvo quando tais documentos forem produzidos pelo acusado, ou, ainda, quando constituírem, eles próprios, o corpo de delito (como sucede com bilhetes de resgate no delito de extorsão mediante sequestro, ou como ocorre com cartas que evidenciem a prática de crimes contra a honra, ou que corporifiquem o delito de ameaça ou que materializem o crimen falsi, p ex.);

(b) nada impede, contudo, que o Poder Público, provocado por delação anônima (“disque-denúncia”, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, “com prudência e discrição”, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da persecutio criminis, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas; e

(c) o Ministério Público, de outro lado, independentemente da prévia instauração de inquérito policial, também pode formar a sua opinio delicti com apoio em outros elementos de convicção que evidenciem a materialidade do fato delituoso e a existência de indícios suficientes de sua autoria, desde que os dados informativos que dão suporte à acusação penal não tenham, como único fundamento causal, documentos ou escritos anônimos.9

Desta feita, verifica-se que se sedimentou o entendimento de que não é possível a utilização de denúncia anônima, pura e simples, para a instauração de um procedimento criminal, uma vez que vai de encontro a norma prevista no art. 5º, inciso IV da Carta Magna.

Contudo, nada impede que o Poder Público, valendo-se de delação anônima adote medidas necessárias para averiguar a possível ocorrência de ilícito penal, possibilitando-se a constatação da verossimilhança dos fatos denunciados e, então, a posterior promoção da instauração da persecução penal.

Outro tema de suma importância a ser abordado no presente artigo diz respeito a problemática do “hate speech”, ou seja, o discurso de ódio.

Com efeito, é de suma importância mencionar que a liberdade de expressão é peça chave para uma nação democrática. Conforme já abordado, é preceito basilar da Carta Magna instituída em 1988, e através desta, permite-se a discussão livre de ideias, a participação efetiva do cidadão e o poder de decisão deste.

Contudo, há que se mencionar que a liberdade de expressão não pode ser confundida com a facilitação ao discurso de ódio. Em um primeiro momento incumbe mencionar que o discurso de ódio está relacionado a manifestações de intolerância, incitação ao ódio, ao desprezo em face de determinados grupos, geralmente motivadas por preconceitos relativos a religião, gênero, etnia, raça, dentre outros.

E quanto a isto questiona-se: o discurso de ódio seria autorizado em território nacional em razão da liberdade de manifestação do pensamento garantida constitucionalmente?

É importante mencionar que a redemocratização do Brasil pós período ditatorial é bastante recente. Desta feita, muito embora um debate livre e amplo de ideias seja importantíssimo e um dos objetivos de uma sociedade democrática, o exercício excessivo da liberdade de expressão, extrapolando os limites do tolerável e partindo para o discurso de ódio, para a discriminação de minorias, não deve ser aceito. Nesse sentindo, entende-se que relativizar e tolerar certas incitações e discursos de ódio referir-se-ia a um precedente perigoso.

Segundo Pedro Lenza, manifestando-se acerca de estudo e pesquisa elaborada por Daniel Sarmento:

Em suas conclusões, o Brasil, inclusive o nosso STF, não adotou o entendimento de que a garantia da liberdade de expressão abrangeria o hate speech. Ou seja, muito embora a “posição de preferência” que o direito fundamental da liberdade de expressão adquire no Brasil (com o seu especial significado para um país que vivenciou atrocidades a direitos fundamentais durante a ditadura), assim como em outros países, a liberdade de expressão não é absoluta, encontrando restrições “voltadas ao combate do preconceito e da intolerância contra minorias estigmatizadas”. 10

Neste ato, incumbe trazer a deslinde importante caso concreto julgado pelo STF, e grande marco acerca do tema, que abordou a prática ou não de crime de racismo cometido por um escritor de livros, em suposta discriminação contra judeus. Acerca do assunto, Daniel Sarmento assim dispôs:

(...) Tratava-se de ação penal por crime de discriminação racial proposta contra Siegfried Ellwanger, que escrevera, editara e publicara diversos livros com conteúdo anti-semita, que negavam a ocorrência do Holocausto e atribuíam características negativas ao caráter dos judeus. O tipo penal em questão era o do art. 20 da Lei 7.716/89, com a redação dada pela Lei 8.081/90, segundo o qual é crime sujeito à pena de reclusão de 2 a 5 anos e multa, “praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Inicialmente, teve a Corte que examinar se o conceito de racismo contido na Constituição abrangia ou não as ofensas perpetradas contra o povo judeu, já que, na impetração, sustentara-se, a partir de um conceito biológico/antropológico de raça, que as raças humanas seriam apenas a caucasiana, a negróide e a amarela. Se a resposta a esta questão fosse negativa, a consequência prática seria o reconhecimento da prescrição do ilícito penal, pois se o racismo é crime imprescritível por expresso comando constitucional, o mesmo não ocorre com outras formas de preconceito. O STF, no entanto, afastou este argumento, afirmando que o conceito de raça deve ser cultural, inclusive porque, do ponto de vista estritamente biológico, sequer é possível falar-se em diferentes raças humanas, em razão da desprezível diferença genética existente entre os indivíduos integrantes dos diversos grupos étnicos.

Em seguida, passou o STF a examinar a questão, levantada de ofício pelo Ministro Sepúlveda Pertence, acerca da possibilidade da incidência do tipo penal de racismo sobre atos como os de escrever e editar livros, tendo em vista a garantia constitucional da liberdade de expressão. Neste ponto, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Carlos Ayres de Britto, entendeu a Corte que deveriam prevalecer a igualdade racial e a dignidade humana das vítimas da manifestação racista.

(…)

Praticamente todos os votos colhidos ressaltaram que o caso envolveria a necessidade de uma ponderação de interesses entre, de um lado, a liberdade de expressão do paciente e, do outro, o direito à igualdade e à dignidade do povo judeu. A questão foi posta com muita clareza no voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que destacou a necessidade de utilização do princípio da proporcionalidade para correto equacionamento das tensões entre normas constitucionais abertas. Empregando este princípio, o Ministro conclui que a condenação de Siegfried Ellwanger fora constitucional, já que adequada para “salvaguarda de uma sociedade pluralista, onde reine a tolerância”, necessária em razão da inexistência de outro meio menos gravoso para atingimento do mesmo objetivo, e ainda proporcional em sentido estrito, uma vez que a “preservação dos valores inerentes a uma sociedade pluralista” e “da dignidade humana” compensavam o “ônus imposto à liberdade de expressão do paciente”. 11

Com efeito, em que pese a liberdade de expressão ser um dos mais importantes direitos fundamentais previstos em nossa Carta Magna, e cuja importância se faz inegável para uma sociedade democrática, não se pode negar que esta traz em seu teor a necessidade de respeito a certos limites, não se podendo aceitar que o indivíduo aja propagando o ódio e intolerância, uma vez que, a dignidade da pessoa humana deve ser respeitada e sempre prevalecer, assim como o princípio da igualdade.

É inegável que o discurso de ódio se perfaz um ataque contra o respeito, a tolerância, a inclusão das minorias e dos mais fragilizados, ferindo não só a diversidade, como também aos princípios já mencionados da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

Nessa toada, incumbe a própria sociedade repreender que tais discursos se propaguem no cotidiano, principalmente nas redes sociais, local este que tem se tornado palco de falas pungentes, discriminatórias, hostis e violentas.


Conclusão

Ante o exposto, infere-se que a imprensa e o governo possuem papel de inegável importância, com fulcro no ensinamento e reiteração da importância da tolerância e empatia, visando-se uma coexistência pacífica e respeitosa em um ambiente democrático e cujo debate de ideias permaneça respeitoso.

Por fim, há que se salientar que embora se adote a posição jurisprudencial de preferência a liberdade de expressão, conforme já relatado, este não é admitido como direito absoluto, motivo pelo qual, eventuais restrições são admitidas, ainda que em caráter excepcional, uma vez que estar-se-á a priorizar direitos e bens jurídicos constitucionais de caráter fundamental, tal qual a dignidade da pessoa humana.


Referências Bibliográficas

ARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional – 6. ed – São Paulo: Saraiva, 2017.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado – 20ª ed. - São Paulo: Saraiva, 2016.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional – 9 ed. - Salvador: JusPodivm, 2017.

MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional – 4. ed. - Salvador: Ed. Juspodivm, 2016.

PAULO, Vicente. ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 21. ed., Rio de Janeiro: Método, 2022.

SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “Hate Speech”, Disponível em: https://professor.pucgoias.edu.br/sitedocente/admin/arquivosupload/4888/material/a-liberdade-de-expressao-e-o-problema-do-hate-speech-daniel-sarmento.pdf,. Acesso em: 28/12/2023.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, Disponível em: https: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 28/12/2023.


Notas

  1. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional – 6. ed – São Paulo: Saraiva, 2017, n.p.

  2. Ibid, n.p.

  3. Ibid., n.p.

  4. LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado – 20ª ed. - São Paulo: Saraiva, 2016, p. 146.

  5. Ibid, p. 153.

  6. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional – 9 ed. - Salvador: JusPodivm, 2017, p. 283/284.

  7. Ibid., p. 427.

  8. MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional – 4. ed. - Salvador: Ed. Juspodivm, 2016, p. 239.

  9. PAULO, Vicente. ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 21. ed., Rio de Janeiro: Método, 2022, p. 19.

  10. Op. Cit, p. 1184.

  11. SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “Hate Speech”, Disponível em: https://professor.pucgoias.edu.br/sitedocente/admin/arquivosupload/4888/material/a-liberdade-de-expressao-e-o-problema-do-hate-speech-daniel-sarmento.pdf, pág 50/51.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Thaiane. Do direito à liberdade de expressão e da proibição ao discurso de ódio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7496, 9 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107995. Acesso em: 22 dez. 2024.

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