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Notas introdutórias ao direito comparado

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O direito comparado promove inicialmente objetivos práticos que atendem a aspectos profissionais da atividade negocial. O conhecimento de outros direitos pode calibrar opções de negócios, investimentos e interesses laborais. A multiplicação das relações internacionais em âmbito comercial, como reflexo da globalização, dá ao direito comparado nova feição. A inserção das empresas em novos mercados ou centros de produção exige que o empresário conheça os modelos normativos com os quais terá que se relacionar. Estudo prévio de ordenamentos jurídicos locais tem importância superlativa, que ultrapassa ao próprio conhecimento da língua e de rudimentos das culturas locais.

À margem dos direitos locais surgem também práticas comerciais e empresariais legitimadas por direito negocial que transcende aos direitos estatais. Revive-se uma lex mercatoria, exemplo de direito transnacional das transações econômicas, como sintoma do sucesso de ordem jurídica global que se desenvolve independentemente dos ordenamentos normativos estatais (cf. TEUBNER, 2003, p. 3). A elefantíase normativa que macula alguns direitos domésticos também é patologia da normatividade global. A multiplicação de direitos, internos e transnacionais, turbina a produção de leis, realizando-se exacerbação de normas que qualifica movimento de autopoiese, isto é, de avultamento de regras jurídicas, que se reproduzem de modo alarmante.

O direito comparado também propicia estudos de sociologia do direito. A afirmativa dá a disciplina sentido científico. O estudo de outros direitos desenvolve-se concomitantemente à pesquisa das sociedades nos quais os direitos se formatam. Exemplificando, é o estudo da sociedade norte-americana que pode nos iluminar em algumas questões verdadeiramente aporéticas, a exemplo do problema da pena de morte naquele país.

A constituição norte-americana proíbe penas cruéis. Porém, o direito norte-americano historicamente consagra a pena capital. O estudo das contradições internas daquela sociedade, marcada por disputas que envolvem problemas de discriminação racial, com raízes que se prendem à guerra civil, a par da percepção de questões referentes a imigração e a marginalização, possibilita que se entenda os porquês da aparente contradição. Max Weber, nome central nos estudos de sociologia, valeu-se exaustivamente de estudos de direito comparado.

A disciplina desempenha papel cultural de grande valia. O estudo dos direitos estrangeiros aventa leitura do mundo, de costumes, de práticas. É fonte inegável de enriquecimento cultural. O exame de sistemas normativos de outros povos oxigena a musculatura intelectual, tempera a curiosidade, aguça a inteligência, eleva o espírito. O direito comparado permite que se perceba com mais qualidade o direito interno. Tem-se que o direito comparado é útil para um melhor conhecimento do nosso direito nacional e para seu aperfeiçoamento (DAVID, 1986, p. 5). Problemas e soluções de outros direitos esclarecem as complicações do direito doméstico. É guia seguro para o legislador, para o julgador, para todos que vivem a aplicação da lei. Assim,

As vantagens que o direito comparado oferece podem, sucintamente, ser colocadas em três planos. O direito comparado é útil nas investigações históricas ou filosóficas referentes ao direito; é útil para conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito nacional; é, finalmente, útil para compreender os povos estrangeiros e estabelecer um melhor regime para as relações da vida internacional (DAVID, 1986, p. 3).

O direito comparado é prioritariamente tema de história, de filosofia e de teoria geral do direito (DAVID, 1986, p. 3). Do ponto de vista historiográfico, o direito comparado é componente discursivo da justificação dos modelos jurídicos. E porque a história é um guarda-roupa no qual cabem todas as fantasias, de tal modo que o presente olha para o passado e lá encontra a sua imagem, como quem se vê ao espelho (HESPANHA, 1998, p. 46), o direito comparado confunde-se com a narrativa histórica, e nesse sentido seu estudo exige cautelas.

O uso da história pelo direito pode ser jogo conceitual perigoso porque o jurista pode valer-se do passado para justificar o presente das instituições nas quais atua. Do mesmo modo, o direito comparado corre o risco de ser apoderado pelo estudioso do direito, no sentido de se justificar ou de se criticar o direito interno, sem se levar em conta outros fatores. Porém, independentemente das contrafações conceituais que possa ensejar, é inegável referencial de cultura jurídica:

A formação tradicional, nas faculdades de Direito dos diferentes países, exige atualmente uma complementação. A interdependência das nações e a solidariedade que envolve todo o gênero humano são fatos evidentes no mundo contemporâneo. O mundo tornou-se um só. Não é mais possível isolarmo-nos dos homens que vivem em outros Estados e em outras partes do globo. Suas maneiras de ver e de agir, sua opulência ou miséria, condicionam nosso destino. O mundo atual impõe, tanto aos políticos quanto aos economistas e aos juristas, uma nova visão dos problemas que lhes dizem respeito (DAVID, 1986, Prefácio).

O processo de globalização pelo qual o mundo presente passa amplia a necessidade de estudos de direito comparado. Primeiro momento sugere que estudemos os efeitos da globalização em relação ao direito interno. Do ponto de vista do direito fiscal, centro das reflexões do presente livro, pode se afirmar seguramente que o direito tributário doméstico promove mecanismos que possibilitam o aumento das imposições fiscais, dada a necessidade do Estado na obtenção de recursos para atender as pressões externas, entre outros, decorrentes da administração do serviço de nosso endividamento (cf. CHOSSUDOVSKY, 2003). O Estado brasileiro tende a ampliar suas bases impositivas mediante a utilização de contribuições, que por força de comando constitucional não precisam ser divididas entre os demais entes da federação.

No entanto, deve se pensar os efeitos da globalização também de forma centrífuga. Isto é, pode se cogitar de observarmos os outros ordenamentos, especialmente porque é momento de inserção da economia brasileira em vários nichos do globo. Constrói-se uma diplomacia pluralista, pragmática, orientada para atividades negociais em centros economicamente menos portentosos do planeta. O momento é de busca de outros modelos. E por isso,

Independentemente de qualquer preocupação acadêmica, as necessidades práticas exigem o conhecimento dos direitos estrangeiros. A movimentação das pessoas, das mercadorias, dos capitais tende, cada vez mais, a ignorar as fronteiras dos Estados. As relações internacionais ganharam, em todos os domínios, uma importância que aumenta a cada ano. A edificação de uma ordem jurídica que convenha a estas relações é uma tarefa que não pode ser realizada se as autoridades nacionais, com a falsa idéia de sua onipotência, ignoram o direito estrangeiro. A simples preocupação com a coexistência e, mais ainda, o estabelecimento da indispensável cooperação internacional, exigem que nos voltemos para os direitos estrangeiros (DAVID, 1986, Prefácio).

A essência do direito comparado é a comparação, e a asserção não é tautológica. Percepções de qualidade podem sugerir que se indiquem direitos melhores ou piores. Os direitos são apenas diferentes. O estudioso do direito comparado deve estar preparado para a armadilha que a disciplina lhe põe a todo o momento. O exercício da comparação não se fundamenta, necessariamente, em orientação que exija montagem de planisfério qualitativo. Em princípio, direitos não são melhores nem piores, mais ou menos avançados, mais ou menos iluminados. Os direitos são diversos.

Exemplifico com a utilização do direito islâmico convencional na Nigéria. Naquele país, em 2002, duas mulheres foram julgadas pelo crime de adultério. Uma delas foi condenada à morte por apedrejamento. A outra, Amina Lawal, foi absolvida pela corte de apelação do estado de Katsina, como resultado de pressão internacional. O episódio não significa, efetivamente, que o direito nigeriano de fundo islâmico possa simplesmente ser inapropriado para o mundo atual, no qual as relações conjugais poderiam estar relativizadas por alguns casais em sociedades mais avançadas.

Todavia, o pano de fundo é sempre plasmado na busca de soluções que permitam o desenvolvimento de um direito interno que seja melhor. E assim,

a ciência comparatista se identificaria com a pesquisa de um modelo melhor, conduzida mediante a análise do modelo estrangeiro. A especulação sem objetivo a respeito dos modelos jurídicos de diversos ordenamentos seria puro empirismo ou um exercício erudito, mas não ciência (SACCO, 2001, p. 26).

É o notável comparatista italiano quem adverte para o fato de que um sentimentalismo "meloso" tem de fato sugerido a idéia de que a comparação aumentaria a compreensão entre os povos e contribuiria para a coexistência das nações (SACCO, 2001, p. 26). O direito comparado não é instrumento que garanta melhor relacionamento entre os diversos povos; admitir-se a assertiva, como alertado, é atitude marcada por pieguice e ingenuidade conceitual. E por isso,

Uma idéia como essa nos levaria a crer que os poderes políticos que desencadearam as duas guerras mundiais talvez tivessem sido freados nos limiares da catástrofe, caso tivessem seguido cursos de direito comparado. Ou que Napoleão, o Grande, teria renunciado aos seus projetos de conquista se, além de ocupar-se do código que leva o seu nome, tivesse estudado suficientemente o gemeines Recht, a common law, e a kormcaja pravda (SACCO, 2001, p. 27).

O direito comparado esbarra no problema inevitável da língua. Porém, e a propósito dessa questão seminal, o comparatista italiano Rodolfo Sacco relacionava poliglota e lingüista, de modo a pensar no comparatista e no mero conhecedor de outros direitos. O estudo de outros direitos, por diletantismo, por curiosidade cultural, não enseja o implemento de atitude científica, que a comparação dos direitos contempla. A mera descrição fática, contingencial e residual de outros direitos não consegue transcender o entorno do litoral das curiosidades acadêmicas. A menção de outros direitos, como referencial de notícia, sem a verticalização que o exercício exige, é mero barroquismo, sem mais conseqüências objetivamente aferíveis. Em nota de rodapé, o comparatista italiano observou que

A diferença entre um poliglota e um lingüista nos pode ajudar a entender a diferença que há entre um comparatista e um simples conhecedor de diversos sistemas jurídicos. O poliglota conhece muitas línguas, mas não sabe mensurar as diferenças, nem quantificá-las, enquanto o lingüista sabe fazer todas essas coisas. Assim, o comparatista possui um conjunto de noções e dados pertencentes a diversos sistemas jurídicos, e sabe ainda colocá-los em confronto, computando suas diferenças e semelhanças (SACCO, 2001, p. 40).

Voltando ao problema glotológico, e valendo-me de exemplo mais simples, coloco o problema da tradução de textos não jurídicos para o português, nos quais haja expressões do direito. Imagine-se a tradução, por exemplo, dos livros de John Grisham, obras que têm como pano de fundo temas de direito. Refiro-me a livros como The Pelican Brief (O Dossiê Pelicano), The Client (O Cliente), The Firm (cuja tradução mais adequada deve ser A Banca, ou O Escritório de Advocacia e certamente não A Firma), The Testament (O Testamento), The Street Lawyer, que no Brasil foi traduzido como O Advogado, título que não capta a mensagem do livro, que trata de advogado de sucesso que deixa advocacia glamorosa e lucrativa para defender aos sem-teto de Washington.

Os problemas postos não são apenas de tradução, que poderiam ser resolvidos pelo adequado uso de dicionários de equivalência. A questão reside na dificuldade em encontrarmos expressões de nossa língua que possam exprimir instituições que desconhecemos, a exemplo de arraignment, cooling-off, disclosure, injunctive relief, mayhem, trust, tax racket, vicarious liability, yellowdog. E o contrário também sucede. Como verteríamos para o inglês expressões como litisconsórcio facultativo, suspensão da exigibilidade do crédito tributário por força de reclamações e recursos na esfera administrativa, exceção de pré-executividade, agravo retido, certidão positiva com efeitos de negativa?

Multiplique-se o problema para os vários modelos jurídicos que há. Nosso sistema normativo não é universal, nossas instituições não existem em todos os direitos. Muito mais do que metáforas, rodeios de linguagem ou explicações alongadas, o direito comparado subsume problema de domínio de língua que afasta da disciplina monoglotas e juristas que não se dispõem a entender além das fronteiras do direito que pretensamente dominam.

Levando-se a questão ao limite, poderia se duvidar da própria cientificidade do direito, se partirmos de percepção que nos indique universalidade como caráter identificador do que seja ciência. Assim, se a ciência fosse universal (e medicina, matemática, astronomia, por exemplo, assim o são), e o direito seria particular, dado que especialista em contratos nos Estados Unidos não saberia como lidar com o direito penal chinês, não se poderia cogitar da cientificidade do direito. Aliás, há filme hollywoodiano nesse sentido, Justiça Vermelha. Porém, em que pese diferentes, os sistemas normativos podem ser estudados de forma científica. O objeto parcial do estudo pode se apresentar como distinto, porém o método utilizado e os resultados procurados convergem epistemologicamente.

Remete-se a questão recorrente, a propósito da traduzibilidade (ou não) dos termos jurídicos (cf. SACCO, 2001, p. 51). Constatam-se problemas de tradução que decorrem da língua e que radicam no direito também. É que a norma jurídica preexiste à fórmula lingüística com a qual nós a descrevemos. Esse fato é mais evidente se a regra é de índole consuetudinária: em tal caso, vem formulada de modo adequado somente quando estudada por juristas profissionais (SACCO, 2001, p. 57). A passagem de conceito jurídico de língua para outra exige a formulação de homologação, por meio da qual o termo estrangeiro, que evoca instituição distinta, ganha vida no direito em que está sendo estudado (cf. SACCO, 2001, p. 67).

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Juristas comparatistas estudam sistemas jurídicos de diferentes nações, em escalas maiores ou menores. A macrocomparação ocupa-se com os contornos gerais de um sistema, sem se ater a problemas menores ou particulares. Preocupa-se com o modelo judicial, com as fórmulas utilizadas para se administrar a justiça e para se lidar com as questões que emergem da prática forense. A microcomparação, por outro lado, centra-se na preocupação em se estudar os métodos como se resolvem problemas particulares e específicos. A fronteira entre os dois modelos é flexível, e admite-se que ambos possam conviver com uma mesma pesquisa (cf. ZWEIGERT e KOTZ, 1998, p. 4). Mais especificamente, a macrocomparação se orientaria para a análise de sistemas pertencentes a famílias jurídicas diferentes. A microcomparação se dirigiria para o estudo de institutos de modelos jurídicos de uma mesma família normativa (cf. SACCO, 2001, p. 47).

A macrocomparação em princípio seria atividade científica mais ambiciosa, um pouco carente de corte específico que a limitasse de forma mais direta. Seria o caso, por exemplo, da comparação do sistema constitucional tributário brasileiro com o modelo constitucional tributário norte-americano. O estudioso constata em nosso modelo proliferação analítica de regras e percebe no sistema norte-americano laconismo conceitual, modelo sintético, que outorga ao legislador infra-constitucional espaço muito amplo de atuação, potencializado por atividade normativa dos agentes do executivo que seria impensável no modelo brasileiro. A microcomparação remete-nos a discussões que se desenvolvem em meios normativos que se comunicam com facilidade. É o caso de um estudo de fato gerador no modelo uruguaio ou no modelo italiano, quando a percepção ganha foros de muita proximidade.

O direito comparado remete-nos ao conceito de formante. Os ordenamentos possuem sub-cadeias compreensivas de normatividade. Teríamos assim, por exemplo, formantes legais e doutrinários. Parte-se da idéia de que muitos formantes devem ser identificados e analisados (cf. SACCO, 2001, p. 72). Especialmente porque os ordenamentos concentram-se em formantes distintos, a exemplo da dicotomia que o common law e a tradição européia manifestam em relação à produção pretoriana. Isso pode ser problemático, porque,

O jurista envolvido com um ordenamento diferente do seu muitas vezes tem dificuldade de percepção em relação aos formantes que não existem no seu sistema. Assim, por exemplo, os juristas anglo-americanos têm se mostrado impacientes e desconfiados diante das declarações ideológicas das leis socialistas, e diante das categorias dogmáticas (=definitórias) socialistas ligadas ao formante ideológico e dele dependentes. O jurista francês custa a colocar em seu devido lugar a "dogmática" alemã, e a confunde com uma (má) filosofia destituída de interesse para o jurista (SACCO, 2001, p. 89).

Afirma-se que Platão estudara diferentes modelos normativos quando da composição de alguns de seus Diálogos, a exemplo de As Leis e A República. Os textos platônicos sugerem que o filósofo ateniense conhecia o direito espartano. É que os modelos de Platão sugeriam o elogio para com o totalitarismo do sistema de Esparta. É nesse sentido que Karl Popper reputava Platão (ao lado de Hegel e de Marx) como inimigo de uma sociedade aberta e democrática. Platão previa ditaduras, um certo darwinismo social mediante o governo dos mais fortes e defendia concepção de que o poder deveria centralizar-se no mais sábio, no rei filósofo. Essas impressões decorriam de comparações que a época permitia, e a antinomia entre Atenas e Esparta, entre comércio e agricultura, entre sociedade democrática e sociedade totalitária, entre vida no litoral e vida no anterior, parece ser muito ilustrativa.

Aristóteles concebeu sua Constituição supostamente com base no estudo que fizera das constituições que as cidades helênicas haviam até então produzido. A obra jurídica e política de Aristóteles é exemplo de uso de direito comparado. As impressões que Platão e Aristóteles registram em relação à posição da mulher no meio social é indicativo seguro de leitura comparatista da presença feminina no mundo clássico, em vários lugares. Há denúncia de que os gregos haviam copiado muito dos egípcios, a propósito da tese da Atenas Negra (BERNAL, 1991); afirma-se também que comportamento etnocêntrico europeu do século XIX obstruíra a compreensão geral de que a África influenciara a civilização européia, o que cristaliza exemplo denso de contra-apropriação comparatista.

Os romanos teriam estudado o direito grego ao conceberem a legislação das XII tábuas. Embora dotados de sentido pragmático, em oposição à percepção mais metafísica da jurisprudência helênica, os romanos se apoderaram de soluções gregas, que teriam influenciado a composição do texto das XII tábuas. Dizia-nos velho ditado que Graecia capta ferum victorem cepit, isto é, que a Grécia conquistada conquistou o selvagem vencedor. A parêmia identificava também a influência que o direito helênico exercera sobre a concepção jurídica romana. Ao que consta, por volta do ano de 452 a.C. os romanos Postúmio, Mânlio e Sulpício teriam estado em Atenas de modo a conhecerem o direito grego. A lei das XII tábuas resultara da expedição, que percebida com os olhos de hoje sugere-nos operação pragmática de direito comparado.

A universidade medieval foi local de estudo constante de legislação comparada, a partir de tradição romanística que persistia como indicativa de direito culto e elegante. Curricula e métodos de estudo em Bolonha aproximavam o pensamento escolástico à tradição do direito romano (cf. BERMAN, 1983, p. 120). Intuitivamente desenvolviam-se métodos e modelos de comparação, embora ainda não se identificasse disciplina ou campo de investigação específico do que hoje se compreende como direito comparado.

Hugo Grotius e Samuel Puffendorf desenvolveram estudos comparatistas nos séculos XVI e XVII, respectivamente. Charles Louis de Secondat, o Barão de Montesquieu, avança na disciplina, e é por muitos tido como o pai do direito comparado (DAVID, 1986, p. 3). Nas Lettres Persanes (Cartas Persas) Montesquieu imagina troca epistolar entre um viajante persa na França e seu correspondente que ficara na Pérsia. As informações do viajante sugerem comparações entre política, justiça e equidade, entre lugares tão diferentes e distantes a exemplo da Turquia, da Pérsia, da Holanda, da Itália, da Inglaterra e da França (cf. MONTESQUIEU, 1964, p. 38).

No L’Espirit des Loix (O Espírito das Leis) Montesquieu dedica o livro décimo terceiro para comparar modelos tributários. O referido excerto denomina-se Das relações que a arrecadação dos tributos e a grandeza das rendas públicas têm com a liberdade. Montesquieu compara modelos de tributação para questionar imposições fiscais e exercício de liberdades. O ponto de partida identifica teorização referente às finanças públicas:

As rendas do Estado são uma parcela que cada cidadão dá de seu bem para ter a segurança da outra ou para fruí-la agradavelmente. Para fixar corretamente essas rendas, cumpre considerar as necessidades do Estado e as necessidades dos cidadãos. Não se deve tirar das necessidades reais do povo para suprir as necessidades imaginárias do Estado. Necessidades imaginárias são as exigidas pelas paixões e fraquezas dos que governam, a atração de um projeto extraordinário, o desejo doentio de uma glória inútil e uma certa impotência do espírito contra os caprichos. Amiúde, os que, com um espírito inquieto, estavam na direção dos negócios sob o governo do príncipe julgaram que as necessidades do Estado eram as necessidades de suas almas insignificantes. A sabedoria e a prudência devem regulamentar tão bem como a porção do que se retira e a porção que se deixa aos súditos (MONTESQUIEU, 1982, p. 241).

O filósofo francês investiga vários modelos tributários de modo a evidenciar alguns equívocos que se praticavam em solo francês. Montesquieu identifica circunstâncias que assinala como casos semelhantes. O autor de O Espírito das Leis procura tirar conclusões, a partir de juízos de comparação e assim, por exemplo:

Quando uma república reduziu uma nação a cultivar as terras para ela, não se deve permitir que o cidadão possa aumentar o tributo do escravo. Isso não era permitido na Lacedemônia [Esparta]; imaginava-se que os helotas cultivariam melhor as terras se soubessem que sua servidão não seria aumentada ainda mais; acreditava-se que os senhores seriam melhores cidadãos quando só aspirassem ao que estavam acostumados a possuir (MONTESQUIEU, 1982, p. 243).

Observando as várias práticas exacionais que então se conhecia, Montesquieu desenha quadro elegante da tributação em seu tempo, aparentemente buscando o que seria melhor para a França. Por exemplo,

Pedro I, pretendendo imitar a prática da Alemanha e arrecadar seus tributos em dinheiro, estabeleceu um regulamento muito sábio que ainda hoje é observado na Rússia. O gentil-homem cobra a taxa de seus camponeses e a paga ao czar. Se o número de camponeses diminui, ele pagará do mesmo modo; se o número aumentar, ele não pagará mais; está portanto interessado em não vexar seus camponeses (MONTESQUIEU, 1982, p. 243).

Ainda teoricamente, Montesquieu questionava as melhores fórmulas de tributação, adiantando-se em discussão contemporânea, relativa à tributação dos salários ou do consumo. Afirmou que num Estado, quando todos os indivíduos são cidadãos, e quando cada um possui por seu domínio o que o príncipe possui por seu império, pode-se taxar as pessoas, as terras ou as mercadorias; duas delas ou todas as três (MONTESQUIEU, 1982, p. 243). O pensador francês também problematizou questões que nos lembram temas de tributação indireta. De tal modo,

Os direitos sobre as mercadorias são os que os povos menos sentem, porque não se lhe faz uma arrecadação formal. Podem eles ser tão sabiamente manipulados que o povo quase ignorará que os paga. Por isso, é muito importante que quem vende a mercadoria seja quem pague o direito. Ele saberá muito bem que não é ele quem paga e o comprador, que é quem efetivamente paga, o confunde com o preço. Alguns autores disseram que Nero suprimira o direito do vigésimo quinto escravo vendido; entretanto, não fizera ele outra coisa senão ordenar que seria o vendedor que o pagaria e não o comprador; este regulamento que conservara todo o imposto pareceu suprimi-lo (MONTESQUIEU, 1982, p. 244).

As observações de Montesquieu indicavam a necessidade de se implementarem modelos simplificados de arrecadação. Para o filósofo do iluminismo francês:

Os tributos devem ser facilmente compreendidos e tão claramente estabelecidos que não possam ser aumentados nem diminuídos pelos que os arrecadam. Uma porção sobre os frutos da terra, uma taxa por cabeça, um tributo por tanto por cento sobre as mercadorias, são os únicos convenientes (MONTESQUIEU, 1982, p. 246).

O método comparativo de Montesquieu avalia também a prestabilidade das penas fiscais. É disso que trata o seguinte excerto:

É uma particularidade das penas fiscais serem, contra a prática geral, mais severas na Europa do que na Ásia. Na Europa, confiscam-se as mercadorias e, algumas vezes, inclusive os navios e os meios de transporte; na Ásia, não se faz nem uma coisa nem outra. É que na Europa os comerciantes têm juízes que podem garanti-los contra a opressão; na Ásia, os juízes despóticos são os próprios opressores. Que faria um comerciante contra um paxá que resolvesse confiscar-lhe as mercadorias? É a vexação que supera a si própria e vê-se constrangida a uma certa brandura. Arrecada-se, na Turquia, apenas um único direito de entrada; e depois disso, todo o país está aberto aos mercadores. Não implicam falsas declarações nem confisco, nem aumento dos direitos. Na China, não se abrem os fardos das pessoas que não são comerciantes. A fraude, entre os mongóis, não é punida com o confisco, mas com a duplicação dos direitos. Os príncipes tártaros, que na Ásia habitam as cidades, quase nada arrecadam sobre as mercadorias em trânsito. No Japão, o crime de fraude no comércio é considerado crime capital, é porque há motivos para proibir toda comunicação com os estrangeiros e porque a fraude é, aí, antes uma contravenção às leis de segurança do Estado do que às leis da segurança do Estado e às leis do comércio (MONTESQUIEU, 1982, p. 246).

Montesquieu interessava-se por todos os sistemas tributários que tinha notícias e em relação a eles montava interessante painel que lhe possibilitava pensar o sistema fiscal francês. Assim,

Regra geral: pode-se arrecadar tributos mais elevados, na proporção da liberdade dos súditos, e é-se forçado a moderá-los na medida em que a servidão aumenta. Isso sempre aconteceu e acontecerá sempre. É uma regra extraída da natureza que nunca varia; encontramo-la em todos os países, na Inglaterra e na Holanda e em todos os Estados em que a liberdade vai se degradando, até na Turquia. A Suíça parece ser uma exceção porque lá não pagam tributos. Não sabemos o motivo específico disso, mas esse país confirma também o que afirmo. Nas suas montanhas estéreis, os víveres são tão caros e o país tão povoado que um suíço paga quatro vezes mais à Natureza do que um turco paga a um sultão (MONTESQUIEU, 1982, p. 247).

Montesquieu abriu capítulo próprio para tratar da isenção de tributos e também para prever questões orçamentárias, conjeturando que:

A máxima dos grandes impérios do Oriente de dispensar do pagamento de tributos as províncias arruinadas, deveria ser muito imitada nos Estados monárquicos. Em alguns, de fato, ela já existe, porém oprime mais do que se não existisse porque, não arrecadando o príncipe nem mais nem menos, todo o Estado torna-se solidário. Para aliviar uma aldeia que paga com dificuldade, sobrecarrega-se outra que paga melhor; não se restabelece a primeira, destrói-se a segunda. O povo fica desesperado entre a necessidade de pagar, o medo das exações, o perigo de pagar e o temor das sobrecargas. Um Estado bem governado deve colocar, como primeiro artigo de sua despesa, uma soma regulamentada para os casos inesperados. Ocorre com o público a mesma coisa que ocorre com os indivíduos: arruínam-se quando despendem exatamente a renda de suas terras (MONTESQUIEU, 1982, p. 250).

Insistindo na formalidade e na boa organização do modelo de arrecadação, Montesquieu imaginava modelo fiscal marcado pela transparência e pela racionalidade:

A arrecadação oficial é a administração de um pai de família que obtém, ele próprio, com economia e ordem, as suas rendas. Pela arrecadação oficial, o príncipe está em condições de apressar ou retardar a arrecadação dos tributos, de acordo com suas necessidades, ou de acordo com a necessidade de seus povos. Pela arrecadação oficial ele poupa ao Estado os imensos lucros dos contratadores que o empobrecem de mil maneiras. Pela arrecadação oficial, poupa ao povo o espetáculo das fortunas súbitas que afligem. Pela arrecadação oficial, o dinheiro arrecadado passa por poucas mãos, indo diretamente ao príncipe e, conseqüentemente, retorna mais rapidamente ao povo. Pela arrecadação oficial, o príncipe poupa ao povo uma infinidade de leis nefastas que a avareza importuna dos contratadores sempre lhe exige, e que mostram uma vantagem presente nos regulamentos funestos do futuro (MONTESQUIEU, 1982, p. 251).

O contratador criticado por Montesquieu era quem comprava adiantadamente os direitos de cobrar impostos, enviando aos príncipes parcelas calculadas sobre os valores que seriam arrecadados. Contratadores eram figuras odiadas. O Brasil conheceu a figura do contratador das minas, que muita fúria promovia nas populações que pagavam tributos à coroa portuguesa, por meio do referido cobrador de impostos. Montesquieu não perdoava os contratadores e os atacava de forma veemente:

Tudo está perdido quando a profissão lucrativa dos contratadores consegue, por suas riquezas, ser uma profissão honrada. Isto pode ser conveniente nos Estados despóticos em que, amiúde, seu emprego é uma parte das funções dos próprios governantes. Mas não é conveniente na república; e algo semelhante destruía a república romana. Isso também não é melhor na monarquia; nada é mais contrário do que isso ao espírito desses governos. A mágoa apodera-se de todos os outros Estados; a honra perde toda sua consideração, os meios lentos e naturais de ascensão perdem seu prestígio e o governo é afetado em seu princípio (MONTESQUIEU, 1982, p. 252).

Montesquieu vincula a cobrança dos tributos à atuação do homem público em relação ao bem comum. E assim encerra o capítulo sobre tributação:

Há um prêmio para cada profissão. O prêmio dos que arrecadam os tributos são as riquezas, e as recompensas dessas riquezas são as próprias riquezas. A glória e a honra cabem a esta nobreza que só conhece, que só vê, que só sente como verdadeiro bem a honra e a glória. O respeito e a consideração cabem a esses ministros e magistrados que, só encontrando trabalho sobre trabalho, velam pela noite e dia pela felicidade do império (MONTESQUIEU, 1982, p. 252).

E se o presente livro afirmou que Montesquieu é tido como o pai do direito comparado, confirmou-se com as transcrições acima que o filósofo francês é efetivamente o antepassado comum do direito tributário comparado. Max Weber também estudou profundamente direitos orientais e teológicos de modo a conceber sua tipologia sociológica para a compreensão da racionalidade do direito ocidental. É com o pensador alemão que continuo o presente ensaio.

Max Weber concebeu as tipologias identificativas do direito a partir de ensaios comparativos. A racionalidade do direito ocidental foi identificada a partir de juízos de comparação. O mandarinato e o Estado imperial chinês, a relação do confucionismo com os literati, a reação do tradicionalismo em face do capitalismo, o modelo indiano, o sistema de castas e o bramanismo, foram aspectos da cultura oriental que Weber utilizou para traçar panorama do direito ocidental, que o pensador alemão vinculava à racionalidade e à instrumentalidade que informa a ação social.

O estudo dos vários tipos de dominação, especialmente do modelo carismático, é resultado de análise acurada das formas orientais. O próprio sentido ascético do calvinismo foi comparado com religiões mais soteriológicas e supostamente menos comprometidas com esquemas de dominação racional, a exemplo do confucionismo. Passagem de Max Weber ilustra o uso que o pensador fazia do direito comparado, a propósito de reflexões em torno do patrimonialismo que marcou o feudalismo, de onde partem as características do chamado Estado corporativo:

Na Idade Média feudal, estava de posse de um terreno quem obtinha a renda dele. Quando existia uma organização rigorosa das hierarquias feudais (...) os chamados "feudos" turcos, organizados segundo o modelo sassânida e seljúcida, eram registrados segundo a renda em asper, e a dotação dos vassalos japoneses (samurais), segundo a kokudaka (renda em arroz). Na Inglaterra, a inscrição naquele livro que mais tarde foi chamado de Doomsday Book, apesar de não ter o caráter de um registro de feudo, teve sua origem também na organização particularmente rigorosa e centralizada da administração inglesa (...) a cavalaria turca, dotada de prebendas com caráter de feudos, existia ao lado da tropa patrimonial dos janízaros (...) com exceção do direito chinês, encontramos nos mais diversos âmbitos jurídicos concessões de direitos senhoriais procedentes de propriedade rural. Na Índia, sob o domínio dos rajaputros, existia até os tempos mais recentes a concessão, por parte do chefe da tribo, de direitos senhoriais territoriais (...) (WEBER, 1999, p. 290).

Ainda em 1831 organizou-se na França a primeira cadeira de legislação comparada. O estudo dos direitos dos outros povos é mecanismo de defesa contra a volatibilidade do direito. A advertência de Kirchmann, para quem três palavras do legislador fazem bibliotecas desaparecer (cf. DAVID, 1986, p. 16), é convite contínuo para a exploração de legislações estranhas às nossas. O primeiro congresso internacional para discussão do direito comparado que se tem notícia realizou na França, em 1900, junto à Exposição Internacional. Edouard Lambert e Raymond Saleilles são seus organizadores. O episódio vincula o direito comparado com a modernidade e com a aproximação entre os povos.

O direito comparado também pode representar reação conceitual aos direitos nacionais que se firmavam no século XIX, em desfavor de direitos locais, como reflexo do capitalismo concorrencial, do neocolonialismo e da presença européia na África e na Ásia, na busca de mercados consumidores, de mão-de-obra barata, de matérias primas e de centros de domínio estratégico. Pode se tratar de reação refinada à negação dos pluralismos jurídicos, como pretendida pelos direitos europeus.

A definição de grupos jurídicos exige que formule racional ou intuitivamente justaposições dos modelos normativos com questões de desenvolvimento histórico, de modo de raciocínio jurídico, de formatação específica de instituições jurídicas, de regime de fontes do direito e de aspectos ideológicos de muita importância, a exemplo de fundamentação religiosa ou política (cf. ZWEIGERT e KOTZ, 1998), embora leitura de base marxista exigisse que se concebessem as famílias a partir de infraestruturas econômicas.

A disciplina então cogita de formar grupos ou famílias de direitos. René David concebeu quatro grandes núcleos. Para o comparatista francês, teríamos uma família romano-germânica, uma família de direitos socialistas, a família do common law, e um último grupo mais amplo, que envolveria os direitos muçulmano, indiano, chinês, japonês, da África e de Madagascar.

Rodolfo Sacco de modo pragmático colocou a situação nos seguintes termos:

Efetivamente, por razões práticas, as famílias foram construídas de modo a dar maior evidência aos sistemas com que o estudioso terá maiores contatos. Desta maneira, contrapõem-se os sistemas romanísticos, os de common law, os do leste europeu (ex-socialistas), os latino-americanos, os instaurados em países islâmicos. Depois são reduzidos a uma única família os sistemas da Ásia central e oriental, e numa outra família os sistemas das sociedades tradicionais (isto é, elaborados quando estas sociedades não conheciam a escrita). Esta situação pode ser aceita como expediente prático, que agiliza a exposição de dados (SACCO, 2001, p. 228).

Patrick Glenn, cuja monografia ganhou o prêmio da Academia Internacional de Direito Comparado, no XV Congresso da mesma, em Bristol, Inglaterra, em 1998, pensou taxonomia baseada em tradições, a partir de conceito que dá conta de uma presença do passado em constante mudança que afeta o presente. Glenn concebeu sete grandes tradições jurídicas. Uma tradição autóctone e primitiva, que fora protagonizada por todos os povos, na aurora dos tempos. Essa tradição era muda, não se vinculava efetivamente a estruturas de linguagem, é típica de tempos ancestrais. Esse modelo é área de interesse da antropologia jurídica, e marca o trabalho de autores como Pierre Clastres, Franz Boas, Robert Lowie, Margaret Mead, Ruth Benedict, Edward Sapir, Radcliffe-Brown, Malinowski, para fixar-me apenas nos clássicos.

Glenn descreveu uma tradição talmúdica, centrada na revelação na teologia judaica. Uma tradição de cunho romano-germânico, que informa nossa direito, baseada na posição central do indivíduo Glenn identificou uma tradição islâmica, com base em revelação tardia, plasmada na idéia de Sharia. O common law identicamente é caracterizado como tradição, com limites formais definidos pela atuação judicial. Glenn dá-nos conta de tradição hindu, de grande dimensão poética, baseada no sentido de Dharma. Uma tradição asiática fecharia o grupo, sob domínio do confucionismo e da concepção central de Li (cf. GLENN, 2000).

A literatura comparatista alemã, com base em Konrad Zweigert, concebeu seis famílias jurídicas objeto de comparação. Zweigert fala-nos de uma família romanística (centrada na codificação francesa), de uma família germânica (baseada nos códigos civis da Alemanha, da Áustria e da Suíça), de uma família anglo-americana (trata-se do common law), de uma família nórdica (marcada pelo direito escandinavo), de uma família do extremo-oriente (e aqui Zweigert consubstancia os direitos chinês e japonês) e finalmente de uma família de direitos religiosos (que incluiria os direitos islâmico e hindu) (cf. ZWEIGERT, 1998).

Especialmente com o objetivo de tratar do direito tributário a questão taxonômica ganha diferentes contornos. Por exemplo, tomemos os direitos do extremo-oriente, como colocados pela classificação de Zweigert. O direito chinês é ontologicamente religioso; é antes um sistema jurídico integrado numa concepção filosófica, o Confucionismo (GILISSEN, 1995, p. 108). Permanece em suas linhas gerais há dois milênios, resistiu a pressões inglesas ao longo do século XIX, e enfrenta crise em 1912, ano que marca o fim do regime imperial. A partir de então os direitos ocidentais ameaçam o direito tradicional chinês. Em 1931 os chineses conhecem uma constituição e logo em seguida códigos de feição ocidental, em matéria cível e processual. A vitória do comunismo em 1949 assinala o início de formulação normativa de inspiração marxista. Isso implicava a busca de um modelo de não-direito, o que foi enfatizado pela revolução cultural de 1966-1968 (cf. GILISSEN, 1995, P. 114). Após a morte de Mao e com os novos rumos da economia chinesa, abrindo-se para o comércio internacional, retifica-se um direito legislado, que guarda elementos de todas as tradições que o compõem, de fundo político ou religioso.

O problema ganha realce maior ainda quando se analisa o direito japonês, especialmente após a década de 1980, que conhece o Japão exercendo posição de potência econômica. O direito nipônico fora originariamente formado pela tradição chinesa, assinalada pela influência budista e por uma vida política e social (...) baseada numa estrita obediência do inferior ao superior, bem como do filho ao pai, da mulher ao marido, do colono ao proprietário (...) (GILISSEN, 1995, p. 117).

O processo de modernização pelo qual o Japão passou no século XIX envolveu também a busca da modernização institucional, o que acarretou grandes mudanças nas formatações jurídicas japonesas. Essas últimas buscavam elementos ocidentais, situação que foi potencializada com a ocupação norte-americana após agosto de 1945 (cf. ODA, 2003, p. 2). A arrancada da economia japonesa a partir do fim da década de 1970, promoveu direito pautado pela maximização econômica, especialmente em relação à concepção tributária (cf. RAMSEYER e NAKAZATO, 1999, p. 220). Tradições seculares e modelos contemporâneos coexistem, formando mosaico impressionante que permite que o direito se revele em toda sua pureza conceitual.

É esse o desafio que uma concepção introdutória de direito comparado deve enfrentar. Desenhar tradições jurídicas de forma sintética, com o objetivo de ler feições normativas contemporâneas, justificando-se o corte em partes geral e especial, sem que isso represente adesão a topografia privatística que informa as codificações ocidentais. De tal modo, e de maneira muito simplificada, propõe-se que uma abordagem inicial do problema comparatista siga sumária tentativa descritiva de famílias jurídicas, fracionadas em cinco grupos. Common law, sistema romano-germânico, direitos orientais (incluindo-se aqui China e Japão), direito islâmico e direito hindu. Por fim, o estudioso deve verificar de que modo tais modelos se aproximam e se distanciam, à luz de movimentos de globalização, e tendo em vista o perene problema que a reflexão comparatista coloca, isto é, se conta-se com uma disciplina e ou com um mero excerto metodológico.

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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Notas introdutórias ao direito comparado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1649, 6 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10824. Acesso em: 4 nov. 2024.

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