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CNJ e o ajustamento de conduta disciplinar: incorreções da norma

20/02/2024 às 22:42

Resumo:


  • A Corregedoria Nacional de Justiça está elaborando um texto sobre a aplicação de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) para infrações disciplinares de magistrados e serventuários, porém, há críticas quanto ao uso inadequado de terminologias e requisitos que não estão alinhados com os princípios originais do sistema.

  • Há uma preocupação com a falta de reconhecimento dos fundamentos e origens do TAC na administração pública brasileira, e o risco de que a criatividade em sua aplicação possa desviar-se dos objetivos e eficácia pretendidos, ignorando o contexto histórico e as contribuições de profissionais que participaram de sua concepção.

  • O ajustamento de conduta disciplinar é uma ferramenta construída com base no Direito Disciplinar, na Ciência da Administração e na psicologia jurídica, e não deve ser confundido ou aplicado de forma simplista, como se fosse um elemento burocrático sem considerar as complexidades humanas e institucionais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O ajustamento de conduta foi planejado em 2006 e aperfeiçoado com as imposições da prática. O futuro provimento, ao invés de partir do que está consolidado, envereda para dispositivos que não se harmonizam.

O sistema de cópias de material mal copiado

A Corregedoria Nacional de Justiça está a produzir texto regulatório sobre a aplicação do ajustamento de conduta (TAC) no âmbito do controle da disciplina em casos que envolvem magistrados e delegatários de serventias extrajudiciais. Em que pese não haver nenhuma referência à origem desse modelo, temos o dever intelectual de contribuir com reflexões.

À guisa de exemplo1, o art. 2º já se mostra inadequado no emprego da terminologia e do âmbito de aplicação:

Art. 2º Em quaisquer procedimentos, recebidos ou instaurados de ofício pela Corregedoria Nacional, não sendo caso de arquivamento e presentes indícios relevantes de autoria e materialidade de infração disciplinar de reduzido potencial de lesividade a deveres funcionais, o Corregedor Nacional poderá propor ao investigado a celebração de TAC, desde que a medida seja necessária e suficiente para a prevenção de novas infrações e para a promoção da cultura da moralidade e da eficiência no serviço público.

Também são incompatíveis com os princípios que orientaram a formatação do sistema os requisitos enunciados nos §§ 1º e 2º do art. 2º e seus incisos, a saber:

§ 1º Considera-se infração disciplinar de reduzido potencial de lesividade a deveres funcionais a conduta de cujas circunstâncias se anteveja a aplicação de penalidade de advertência ou de censura.

§ 2º São requisitos subjetivos para a celebração do TAC:

I – ser o magistrado vitalício;

II – não estar o investigado respondendo a processo administrativo disciplinar já instaurado, no CNJ ou no tribunal de origem;

III – não ter sido apenado disciplinarmente nos últimos 03 (três) anos, consideradas as datas da nova infração e do trânsito em julgado da decisão que aplicou a pena;

IV – não ter celebrado TAC ou outro instrumento congênere nos últimos 03 (três) anos, consideradas as datas da nova infração e a do cumprimento integral das condições anteriormente ajustadas.

No conjunto, vê-se sob o aspecto formal a mescla indevida entre três expedientes: i) ajustamento de conduta; ii) conciliação; iii) suspensão condicional do processo disciplinar. Estes são modelos resolutivos para incidentes éticos e disciplinares com perfis diferentes; cada qual para uma situação específica. Entretanto, a proposta veiculada pelo Conselho Nacional de Justiça utiliza esses recursos como se fossem sinônimos ou, na melhor leitura, como complementos. Do ponto de vista da tática, do esquema, o desenho tem quase todas as tintas da suspensão condicional do PAD e praticamente nada daquilo que foi originalmente organizado como ajustamento de conduta em si. Extrai-se, a propósito, o que preceitua o art. 13:

Art. 13. (...)

§ 3º Em caso de rescisão do TAC por força do disposto no § 2º deste artigo, do cumprimento parcial das condições estabelecidas no acordo não decorrerá nenhum direito ao investigado, seja de que natureza for.

§ 4º Rescindido o TAC por descumprimento, o reconhecimento da irregularidade da conduta pelo investigado constituirá meio de prova a ser utilizado para a propositura de eventual processo administrativo disciplinar ao Plenário.

A intenção pode parecer lógica, mas se relaciona com outra forma de encaminhamento. Não cabe, neste espaço, a explicação da impertinência técnica desses dispositivos – avaliação que demandaria apontamentos de fundo, o que não é o objeto dessa matéria. Aqui, o foco está no alerta sobre o desconhecimento da origem e dos fundamentos do ajustamento de conduta disciplinar que trouxemos para a administração pública brasileira. Trata-se de um sobreaviso para os riscos da criatividade. Na literatura convencional, há espaço para a ficção, para a dilação de pensamentos e para ensaios verbais; na composição legislativa, por sua vez, os autores estão atrelados a um sistema jurídico complexo e nenhuma palavra sequer poder ser empregada fora do sentido técnico, assim como comando algum pode estar em descompasso com ordem legal superior.

Quando traçamos esse caminho de razoabilidade, proporcionalidade e eficiência, o fizemos com alongados estudos, o que não se confunde com pesquisas de textos similares que circulam em fartura fomentados pela tecnologia artificial; menos ainda, foi criação aleatória, sem lastro em referenciais certeiros. À altura, em 2006, ademais, sequer se imaginava tal fórmula aplicada no controle disciplinar. Vale dizer que empregamos tempo, pesquisas e experimentos, qual convém para a qualidade da ciência e, enquanto ciência, com caráter de inovação.

Assim, acentue-se que o TAC é fruto do esmero pessoal, sem olvidar a contribuição de seleto grupo de profissionais do serviço público de vários Estados2 que estiver presentes com debates e testes – muitos, com denodo, valeram-se do tema em trabalhos de conclusão de curso e em teses acadêmicas sob a nossa orientação. Não foram poucos os que enfrentaram a incompreensão de gestores empedernidos ou de colegas com frágeis conexões neurais. Houve quem perdesse cargos ou funções comissionadas; corregedores sérios foram expostos ao ridículo; funcionários de quilate moral, imbuídos em corrigir controles irracionais, sofreram com o comodismo da descrença. Logo, há um resgate a ser feito àqueles que não passam pela vida em brancas nuvens, no dizer do poeta Francisco Otaviano.

O ajustamento de conduta disciplinar não tem nenhuma relação com o modelo utilizado pelo Ministério Público. É basicamente um rótulo que foi dado, partindo, para efeitos de nomenclatura, de algo que passa a ideia de composição pelo ajuste, pela celebração de um compromisso de honra. Os fundamentos, a finalidade e os efeitos são completamente díspares do mecanismo de procedência no órgão ministerial. O nome tem importância alguma; poderia ser chamado de compromisso de adequação funcional 3 , ou acordo de bom proceder. O que se deve levar em conta é a essência peculiar, que não surgiu aleatoriamente. Deveras não se trata de um simplório produto para o arsenal da burocracia, mas de uma ferramenta construída a partir das bases do Direito Disciplinar, da Ciência da Administração e da psicologia jurídica.

Diz-se que Napoleão, ao lançar o seu famoso Código Civil em 1804 soube que alguém publicara uma obra com interpretação do texto. O imperador teria dito, em cólera: “Meu Código está perdido”. Com efeito, estuda-se nas bases da cátedra jurídica que o autor legislativo perde o domínio da sua produção; no máximo, o intérprete usa, como um dos recursos, o chamado espírito do legislador, o que não deixa de ser um sistema de razoável subjetividade. Em proporcional simetria sentimos o desprazer de Napoleão ao vermos o ajustamento de conduta disciplinar – introduzido no Brasil por nossas mãos, contra tudo e contra muitos, assim entendido um sistema que não aceitava renovação, tornar-se uma sequência de reescritos mal feitos, sem qualquer consideração ao histórico do processo originário.

De início, foi a repulsa pelas almas da escuridão. Não faltaram brados de personalidades disformes a sustentar a afronta à indisponibilidade do interesse público, a ausência de lei específica, o limite do instituto ao ambiente do Ministério Público e outras caturrices embrulhadas com cetim jurídico. Todavia, pouco a pouco, mediante uma campanha de esclarecimentos, afastando uma por uma as obcecações bizarras, o ajustamento de conduta disciplinar chegou a órgãos e entidades do poder público, inclusive do Poder Judiciário, com destaque aos Tribunais de Justiça dos Estados do Mato Grosso, Maranhão e Piauí e ao Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro, pioneiros nessa medida. Empresas públicas e sociedades de economia mista entraram na sequência; alguns entes da Federação – Estados e Municípios – aderiram por reformas nos seus estatutos disciplinares. Entretanto, a cada implantação, alguém desavisado removia uma peça estrutural ou colocava um tijolo incompatível com a obra. Não é sem razão que, por vezes, ao lermos algo anunciado por alguma instituição com ares de novidade, temos a percepção do ministro Paulo Brossard quando a Assembleia Nacional Constituinte estagnou em um amontoado de artigos desconexos: ”E um lixo legislativo”, declarou o jurista em 1997.

O material se espalha em descontrole, por isso se impõe a relembrança. Não se trata de bufonaria histriônica, mas de compromisso histórico acerca de algo que redesenhou o controle da disciplina no nosso país e em relação ao qual não faltam indicativos de redução de 70% do volume de processos disciplinares onerosos, desnecessários ou inócuos4. Por isso, a memória é também um prestígio àqueles que, no início, empenharam-se no estudo e na confiabilidade do que lhes era apresentado.

Passados mais de quinze anos, quando se cogita que uma espécie de ciúmes consome o intelecto dos que renegam a autoria alheia, não se utiliza aleatoriamente a hipérbole; ou, de outro turno, há os que escutam o cantar do galo e não sabem de onde vem. E assim, ou se omite a existência de uma produção científica, publicamente documentada, ou não se procura saber a origem do provimento.

Tal situação leva a uma cadeia de engodos, com normas manipuladas em laboratórios de improviso, sem conexão com cada palavra que justifica o modelo idealizado em 2006. É notório que a lei não tem palavras inúteis; logo, qualquer agrupamento de letras que compõem o projeto original possui uma razão para estar ali; quando se usa o verbo “poderá”, é porque o ajustamento de conduta tem por primeiro agasalho o princípio da discricionariedade da ação disciplinar, ditado por Otto Meyer na velha Alemanha; na parte que relaciona os requisitos da medida estão indicadores extraídos do princípio da oportunidade (tratado especificamente no foco disciplinar do direito português); quando se faz distinção entre infração disciplinar e erro, são seguidos os referenciais do direito espanhol; e quando pensamos na conveniência desse remédio, construímos a base doutrinária para aquilo que nominamos como princípio da proporcionalidade da reação, que, na física, tem substrato equivalente na Terceira Lei de Newton. Frederck Taylor, o pai da administração científica, e Abraham Harold Maslow, psicólogo que desenhou a Pirâmide das Necessidades, também emprestam o lustre dos respectivos saberes.


O sistema institucional do plágio

Nesses anos, todavia, surgiram cópias de textos mal copiados, muitos deles com a introdução de ideias que descaracterizam o instituto enquanto recurso da ciência. A cada crescente, há renovadas induções em erro. Ademais, deixa-se, como regra, de regulamentar a metodologia da aplicação – o passo a passo dos procedimentos – de forma a garantir um padrão de uso e de resultados (e nesse lapso, máxima vênia, também incorre o produto de feitio na Corregedoria-Geral do Conselho Nacional de Justiça).

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Logo, textos mal plagiados ou redações feitas sem visão holística causariam a repugnância de Napoleão Bonaparte – que, não obstante a personalidade controversa, teve o mérito de reorganizar o Estado francês e montar um sistema de hierarquia e disciplina nos serviços públicos que ainda hoje é seguindo no mundo ocidental.


Breve histórico do ajustamento de conduta disciplinar

O sistema alternativo de controle da disciplina, por meio do ajustamento de conduta, foi o tema da nossa conferência no Encontro Nacional de Corregedores realizado em Natal/RN nos dias 26 e 27 de janeiro de 2006 e, de imediato, utilizado pelo Estado de Tocantins. O projeto foi matéria de capa em revista do então Grupo Consulex e título de dois livros, lançados respectivamente em 2008 e 2018; foi apresentado em Encontro Internacional de Juristas em Lisboa, em 2012. O primeiro Tribunal de Justiça a se servir do modelo foi o do Estado do Mato Grosso, que o fez com segurança jurídica, permitindo que os prepostos conhecessem as bases principiológicas e a adequação à ordem jurídica brasileira, a parte operacional, para aplicação com método, e os impactos ancorados em indicativos da psicologia e da administração técnica.

Portanto, o ajustamento de conduta não se formou como um produto empírico, nem surgiu de uma vertente de intuição qualquer; trata-se da edificação de uma obra zelosamente erguida, com anos de labor nos seus alicerces. Em resumo, uma construção intelectual meticulosamente avaliada. Atualmente, a matéria é distribuída, nas nossas minutas normativas e nos modelos de manuais, de forma a atender a parte formal e o amplo corredor de procedimentos, com possíveis atribulações no caminho. Logo, não é destempero aduzir, como cautela em favor do bom proceder, que a minuta em fabrico no Conselho Nacional de Justiça é revestida do mais do mesmo, ou seja, um recurso de suposta resolução que não leva em conta vários sinalizadores de harmonia com ciências afins. Diz o art. 9º:

Art. 9º Preenchidos os requisitos do art. 2º, o investigado será intimado para que se manifeste acerca do interesse na celebração do TAC, devendo ser a ele encaminhado, desde já, o esboço das condições que figurarão no instrumento do acordo.

Frederck Taylor e Abraham Harold Maslow reviram-se nos seus túmulos, porque esse é um roteiro que não leva em conta as peculiaridades das relações humanas e a forma de superação de pequenos incidentes nos ofícios administrativos. Tratam-se pessoas – e as pessoas são diferentes – como parafusos do mesmo diâmetro, apertados pelo mesmo robô em uma linha de produção industrial. O ajustamento de conduta, a se considerar tudo o que tem relação com comportamentos, exige individualidade, olho no olho, “ver” o que o outro diz, ter razoável percepção sobre personalidades disformes, conhecer os extremos do altruísmo e da debilidade de caráter, da fragilidade emocional à psicopatia nas instituições. Isso não se faz com papéis; faz-se com o estudo da alma e das paixões.


Outros modelos de controle da ética e da disciplina

Não é demasiado alertar que também produzimos – e publicamos – as bases e a metodologia da conciliação disciplinar, que tem emprego diferenciado, método específico e finalidade distinta do ajustamento de conduta. Também elaboramos o anteprojeto do Código da Boa Conduta Administrativa, uma peça substancialmente superior aos vetustos e ineficazes códigos de ética que são reproduzidos Brasil afora como cupins, formigas e baratas em período de fortes chuvas. É lícito crer que há plágios desses códigos que a pessoa que o fez sequer teve a cautela de ler o resultado da sua imitação. Se o lesse e fosse dotada de um intelecto plausível, perceberia a inutilidade do serviço.

Da nossa lavra, também, é a formatação das diversas espécies de sindicâncias, com os correspondentes fluxogramas; o traçado lógico dos processos disciplinares – habitualmente um vai e vem de procedimentos inócuos; e, principalmente – o que nos satisfaz enquanto produtores de ciência – o desenho do que denominamos de “política de controle da disciplina”, representado por um conjunto de ações e reações das corregedorias de forma a alcançar a finalidade perseguida pelo Direito Disciplinar enquanto ramo especializado da ciência jurídica.


Conclusão

É louvável a iniciativa da Corregedoria Nacional de Justiça, que se abre para soluções ágeis e recursos da modernidade do direito; mostra-se oxigenada pela releitura de textos que, outrora interpretados de forma restritiva, serviam às rotinas administrativas e estas, por sua vez, serviam para coisa alguma. Entretanto, como o ajustamento de conduta foi planejado em 2006 e aperfeiçoado com as imposições da prática, parece-nos equivocada a redação de um futuro Provimento que, ao invés de partir do que está consolidado, envereda para dispositivos que, ao leigo no sistema, podem parecer convenientes; todavia, a quem o estudou a fundo a ponto de criar essa fórmula, não se coadunam.


Notas

1 Minuta disponibilizada em 25 de janeiro de 2024.

2 Destaque-se, em memória, a Dra. Adelmy Caces Bicca, então Corregedora-Geral da Secretaria de Administração do Governo de Tocantins.

3 Sugestão da Dra. Glenda Liz de Paula Warmling, à época integrante dos quadros técnicos da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, homenageada em sessão especial da Corte pela dignidade do seu trabalho.

4 Em março de 1998 fomos pioneiros em publicar estudo sobre “O Custo do Processo Disciplinar”, no Caderno Direito & Justiça do jornal Correio Braziliense.

Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados. O autor presta consultoria às mais importantes estruturas da Administração Pública do país desde os anos 1990. Conhece os riscos da gestão e as formas de prevenir responsabilidades, o que o tornou conferencista internacional sobre matérias relacionadas ao serviço público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Léo Silva. CNJ e o ajustamento de conduta disciplinar: incorreções da norma. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7538, 20 fev. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108438. Acesso em: 22 dez. 2024.

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