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A formação do neoconstitucionalismo e sua prevalência na contemporaneidade

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12/01/2008 às 00:00
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4 - GIRO JURÍDICO-HERMENÊUTICO.

As considerações acima feitas serviram de apoio para o objetivo central do trabalho, que é apresentar a rota seguida pelo direito até encontrar-se com o neoconstitucionalismo, acentuando a prevalência dos seus postulados numa sociedade democrática e num direito que pretende legitimar-se materialmente perante esta sociedade. Entende-se que tal caminho foi trilhado a partir de um giro hermenêutico e outro político, não podendo desconsiderar-se a interpenetração de ambos.

4.1 Lógica formal e legitimação na hermenêutica positivista.

A lógica formal referida no tópico 2 caiu como uma luva para a burguesia pós-revolucionária, que vê seus interesses refletidos na escola da exegese. Uma aplicação mecânica do direito faria com que a produção legislativa da burguesia não encontrasse óbice na sua aplicação, no judiciário. Assim, na hermenêutica positivista, deve o intérprete "proceder more geometrico, deduzindo o sentido oculto da lei mediante procedimentos filológicos e lógicos" (Coelho, 1981:326). A assertiva "não conheço o direito civil, só ensino o Código de Napoleão" de autoria de Bugnet (Perelman, 1996), sinalizava que "a tarefa do jurista, para a exegese, era ater-se rigorosamente ao texto da lei" (Coelho, 1981:328) e que para o positivismo, o momento era de "fechar as portas da interpretação" (MIAILLE, 1994) atendo-se à literalidade da lei. Essa atitude epistemológica impõe ao direito que dê com os ombros para as nuanças sociais e políticas que envolvem a sua atuação prática, irresponsabilizando-se pelo seu agir, e assim resguardando os interesses burgueses insertos na norma.

Para justificar este comportamento indiferente, de "ater-se apenas ao texto da lei", duas idéias elaboradas pelo positivismo jurídico foram fundamentais: 1) uma de cunho epistemológico geral, acima já descrita, defendendo que a metodologia das ciências sociais deveria pautar-se nos mesmos moldes mecânicos das ciências naturais. Seu efeito seria que, num direito racional com aplicação matemática, a lei seria tida como justa ou válida sem indagação do seu conteúdo ético ou seus efeitos práticos (Coelho, 1981:314); 2) a separação da realidade jurídica da realidade social, dividindo-as em duas ontologias distintas, dois universos paralelos: o "ser" e o "dever-ser", como quis expressar Kelsen para defender a teoria pura do direito (KELSEN, 1996). O direito agiria apenas no campo do dever-ser, um universo particular, distante e mesmo ignorante das desventuras humanas.

Este comportamento hermenêutico introspectivo influi sobremaneira na relação entre democracia e direito (o que interfere no aspecto sociopolítico, pois), já que indiferente ao que ocorre fora do ser universo particular, não cabia ao direito explicitar suas condutas de modo a legitimar-se, já que legalidade e validade normativa era a legitimidade máxima que o direito positivista moderno admitiria (WARAT, 1979). Ou, como diz outro autor, a teoria pura do direito(...)reduz a legitimidade à efetividade das normas válidas" (ULHÔA COELHO, 2005).

Na verdade, na escola da exegese, os juizes deveriam justificar suas decisões perante o legislador, apontando a lei in casu e fundamentando-a como buscasse na interpretação o "espírito do legislador" (WARAT, 1979). A aplicação do direito (tarefa judicial) procurava legitimar-se ante a produção do direito (tarefa legislativa), como se o destinatário da norma fosse o legislador e não o jurisdicionado [13]. Importante notar que, com Kelsen, já há uma evolução no sentido de que a lei não comporta apenas um significado, mas vários dentro de uma moldura interpretativa. Ocorre que Kelsen nem oferece parâmetros para limitar tal moldura e, pior, coloca que qualquer posição adotada dentro desta moldura é válida – caso formalmente (estatal) correta – e sua explicação cabe à política jurídica [14][15]. Assim fazendo, o jurista austríaco simplesmente desconsidera a necessidade de legitimação do poder judiciário por meio da discussão das suas posições e a responsabilidade de sua prática. A legitimidade do direito – e do Judiciário – é, nesse sentido eminentemente formal; ocorre que, sendo legitimidade um conceito que vai se buscar na sociologia, ele não existe no campo formal. Por isso, não há espaço para a questão da legitimidade jurídica na hermenêutica positivista. Por isso, como dito acima, a legalidade ocupa o lugar da legitimidade.

4.2 A convergência político-filosófica para a hermenêutica constitucional.

4.2.1 A dialógica como método e a "ressureição" do direito.

Como visto no tópico 2, determinados fatores levaram a que se considerasse indevida a metodologia de se aplicar os método mecânico para se estudar a sociedade. Como elemento de produção cultural, deve também o direito possuir estatuto próprio de análise. Ao invés da lógica formal inflexível, surgem, pois, as soluções oferecidas pela lógica material ou dialética, melhor operada pela retórica. Chaïm Perelman foi um dos filósofos que mais se ocuparam deste tema, defendendo uma lógica específica para lógica jurídica. Segundo ele, "o que há de especifico na lógica jurídica é que ela não é uma lógica da demonstração formal, mas uma lógica da argumentação, que utiliza não provas analíticas, que são coercivas, mas provas dialéticas (...) que visam a convencer ou, pelo menos, persuadir o auditório"(1996:500). O autor belga (re)apresenta a lógica dialética de Aristóteles, esquecida na modernidade em função de não se adaptar ao pensamento cartesiano, mas que encaixa-se perfeitamente no modelo pluralista das sociedades atuais, por preferir o diálogo à imposição. A lei passa, agora, de solução pré-definida, para parâmetro argumentativo.(PERELMAN, 1996)

O que se quer afirmar com essa nova postura filosófica é que o direito não deveria mais ser tratado como uma equação matemática. A complexidade de certas situações jurídicas perpassam qualquer tentativa de generalização que possa a norma abstrata querer fazer: é necessário, ao interpretar a norma considerar-se que nenhuma interpretação ocorre no vazio. Ao contrário, trata-se de uma atividade contextualizada, que se leva a cabo em condições sociais e históricas determinadas (COELHO, 1997). No mesmo sentido Miguel REALE (1978:81) entende que a "interpretação dos modelos jurídicos não pode obedecer a puros critérios de Lógica formal, devendo desenvolver-se segundo exigências da razão histórica entendida como razão problemática" A abstração demasiada, a interpretação desconectada com o agir e o viver histórico-social, passam a ser vista como um óbice, o que exige que os juristas busquem um novo tipo de lógica para decidir com justiça (Dworkin) e/ou razoabilidade (Siches) suas causas.

Se o direito moderno explicava o apego à irrestrito à lei com a necessidade de separar os universos do direito e da moral, do direito e da sociologia, do direito e da política, criando a distinção entre ser e dever-ser, a pós-modernidade faz com que direito receba novo calor e pulsação a partir da negação de seu caráter puro e desligado do social e político. Nesse sentido, afirma-se que o que há em comum entre as correntes pós-modernas do direito é "a idéia de que o direito não é algo abstrato que deva ser procurado no setor do exclusivamente racional, mas um objeto que está aí, existente e real" (COELHO, 1981:1). Compreende-se, assim, que as condições de eficácia dos textos jurídicos – e em especial a constituição – resultam da correlação entre ser (sein) e dever ser (sollen), porque a sua pretensão de eficácia está condicionada pelas condições históricas da sua realização. (COELHO, 1997).

Então, os universos finalmente misturam-se para que o direito respire tenha a possibilidade de respirar a complexidade política e social que tem o compromisso de regular, a partir dos conflitos que lhes são apresentados.

4.2.2 A hermenêutica principiológica

Estas duas características – o enfraquecimento da lógica formal e a "ressurreição" do direito – fizeram com que, impreterivelmente, o direito passasse a operar com cláusulas mais genéricas. Como dito, sendo os textos legais muitas vezes insuficientes para regular satisfatoriamente os conflitos jurídicos, a lei passa a operar como parâmetro argumentativo, recorrendo o decididor a outras fontes reconhecidas pelo direito para atingir uma decisão justa. É dizer: porque expande o seu horizonte hermenêutico, o intérprete alarga também o seu campo visual, que se torna mais rico pela incorporação de novos instrumentos de análise. Superando os condicionamentos que lhe encurtavam a visão, aquele que descortina novos horizontes capacita-se a ver mais e melhor, tanto no plano físico, quanto no plano espiritual. (COELHO, 1997). Paradigmática, nesse sentido, foi a decisão do Tribunal Federal alemão, citada por HABERMAS (1997), afirmando aquela corte que o direito não se identifica com a totalidade das leis escritas, havendo um sentido que deve ser encontrado pelo intérprete. [16]

Ocorre que para estas fontes mais elásticas, que dão um maior espectro ao julgador, parece recomendável que devam surgir parâmetros dentro do próprio sistema ou ordenamento jurídico, a fim de que sua aplicação não se torne caótica. A prática interpretativa, para não se tornar arbitrária e ilegítima, deve prestar contas à racionalidade – ainda que, como no caso, seja uma racionalidade intersubjetiva. Daí, por oportuno dizer, a brilhante intervenção de Ronald Dworkin quando defende a interpretação e motivação jurídica por meio de princípios (DWORKIN, 2002). Estes representam cláusulas gerais estabelecidas juridicamente, a partir da convergência da comunidade hermenêutica acerca de determinado elemento básico, essencial, da ciência jurídica e suas subdivisões (GUERRA FILHO, 2001). São, portanto, os standards juridicamente vinculantes (CANOTILHO, 1998) ou, pode-se ainda dizer, os parâmetros da elasticidade interpretativa exigida nos dias atuais. [17]

Outra característica marcante, talvez a mais notável da hermenêutica pós-positivista, seja o reconhecimento, pela dogmática, da normatividade dos princípios (BARROSO, 2001). O enfoque positivista conferia aos princípios um vazio de conteúdo que os tornava algo parecido a uma carta de boas intenções. A sua debilidade para servir de parâmetro resolutivo de conflitos coincidia com o apego da ideologia liberal pelos códigos e pelo direito privado, em particular. Hodiernamente, contudo, entende-se que os princípios são proposições normativas, e não declarações descritivas. Isso por que, argumenta-se, "não há como separar regras e princípios da categoria normas, porquanto ambos se formulam com ajuda de expressões deônticas fundamentais, como mandamento, permissão e proibição." (ALEXY apud Bonavides, 2002:249) [18] A nova realidade da atuação dos princípios rendeu e ainda vai render controvérsias épicas, mormente em função da lentidão do enfraquecimento do paradigma positivista e de alguns dos seus postulados liberais, com destaque para a sua visão de separação de poderes e a autonomia da vontade. Certamente, contudo, já está inserido na realidade da aplicação jurídica, servindo de parâmetro normativo, e mesmo na seara jusprivatista, como será mostrado adiante.

4.2.3 A questão da legitimidade

"Em uma sociedade moderna, exige-se que as decisões não apenas sejam dotadas de autoridade, mas também que apresentem suas razões". (AARNIO apud Coelho, 1997). Uma assertiva com este conteúdo destoa e contradiz plenamente o pensamento positivista colocado mais acima, especialmente no que toca à idéia de motivação professada por Kelsen. No que aquele entendia como bastante para a legitimação do direito a validade formal, confundindo equivocadamente validade com legalidade, outros autores, confessadamente fundados numa perspectiva democrática – ligada ao giro sociopolítico referido –, passam a afirmar a necessidade de legitimidade pública do direito.

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HABERMAS (1997) ressalta o agir comunicativo como meio de o Estado e os cidadãos construírem a legitimidade necessária, intersubjetivamente, colhendo do direito uma perspectiva "republicana" (contrária ao paradigma liberal, de cunho privatístico) com enfoque numa releitura da teoria liberal dos três poderes e do papel da jurisdição constitucional. HÄBERLE (1997) invoca todos os "intérpretes da constituição" para construírem, também intersubjetivamente, um modelo de constituição plural, aberta e participativa.

Fincando os pés, contudo, na questão da demonstração de legitimidade a partir do conteúdo das sentenças judiciais, o tema contorna a teoria de Kelsen com mais especificidade, demonstrando desapego àquele paradigma autocrático em detrimento de outro, dialógico. Com efeito, diz-se, a responsabilidade do juiz converteu-se, cada vez mais, na responsabilidade de justificar suas decisões (AARNIO) [19]. No contexto de aprimoramento do Estado de Direito, já não basta apresentar razões normativas - reputadas necessárias, mas não suficientes - para justificar as decisões jurídicas ou quaisquer outras de repercussão social. Torna-se necessário "justificar a própria justificação", oferecer uma motivação última e profunda, que se baseie em outras razões - tais como justiça, razoabilidade, oportunidade e correção. (ORTEGA) [20]. E este processo, ou comportamento, que enaltece a plena motivação judicial – que, de resto, representa o paradigma epistemológico pós-moderno, de considerar que no campo das ciências sociais a (inter)subjetividade é a objetividade possível – tem como objetivo último a legitimação política do direito.


5. A Constituição como instrumento competente para reger o direito pós-moderno(pós-positivista)

Finalmente, todas estas características acabam convergindo para que o direito note que o melhor instrumento para operar suas novas realidades filosóficas, políticas, sua hermenêutica da cláusulas gerais, é a Constituição. É importante notar, pois – caminhando finalmente para os resultados do neoconstitucionalismo –, o perfeito encaixe do sistema interpretativo constitucional com as novas características do direito acima apontadas, quais sejam:

(A) a atuação da lógica material em detrimento da formal. A lógica material é dia-lógica; é democrática quando exige motivação pelo diálogo e legitimação pela participação(PERELMAN) Calcada numa hermenêutica que procura apre(e)nder com os fatos sociais os melhores caminhos para a solução dos conflitos, a compreensão desses fatores devem ser operados pelo consenso e pela argumentação (retórica) através de um processo intersubjetivo. Por ser a Constituição um "conjunto de possibilidades" (GRAU) campo aberto para debates, é aí que a tópica [21] e retórica, representantes da lógica material, vão encontrar férteis arenas de solução de problemas, os melhores parâmetros argumentativos que o direito tanto procurava quando sentiu a fragilidade da lei.;

(B) exigência hermenêutica das cláusulas gerais, operadas com parâmetros de racionalidade por meio dos princípios. Por ser exatamente local do ordenamento jurídico onde deságuam as diretrizes políticas, sociais e ideológicas da sociedade, a interpretação de um caso, mormente quando necessária que se faça ampla, vai dirigir seus olhos àquelas premissas maiores da sociedade que se encontram imersos nas exatamente nas cartas constitucionais: seus princípios. Por outro lado, os princípios são utilizados como forma de limitar o arbítrio judicial, quanto mais se, como é o caso, tais princípios sejam densos em normatividade.

(C) a atuação do direito considerando suas repercussões sociais e políticas: o reencontro do sein com o sollen. O reaparecimento do direito como elemento da cultura, nele inserido e modificado faz relevante, além do efeito hermenêutico, a questão sua legitimação política, pois instância de poder. O Estado de Direito pode ser atingido sem esta legitimação, mas o Estado Democrático de Direito exige a legitimação política dos poderes pelos seus delegatários (HABERMAS, 1997). Tal legitimação avalia-se, em boa medida, no comportamento judicial, se autocrático ou dialógico: a exigência de motivação, que se impõe ao intérprete-aplicador do Direito, é condição de legitimidade e de eficácia do seu labor hermenêutico, cujo resultado só se tornará coletivamente vinculante e legítimo se lograr o consenso social, que, no caso, funcionará, se não como prova, pelo menos como sintoma de racionalidade.(VIGO) [22]. O tema da legitimidade do direito coloca-se numa esfera pública, distante do paradigma de direito privado apregoado pelo liberalismo. A exigência da "motivação das motivações", como acima colocado, transcende seu aspecto filosófico, também existente, para recair numa teoria de democracia, de direito público, e sociologicamente, na demanda pluralística das sociedades modernas. Nesse sentido, e ressaltando a Constituição como ponto matriz dessa realidade, coloca muito bem HÄBERLE: "o pluralismo se torna um grande denominador comum, no qual o Estado da Constituição livre do Ocidente encontra seu tipo: uma teoria democrática da Constituição" [23]

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Sobre o autor
Vitor Costa Oliveira

Advogado. Pós-graduando em Direito Constitucional pela Unisul/IDP/Rede LFG. Bacharelando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Sergipe

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Vitor Costa. A formação do neoconstitucionalismo e sua prevalência na contemporaneidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1655, 12 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10850. Acesso em: 24 abr. 2024.

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