3. RECURSO EXTRAORDINÁRIO, PRÉ-QUESTIONAMENTO E O SISTEMA DIFUSO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Enfrentando o tema pretendido, passa-se a estabelecer as relações entre o instituto do pré-questionamento, o recurso extraordinário e o sistema difuso de controle de constitucionalidade, temas tratados anteriormente e cujas nuances relacionais se passa a expor.
Como dito na primeira seção deste artigo, o controle de constitucionalidade nasceu no direito americano como a possibilidade de manifestação dos órgãos judiciários acerca da compatibilidade de leis infraconstitucionais ao texto constitucional.
No Brasil, o primeiro instituto de controle de constitucionalidade, estabelecido na Constituição de 1891, foi o recurso extraordinário. Dirigido ao Supremo Tribunal Federal, nosso Recurso Extraordinário foi instituído para desempenhar o mesmo papel que o percebido pelo judicial review americano: garantir a supremacia do direito federal e da Constituição republicana, recém implantada quando da criação desse recurso.
O RE serve para garantir a higidez do ordenamento jurídico infraconstitucional nas hipóteses em que a decisão possa ter alguma implicação na ordem constitucional. Cabendo ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição (art. 102), um dos instrumentos que a Lei Fundamental previu para o desenvolvimento desse mister é o Recurso Extraordinário.
Através dessa espécie recursal, o Supremo Tribunal Federal avalia a correção das decisões das cortes e juízes inferiores14 em relação à Carta Magna, desempenhando seu papel de Corte Suprema no sistema de construção verticalizada dos órgãos judiciários.
Todavia, para que o Supremo Tribunal Federal conheça do recurso extraordinário há a exigência da formação de causa decidida, ou seja, de que sobre a matéria suscitada como constitucional ou inconstitucional tenha havido manifestação do juízo recorrido. Essa exigência tem dois fundamentos.
Primeiro, o fundamento normativo, incontestável: o art. 102, III, da Constituição da República, repetindo tradição textual legislativa presente na história constitucional, consagra a expressão “causa decidida” como o tipo de causa a qual compete o Supremo Tribunal federal julgar mediante o recurso extraordinário.
Segundo, um fundamento lógico que merece atenção e consiste onde o pré-questionamento, a formação da causa decidida e o sistema difuso de controle de constitucionalidade se entrelaçam.
Para que o Supremo Tribunal Federal se manifeste sobre determinada matéria em sede de recurso extraordinário é preciso que o juízo recorrido haja se manifestado sobre tal assunto. Com isso se implementa o requisito constitucional de causa decidida. A práxis processual brasileira chama a isso, de modo terminológico impreciso, de pré-questionamento.
Em verdade, com colocado acima, o pré-questionamento é a forma, o instrumento, o meio através do qual se forma a causa decidida. Causa decidida é causa pré-enfrentada, é causa pré-questionada, é causa previamente avaliada pelo juízo inferior e contra a qual se insurge. Não se confunde com pré-questionamento na exata medida em que pré-questionar é submeter às instâncias ordinárias a matéria para fins de formação de causa decidida. Há relação aí de instrumento-objetivo, não de equivalência15.
Continuando a desenvolver o raciocínio lógico mencionado, só pode haver recurso de matéria decidida. Não pode haver pedido de revisão de decisão se não houve decisão efetiva sobre a temática. Não se pode conceber que o Recurso Extraordinário seja manejado para levantar questões novas, perante o juízo ad quem, não submetidas à apreciação do juízo a quo; com isso, estar-se-ia transformando a Suprema Corte em juízo de primeiro grau pela via recursal, coisa que o sistema jurídico brasileiro não permite.
Essa exigência de manifestação prévia das cortes e juízos inferiores acerca da questão controversa só é possível em razão do sistema difuso de controle de constitucionalidade.
Nisso reside a semelhança entre o sistema brasileiro de análise do recurso extraordinário e o sistema americano de appeals e de writs, através dos quais o exercício do controle de constitucionalidade pela Suprema Corte se dá após o gradual avanço do processo pelos tribunais regulares (TEIXEIRA, 1979).
No Brasil, a exigência de pré-questionamento para formação de causa decidida funciona como garantia efetiva do modelo difuso do controle de constitucionalidade, aquele no qual os diversos órgãos do Poder Judiciário, ao longo de sua construção vertical, podem vir a se manifestar sobre a constitucionalidade de norma relacionada ao bem da vida pleiteado no caso concreto em juízo.
Tal manifestação só é permitida em um sistema de jurisdição no qual se legue a todos os tribunais e juízos aferir a constitucionalidade de normas nas demandas que lhe são submetidas. Trata-se do sistema difuso, em suma.
A exigência do pré-questionamento, do enfrentamento prévio pela instância ordinária daquilo que se quer levar ao conhecimento do Tribunal Superior é a garantia de existência do próprio controle de constitucionalidade pelo critério difuso. Só chega ao Supremo Tribunal Federal a questão previamente decida pelo juízo inferior.
Em se tratando de Recurso Extraordinário, a natureza da demanda é constitucional, em essência, pois mesmo que se cuide de recurso manejado contra decisão que julgar válida lei local contestada em face de lei federal (art. 102, III, d) trata-se de matéria de possível invasão de competência legislativa; assunto constitucional, portanto16.
Assim sendo, há perfeita correlação entre o sistema difuso do controle de constitucionalidade e a necessidade de ser pré-questionada a matéria contra qual se insurge via recurso extraordinário. O sistema difuso tem por nota característica a difusão, dispersão do poder de controlar a constitucionalidade das leis para todos os órgãos de jurisdição, dentro de suas competências.
A formação de causa decidida só é possível porque se adota tal sistema. Sua exigência como requisito de admissibilidade do apelo extremo se justifica, a uma, porque garante que o Supremo Tribunal Federal se manifeste apenas sobre matérias já decididas e das quais não cabe mais recurso, preservando a função e a autoridade dos juízos inferiores enquanto não encerrada sua jurisdição. A duas, garante que a causa chegue totalmente madura ao Tribunal, preservando a sua elevada função de guardião da Constituição (art. 102, caput, da Constituição da República).
A exigência de matéria pré-questionada só existe porque se adota o critério difuso de aferição de constitucionalidade. Há, portanto, uma relação cíclica entre a formação de causa decidida (pré-questionamento, como quer parte da doutrina) e o sistema difuso do controle de constitucionalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretendeu-se, nesse artigo, estabelecer relações teóricas entre o controle de constitucionalidade exercitado pelo sistema difuso, o recurso extraordinário e os institutos a ele pertinentes da causa decidida e do pré-questionamento. Com isso, intentou-se aproximar essas categorias jurídicas para fornecer ao leitor visão relacional importante para a compreensão da sistemática de controle de constitucionalidade no Brasil.
Conforme se evidenciou, o controle de constitucionalidade como técnica de preservação da Norma Fundamental Positiva tem lugar quando há uma Constituição formal, dogmática, rígida e suprema. Para garantir essa última característica, o ordenamento jurídico dispõe de instrumentos de controle dos atos infraconstitucionais.
Esse controle se organiza, segundo o critério da quantidade dos órgãos aptos a exercê-lo, em dois grandes sistemas, a saber, o concentrado e o difuso. Para essa produção, importou trazer o conceito de sistema difuso de controle de constitucionalidade, aquele que pode ser exercitado por todos os órgãos de jurisdição. No Brasil, um dos mais importantes instrumentos desse sistema de preservação da Lei Fundamental é o Recurso Extraordinário.
Essa espécie recursal é destinada ao Supremo Tribunal Federal e tem por objetivo garantir a higidez do ordenamento constitucional, a partir da apreciação pela Suprema Corte brasileira das lides cujo fundamento seja eminentemente constitucional e com possibilidade de ofensa à norma fundamental. Todavia, é requisito de admissibilidade desse apelo extremo a formação de causa decidida, através do pré-questionamento.
Isso porque: há exigência constitucional expressa de formação de causa decidida para a apreciação do recurso extraordinário (art. 102, III, da Constituição da República); logicamente, não pode haver recurso de matéria não decidida previamente; e, o Supremo Tribunal Federal não pode servir de juízo de primeiro grau em sede recursal, devendo a matéria submetida a recurso já ter sido aventada em instâncias inferiores.
A formação de causa decidida, através do instrumento cognominado pré-questionamento, é uma expressão da adoção, em nosso país, de um sistema que reconhece a possibilidade de todos os juízes e tribunais se manifestarem acerca da constitucionalidade dos atos e omissões estatais. O sistema legal brasileiro confere a todos eles jurisdição constitucional, podendo afastar, no caso concreto que lhes é submetido através da miríade de medidas judiciais previstas, a incidência de comando normativo em desconformidade com a Constituição da República.
A relação entre a causa decidida (pré-questionamento) e o controle difuso de constitucionalidade se demonstra uma vez que no controle difuso tal mister cabe a todos os órgãos de jurisdição, sendo lógico que a Suprema Corte só admita os recursos quando todos os órgãos competentes para dirimir a controvérsia hajam se manifestado, previamente, a seu respeito, e quando todos eles tenham realizado, efetivamente, juízo de constitucionalidade.
Diante disso, entende-se que a formação da causa decidida, através do pré-questionamento, dá-se quando e porque o sistema jurídico brasileiro confere a todos os juízes e tribunais a possibilidade de se manifestarem sobre a constitucionalidade de atos normativos, sistema de controle de constitucionalidade conhecido por controle difuso, e sua exigência se dá de forma totalmente harmoniosa a esse sistema, garantindo que o Supremo Tribunal Federal exercite sua função de guardião da Constituição da República e garanta a higidez do ordenamento jurídico constitucional.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, LUIZ HENRIQUE DINIZ. Direito Constitucional ao redor do globo: o controle judicial de constitucionalidade nos Estados Unidos e o “writ of certiorari”. Revista de Investigações Constitucionais, v. 7, p. 189-204, 2020.
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 8. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
CAMARA, Bernardo Ribeiro. Recurso especial e recurso extraordinário: da teoria à prática. Jus Podivm, 2013.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional: Teoria do Estado e da Constituição e Direito Constitucional Positivo. 17. ed. rev. e atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
CUNHA JR., Dirley da. Curso de direito constitucional. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador, Jus Podivm: 2014.
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais, vol. 3. 11. ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Jus Podivm, 2013.
LOSANO, Mario Giuseppe; LEITE, Silvana Cobucci; VAREJÃO, Marcela. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus. Livr. Martins Fontes Ed., 2007.
SARLET, Ingo Wolfgang. MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo, Saraiva Educação, 2018.
MEDINA, José Miguel Garcia. O pré-questionamento e os pressupostos dos recursos extraordinário e especial. In Aspectos polêmicos e atuais do recurso especial e do recurso extraordinário. Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). São Paulo: RT, 1997.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação (Série IDP), 2021.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
PILLSBURY, Warren H. The Power of the Courts to Declare Laws Unconstitutional: A Discussion Based Upon Review of Decisions Upon Constitutional Questions Affecting the Workmen's Compensation Act. California Law Review, p. 313-342, 1923.
RUBIN, Alvin B. Judicial Review in the United States. La. L. Rev., v. 40, p. 67, 1979.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 39. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016.
STOLZ, Preble. Federal Review of State Court Decisions of Federal Questions: The Need for Additional Appellate Capacity. Cal. L. Rev., v. 64, p. 943, 1976.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012.
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Considerações sobre o direito norte-americano. Revista de processo, São Paulo, v. 4, n.16, p. 113-133, out./dez. 1979. Disponível em: <https://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/17612>. Acesso em: 18 de janeiro de 2024.
Notas
...
.....
-
Cf. Barroso, L. R. (2018). O Constitucionalismo Democrático ou Neoconstitucionalismo como ideologia vitoriosa do século XX | The Democratic Constitutionalism or Neoconstitutionalism as triumphant ideology during 20th century. Revista Publicum, 4, 14–36. https://doi.org/10.12957/publicum.2018.35777
Cf. DE ABREU DALLARI, Dalmo. A Constituição na vida dos povos: da Idade Média ao século XXI. Saraiva, 2010.
É preciso interpretar esse aspecto, todavia, com cautela. Mesmo os estados cujos textos constitucionais não são formais e escritos, como é o caso da Inglaterra, Nova Zelândia e Israel (BARROSO, 2020), também possuem instrumentos de controle de constitucionalidade. Como o próprio Cunha Jr. (2014, p. 215) lembra, ainda que em nota de rodapé, “é claro que, do ponto de vista sociológico, as constituições costumeiras ou históricas são naturalmente rígidas, devido a grande dificuldade de serem alteradas em face da realidade da vida social”.
Em sentido diverso, cf. BULOS, Uadi Lammêgo Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
Todos os artigos d’O Federalista se encontram disponíveis para consulta no sítio do Congresso dos Estados Unidos da América, em: <https://www.congress.gov/resources/display/content/The+Federalist+Papers#TheFederalistPapers-78> Acesso em 10 de janeiro de 2024.
Até 2021, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou inconstitucionais 984 atos normativos, no todo ou em parte. Cf.: <https://constitution.congress.gov/resources/unconstitutional-laws/>. Acesso em 08 de dezembro de 2023.
Martin v. Hunter's Lessee, 14 U.S (1 Wheath) 304 (1816); Cohens v. Virginia. 19. U.S. (6 Wheat) 264 (1821).
É comum, e até justificável, a confusão entre os sistemas de controle de constitucionalidade e o critério de órgãos competentes para a realização desse controle. É inegável que o controle judicial de constitucionalidade, por razões lógicas, coaduna perfeitamente à difusão dos órgãos aptos a declarar a inconstitucionalidade das leis. Da mesma maneira, os sistemas político e misto se encaixam bem com o exercício concentrado de controle de constitucionalidade. Entretanto, a relação entre essas categorias não é necessariamente perfeita. É possível que um sistema de controle seja judicial e concentrado, ou seja, misto e difuso. Cf. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012.
-
A inspiração no direito norte-americano para a criação do recurso extraordinário no Brasil foi clara. Falando acerca da origem do instrumento correspondente no ordenamento yankee, diz Camara (2013, p. 13): “para garantir a supremacia da lei federal (federal question) em toda a federação e evitar a sua desagregação, o governo americano instituiu, através do Judiciary Act, de 1789, recurso capaz de garantir à lei federal incontestável supremacia em toda a federação. O Judiciary Act, através do writ of error, permitiu, pela primeira vez, a revisão das decisões dos Tribunais dos Estados pela Suprema Corte, que, toda vez que se questionasse a respeito de lei federal (federal question), era provocada para apreciar a matéria e restabelecer, quando necessário, a supremacia da lei federal, compreendendo, também, a supremacia da Constituição Americana sobre a lei estadual.
Um dos pressupostos recursais porque, como espécie recursal que é, está submetido o recurso extraordinário a outros pressupostos recursais, como tempestividade, regularidade formal, preparo, dentre outros.
Cite-se como exemplos o art. 941, §3º e o art. 1.025.
Afinal, recorde-se que é possível Recurso Extraordinário contra decisão de juízes de primeiro grau, na sistemática dos juizados especiais. É o teor do enunciado 640 da súmula de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal.
Não é por outra razão que o robusto pensamento de Medina (1997), de ser o pré-questionamento ato da parte merece atenção. Porém, não há formação de causa decidida apenas se e quando a parte agir, conforme exposto na seção 2, razão pela qual pede-se vênia à posição do ilustre professor.
É digno lembrar que antes da Emenda Constitucional n. 45/2004 essa hipótese de cabimento era relativa ao recurso especial, direcionado para o Superior Tribunal de Justiça. Parecia guardar o entendimento de que se tratava de afronta à lei federal e, sendo o STJ a corte responsável pela preservação da legislação federal, seria matéria de sua competência. O legislador constituinte reformador atendeu aos apelos da doutrina e retificou essa imprecisão através da mencionada emenda.