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Código de Menores: 80 anos.

Mello Mattos: a vida que se fez lei

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A comemoração dos 80 anos do Código Mello Mattos oferece oportunidade para que lhe seja prestada justa homenagem, até pela recente passagem dos 17 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Entre aquele ancião e este jovem que busca afirmação, reflexões se impõem.

A comemoração dos 80 anos do Código Mello Mattos oferece oportunidade para que lhe seja prestada justa homenagem, até pela recente passagem dos 17 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Entre aquele ancião e este jovem que busca afirmação, reflexões se impõem.

Se evoluímos do paternalismo filantrópico à construção democrática de comprometimentos comunitários e estatais, temos ainda, ligando os dois marcos legais, a mesma miséria da realidade social brasileira. Injusta e excludente nos anos 20 do século passado. Cruel e certamente mais complexa em pleno Século XXI. No entanto, vencer a injustiça não é obra somente de textos, mas tarefa de homens de bem. Com a ação, bons homens podem minorar imperfeições de ‘maus textos’ e podem maximizar o bem que lhes dispuserem ‘textos bons’. Mas os inertes e o omissos agravam maldades e impedem bondades, independente das letras que lhes forneçam.

Mesmo quando escritos à custa de lágrimas, pólvora ou sangue, textos não operam mágica. Precisam ser trazidos à vida, em luta miúda e cotidiana, olhando nos olhos do desespero. E essa operação exige vontade e coragem.

Não duvidamos que o ECA inicie um ‘novo mundo’ na tutela dos direitos infanto-juvenis. A mudança de paradigma é uma realidade. Mas não autoriza o desprezo para com tudo o que, de ‘mundo anterior, existia. Queimar caravelas na chegada ao mundo novo - sabe-se - não é atitude dos sensatos. A evolução da sociedade faz natural que o avanço de ontem, hoje, seja atraso. Mas - é certo - não houve Copérnico sem Ptolomeu.

Para o desenvolvimento da humanidade, da democracia e da ciência jurídica e para a construção de um direito infanto-juvenil qualificado e robusto, não podem ser desprezadas contribuições sem as quais os caminhos necessários ao progresso não teriam sido abertos. Nessa trilha de raciocínio, cremos ser possível conceder à obra de MELLO MATTOS - e ao trabalho dos que o sucederam - a merecida importância, tantas vezes desnecessariamente mitigada no intuito de defender-se os inegáveis avanços promovidos pela Lei 8.069/90.

O Direito – lembremos - não se constrói no vazio.


DIREITO ESCRITO – TERRITÓRIO DE LUTA

Grandes obras legislativas ecoam nos tempos dando voz à altivez de um povo na medida de grandeza do Direito que praticou. NORBERTO BOBBIO registra que o herói do mundo clássico é o grande legislador. E realça o fato na seguinte história exemplar:

"A obra de Platão começa com as seguintes palavras: ‘Quem é que vocês consideram como o autor da instituição das leis, um deus ou um homem?’, pergunta o ateniense a Clínias; e este responde:" Um deus, hóspede, um deus." [01]

Natural que o direito escrito tantas vezes se pretenda intocável, perene, remetendo o Magistrado à condição estabelecida por MONTESQUIEU de ‘mera boca que pronunciava a lei’, sem autonomia de interpretá-la ou adequá-la. Mas sabemos que a lei escrita não congela o Direito. Luta política e jurisprudência estão aí, conectando realidade social e processo legislativo.

O novo, entre conflito e perplexidade, força as paredes do arcaico. Não mais o mero registro unilateral das vontades e concessões do príncipe, o Direito, agora é socialmente contratado, conforme ROUSSEAU. Surge a compreensão do Direito como repositório de valores, mais do que carta de instruções para a pequena desavença contratual e cotidiana. Momentos assim geram atestados de maturidade, como a Magna Carta de 1215 e as declarações de direitos firmadas pela Revolução Americana, pela Revolução Francesa ou pela Assembléia Geral da ONU, documentos que inauguraram novos tempos. Assim fizeram as diversas Cartas de Direitos das Crianças.

Documentos assim têm irresistível efeito multiplicador. Seus princípios dizem quem somos ou, pelo menos, quem almejamos ser. A lei que instrumentaliza um princípio, inoculada no ordenamento, "contamina" com o bem as leis circunvizinhas. Por isso é que se estabelece, em torno de cada palavra, um verdadeiro campo de batalha, mais que técnica, ideológica, tanto no momento em que as leis são redigidas quanto no passo em que a hermenêutica as transporta à realidade concreta.

Mas a lei depende da gradual evolução, nos povos, do sedimento cultural que firmará solo para edifícios legais que expressam sua alma. Assim ensinou JEAN-JACQUES ROUSSEAU:

"Como o arquiteto que, antes de construir um edifício, sonda e examina o solo para ver se pode agüentar o peso necessário, o sábio legislador não começa redigindo leis boas por si mesmas, mas antes examina se o povo a que são destinadas está apto para suportá-las". [02].

Já FERDINAND LASSALLE, ensina que as leis não são apenas a tinta no papel, mas os "fatores reais de poder" [03]. Direito escrito nada mais é do que a resultante do atrito entre, dentre outros: governo, classes sociais e poder econômico. Se este último predomina, marxistas avisam que a legislação é sempre um instrumento de dominação, apenas viabilizando a manutenção do status quo pela classe dominante.

Por isso é que RUDOLF VON IHERING, no inspirador "A Luta pelo Direito", combatendo o espontaneísmo da Escola Histórica de SAVIGNY, ensina que "a força viva" do direito "só se afirma numa disposição ininterrupta para a luta" [04], construído em "um trabalho sem tréguas, não só do Poder Público, mas de toda a população" [05].

Se é no bom combate que se fazem leis progressistas, os que entendem de luta não desprezam o pequeno avanço, a cabeça de ponte conquistada e a ser defendida, como passo para a vitória mais ampla.

Com essa rápida digressão entendemos que, considerados os ‘fatores reais de poder’ de então, e as regras, ainda de mera e miúda cabotagem, com que se fazia a navegação política na década de 1920, MELLO MATTOS, na verdade, avançou ao Cabo da Boa Esperança.


CONTEXTUALIZANDO O CÓDIGO MELLO MATTOS

O país vivia grande efervescência quando surgiu a obra de MELLO MATTOS. De um lado, o poder das elites conservadoras e rurais buscava perpetuação através de autoritarismo e conchavos de governadores. WASHINGTON LUIZ, em meio à carestia e à recessão, apontava a polícia como solução para os problemas sociais brasileiros, num tempo de sufrágio excludente. Não mais censitário, permanecia masculino e para os poucos alfabetizados, em eleições fraudadas ‘a bico de pena’.

Ocorriam lutas por alterações desse quadro. Na Revolta da Chibata (1910), os marinheiros – inclusive grumetes menores de idade - lutavam com JOÃO CÂNDIDO por comida e contra a crueldade dos castigos físicos. Nos anos 20, os tenentes se mobilizavam como porta-vozes de segmentos médios da população. PRESTES marchava pelo Brasil com sua Coluna. Era fundado o Partido Comunista.

A população dava um salto, passando, entre o final do século XIX e início do século XX, de 10 para 30 milhões, com os menores de 19 anos representando 51% da população. [06] Sofria-se o impacto da industrialização nascente, com todas as suas conseqüências sociais. A proletarização operária gerava situações de miséria e exploração, como as descritas na ficção de CHARLES DICKENS. O inchamento das cidades provocava a vivência do abandono, como descrito em ‘Capitães de Areia’ de JORGE AMADO.

ANDRÉ RICARDO PEREIRA descreve o quadro das principais cidades brasileiras ao final do século XIX, agravada no período a que nos referimos:

"... da noite para o dia (surgia), uma perigosa malta de pessoas marginalizadas que ameaçavam a ordem vigente, seja como massa ativa nos constantes motins urbanos, seja no exemplo negativo de um extrato que não vivia do trabalho ‘honesto’. No interior dessa malta, destacava-se, pela primeira vez, o grupo de crianças e adolescentes. No período anterior, eram pouco visíveis, pois as crianças tinham como destino as Casas do Expostos e os adolescentes trabalhavam como escravos." [07] (nosso grifo)

Como tratar da questão, àquela altura do nosso desenvolvimento histórico? Que forças atuariam em tal embate? As lutas operárias apenas conheciam a incipiente mobilização dos avós anarquistas, recém chegados na imigração. O "povo brasileiro" era construção ainda dispersa, com lutas de fraca organicidade e consistência, com baixo grau de consciência, sem condições de efetiva conquista de direitos e espaços de poder. O aparato oficial se constituía de poucos, em favor de poucos.

ROBERTO DA SILVA esclarece bem o contexto:

"...as leis são formuladas, na sua origem, para assegurar os direitos de um protótipo de homem, que no caso brasileiro apresentava-se, no inicio do século, como homem branco, letrado e cristão, a mulher e a criança tornaram-se tributários destes direitos apenas a partir da relação de parentesco e de consangüinidade com o varão." [08]

O então recente Código Civil Brasileiro cuidava preferencialmente desse homem branco e proprietário, idealizado pelo Estado. Aos pobres e pretos, o Código Penal. Mas os relatos da época já registravam a perplexidade das elites para com o ‘problema do menor’. O contexto era de limpeza da paisagem para saúde do sonho dourado de nossas elites europeizadas. Era necessário eliminar os fétidos cortiços e esgotos que corriam pelas ruas. Era necessário controlar as epidemias e dar novos ares ao Rio de Janeiro com a derrubada do Morro do Castelo, reprimindo "capoeiras" e "vadios" improdutivos e limpando a paisagem da nódoa de crianças pobres, entregues à mendicância ou à delinqüência.

Há dois elementos a serem compreendidos. Primeiro, a filosofia positivista que imperava naquele quadrante histórico. Dela resultava um dirigismo das elites que, na visão da época, tornava o comando das oligarquias uma necessidade, já que, "sob o país oficial, estava o mundo informe", ou seja, o povo difuso e composto de "incapazes de seguir diretrizes próprias no jogo das instituições, que não conseguiam assimilar e que a grande maioria de seus membros não podia sequer compreender" [09].

RAIMUNDO FAORO menciona as avaliações sobre o fracasso da aventura republicana, na comparação com os modelos que se pretendeu copiar: "Falhara a entrega da nação a uma sociedade que, não livre, carecia de elementos vivos de coesão", pelo que "o governo deveria educar, cultivar e orientar o povo" [10]

Sobre este aspecto, e de particular interesse ao tema focalizado neste trabalho, é emblemático o discurso do Senador LOPES TROVÃO em 1896, quando brada:

"...Temos uma pátria a reconstruir, uma nação a firmar, um povo a fazer e para empreender essa tarefa que elemento mais útil e moldável a trabalhar do que a infância? São chegados os tempos de trabalharmos na infância a célula de uma mocidade melhor, a gênese de uma humanidade mais perfeita." [11] (nosso grifo)

A quem mais entregar missão desta grandeza? Se não havia povo, ainda também não estavam constituídas, com densidade reivindicativa, camadas médias em condições de alguma intervenção política efetiva, como detecta FAORO:

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"A classe média, a camada média da sociedade, segundo denominações divergentes, não tinha condições objetivas de aspirar ao comando político do país (...) reclama não um papel próprio, mas o abandono de um Estado não intervencionista (...)" [12]

Era inevitável o dirigismo elitista em face da dispersão das forças populares e da incapacidade de ação das camadas médias que esboçavam atuação apenas no âmbito militar.

Positivismo mais dirigismo eram conservadores e, se impulsionados a alguma atitude proativa nas questões sociais, assim se fazia apenas como forma de prevenir e esterilizar os reclamos e reivindicações nascentes. Ainda de perto se contemplavam as brasas da Grande Guerra e da Revolução Soviética de 1917.

Eram passadas menos de 03 décadas da abolição da escravatura, precedida de reforços ‘pseudocientíficos’ à mitologia quanto à maldade congênita do negro. JOAQUIM MANUEL DE MACEDO chegou a escrever, numa espécie de ‘contra-ficção’, os três contos antiescravistas de "As vítimas algozes", em resposta à publicação, no Brasil, de "A Cabana do Pai Tomás", de Harriet Beecher-Stowe [13]. Defendia que a escravidão precisava terminar, não porque os negros eram ‘bonzinhos’ e dignos de pena, mas, sim, porque o sistema os transformava em criminosos cruéis. Sua tese era reforçada pelo noticiário que registrava crimes de escravos contra senhores, reação desesperada à ausência de horizontes. Não bastasse serem tidos por inferiores, sem alma e sem direitos, veio a disseminação do conceito do negro ‘ladino’ e aterrorizante, visão que provavelmente se agravou quando o início da República recebeu a ilusão cientificista e o positivismo que permitiram à criminologia preconceituosas teorias de maldade congênita.

Neste contexto estabelece-se a preocupação com a criminalidade juvenil. Por detrás do pequeno delito se ocultaria a monstruosidade. Havia uma perspectiva higienista, com o viés da eugenia. Unem-se a pedagogia, a puericultura e a ciência jurídica para atacar o problema, tido como ameaçador aos destinos da nação: ‘o problema do menor’.

Ocorre a conscientização quanto à gravidade das precárias condições de sobrevivência das crianças pobres. Havia epidemias, superstição materna e pátrio poder impermeável às orientações quanto às providências básicas de saúde e higiene. Era elevada a taxa de mortalidade infantil. No caso dos "expostos", entregues às Santas Casas de Misericórdia, o índice chegava a 70%.

Marcos dessa reflexão foram o Centenário da Independência e a Exposição Mundial de 1922, no Rio de Janeiro. O clima era de ufanismo, esperança e crédito na capacidade humana de transformação da realidade. A questão da criança é realçada, destacando-se nessa reflexão médicos, políticos e advogados. O futuro do Brasil – descobre-se - dependia de atenção especial para com a infância.

Efeméride importante ocorreu, também em 1922: o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, realizado na Capital da República, em conjunto com o Terceiro Congresso Pan-Americano da Criança, sob inspiração de conferências internacionais. Criou-se uma agenda mais sistemática para a proteção social, influindo em questões de higiene, medicina, pedagogia, assistência social e legislação. Surgem recomendações para criação de leis de proteção à infância.Diversas tentativas, capitaneadas por grandes idealistas como Tobias Barreto, passando por Evaristo de Moraes, Lopes Trovão, Alcindo Guanabara, dentre outros, foram empreendidas, mas sem que o Congresso as aprovasse ou simplesmente, as discutisse. Até que vem o Projeto de Mello Mattos.

É NESSE QUADRO QUE SURGE, COM TODAS AS HONRAS, UMA OBRA DA IMPORTÂNCIA DO CÓDIGO DE MENORES INSTITUÍDO EM 1927. Muitos criticam a não adoção das recomendações da Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, que a Liga das Nações, com o voto brasileiro, aprovou em 1924. Esquecem-se os críticos das características muito particulares do Brasil em relação ao pensamento internacional. O mundo de então vivia o tempestuoso entre-guerras da ascensão nazi-fascista e a débil Liga das Nações, já em passo de derrocada, pouca condição tinha – como ocorre com a ONU hoje – de impor normatividade às declarações de princípios.

Não se pode apreciar o Código Mello Mattos com juízos fora desse contexto. Ninguém despreza o pioneirismo operado, com as limitações de seu tempo, por Fra Angélico, porque a técnica de Da Vinci ou a inventiva de Picasso seriam superiores! A cada um a sua circunstância. Lembremos do ensino de MARX que, embora referido em outro contexto, não atende só aos marxistas:

"Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado". [14]

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Sobre os autores
Inês Joaquina Sant'Ana Santos Coutinho

Juíza de Direito aposentada. Atuou na Vara da Infância, da Juventude e do Idoso de Teresópolis (RJ)

Denilson Cardoso de Araújo

Serventuário de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Escritor. Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTINHO, Inês Joaquina Sant'Ana Santos ; ARAÚJO, Denilson Cardoso. Código de Menores: 80 anos.: Mello Mattos: a vida que se fez lei. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1673, 30 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10879. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Título original: "A vida que se fez lei".

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