Manifestação como direito dos particulares em Moçambique.

Enquadramento jurídico e desafios do seu exercício

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Resumo:


  • A manifestação como direito dos particulares em Moçambique é analisada sob o enquadramento jurídico, com destaque para a Constituição do país.

  • O exercício do direito à manifestação é regulado pela Lei n.º 9/91, que estabelece critérios para a realização de manifestações, mas enfrenta desafios na prática.

  • Os desafios incluem a interpretação equivocada da lei por parte das autoridades, a proibição injustificada de manifestações e o uso excessivo de força policial contra manifestantes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

7. DESAFIOS NO EXERCÍCIO DO DIREITO A MANIFESTAÇÃO EM MOÇAMBIQUE

Falar de desafios no exercício do direito a manifestação em Moçambique, é pretender fazer análise da efectivação da Lei 9/91 de 18 de Julho (Lei da manifestação). Apesar da existência desta Lei, com o teor autorizante para a realização da manifestação, ainda persistem inúmeras situações que assumem a categoria de indicadores de desafios para a efectivação dessa lei. Até então, não se sabe ao certo se a manifestação em Moçambique carece ou não de autorização.

Ora vejamos: o número um 1, artigo três 3 da Lei de manifestação, determina que “todos os cidadãos podem, pacífica e livremente, exercer o seu direito de reunião e de manifestação sem dependência de qualquer autorização nos termos da lei”. Isso significando que a manifestação não carece de qualquer autorização prévia, ou seja, não há necessidade de formular pedido para realização da manifestação à nenhuma autoridade pública ou privada. Para realizar a manifestação, basta somente informar, avisando ou comunicando, por escrito, essa pretensão com antecedência mínima de quatro dias úteis, às autoridades civis e policiais da área em questão.

Portanto, aqui não se refere ao pedido, mas sim ao aviso que é claramente diferente do pedido. A tarefa das autoridades neste caso, é de verificar o decurso da manifestação se se afasta ou não da sua finalidade ou objectivo, para caso se identifique o afastamento, tais autoridades exercerem a interrupção da manifestação nos termos do artigo 7, da Lei nᵒ 7/2001, de 7 de Julho. Contudo, a Lei n.º 9/91, de 18 de Julho, prevê a proibição da manifestação. Por exemplo: no número três 3 do artigo onze 11 da referida lei, expõe-se que a decisão de proibição ou restrição da manifestação compete a autoridade civil da área em causa e não à autoridade policial. E isso dá entender que a manifestação pode ser proibida. Dessa disposição, surge a questão seguinte: como é possível haver proibição, sobre uma coisa que naturalmente não se pede, por força da Constituição? Ou seja, até que ponto, a lei proíbe o que a Constituição permite? Ou, por outras palavras, que ninguém pediu, e que nem é necessário pedir?

A manifestação tem lugar, quando um direito está sendo violado numa sociedade politicamente organizada, pressupondo-se que manifestar seja a maneira encontrada para exigir a efectivação de um direito legalmente previsto ou a sua reposição em casos de ter sido violado pelas autoridades administrativas ou outras. Desta forma, a manifestação faz parte dos direitos subjectivos à semelhança da reclamação e constitui uma garantia dos particulares. Esta garantia, está constitucionalmente reconhecida cuja previsão se encontra no artigo 51 da Constituição da República de Moçambique segundo o qual, todos os cidadãos têm direito à liberdade de reunião e de manifestação nos termos da lei.

Esta disposição, vem mais uma vez clarificar o carácter da manifestação como garantia dos particulares. Contudo, a sua efectivação enfrenta vários desafios por via das garantias da própria Administração Pública as quais fazem parte dos seus poderes como é o caso do privilégio da execução prévia e o poder de execução forçada. Para facilitar perceber a influência dessas duas figuras (privilégio da execução prévia e o poder de execução forçada), passamos a analisá-las seguidamente.

7.1. O privilégio de execução prévia

O privilégio de execução prévia é definido como sendo o “poder ou capacidade legal de executar actos administrativos definitivos e executórios, antes da decisão jurisdicional sobre o recurso interposto pelos interessados” (alínea g, do Artigo 1, do Decreto nº 30/2001, de 15 de Outubro).

Este privilégio constitui, uma garantia da Administração Pública, “como estabeleceu a Primeira Secção no Acórdão WACKENHUT MOÇAMBIQUE, LIMITADA, de 30 de Outubro de 2007, os principais atributos que caracterizam o acto administrativo inerente ao privilégio de execução prévia, são: a imperatividade, que consiste na prerrogativa que tem a Administração Pública de fazer valer a sua autoridade, tornando obrigatório o conteúdo do seu acto para todos aqueles a quem mesmo se dirige, os que têm de o acatar, no caso dos particulares; e a exigibilidade/autoexecutoriedade, em virtude dos quais, em face do não acatamento ou incumprimento da decisão, pelos particulares, a Administração Pública, em consequência do privilégio de execução prévia de que goza, pode impor e mandar cumprir, coactivamente e por meios próprios, as obrigações criadas pelo acto por si expedido, sem necessidade de recorrer a outros poderes, nomeadamente, ao judiciário”.

O privilégio da execução prévia resulta da possibilidade que a Administração tem de tomar decisões executórias, isto é, a Administração é dispensada, para realizar os seus direitos, do prévio recurso a um tribunal. Por outras palavras, o privilégio da execução prévia significa que o acto é revestido de uma presunção de legalidade que obriga o seu destinatário a executá-lo antes de qualquer contestação (CISTAC, Gilles, 2009, p.11).

Esta situação atribui à Administração, pelo menos, duas vantagens, a saber:

  • No âmbito do processo administrativo contencioso, o recurso contencioso não tem efeito suspensivo da eficácia da decisão impugnada, isto é, o facto de que o particular recorre do acto administrativo não impede este de ser executado e a Administração poderá executar este acto apesar de ter um recurso deste pendente perante o juiz.

  • No caso em que um particular contesta as pretensões da Administração, é ele que deverá recorrer ao juiz; por outras palavras, com o privilégio de execução prévia, a Administração constrange o administrado a tomar no processo a posição desfavorável de recorrente” (idem).

Assim, a posição da Administração é bastante vantajosa porque, perante o juiz, é o recorrente que deverá provar a ilegalidade da decisão recorrida. O particular estará, pois, numa situação desfavorável em relação à Administração. É importante realçar que esta prerrogativa de execução prévia está sujeita a uma obrigação: a Administração não pode renunciar neste privilégio. Com efeito, as prerrogativas da Administração Pública não lhes são atribuídas nem no seu próprio interesse, e nem no interesse dos funcionários, mas, pelo contrário, pela prossecução do interesse geral. Assim, a Administração não pode renunciar ao privilégio de execução prévia, mesmo se desejá-lo (idem).

É de referir que como regra geral, “a Administração Pública pode apenas tomar as decisões que o direito a autoriza a praticar ou aprovar; nisto, a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça; é de uma certa forma, uma sujeição. Todavia, o domínio da sua intervenção é muito vasto. Na prática, a Administração Pública pode tomar decisões de carácter regulamentar ou individuais e concretas em vários domínios.

7.2. O poder de execução forçada

Entende-se por “Poder de execução forçada” a “capacidade legal de executar actos administrativos definitivos e executórios, mesmo perante a contestação ou resistência física dos destinatários” (alínea a), do Artigo 1, do Decreto nº 30/2001, de 15 de Outubro).

Este poder constitui uma garantia da Administração Pública. A execução forçada é necessária e possível.

É necessária para garantir o cumprimento das decisões da Administração. É possível porque a Administração, que toma a decisão, dispõe, ao mesmo tempo, da força pública e consequentemente, da força material necessária para fazer cumprí-la. Mas a Administração não pode proceder ao cumprimento forçado das suas decisões sem respeitar os trâmites processuais legalmente previstos que constituem garantias administrativas para os particulares. Não existem no ordenamento jurídico moçambicano normas jurídicas que regulam, de forma geral, a execução forçada. Pelo contrário, são vários diplomas que estabelecem, caso a caso, o regime aplicável num determinado sector.

É o caso, em particular, em matéria de Licenciamento de Obras Particulares. Pode-se imaginar facilmente a situação na qual a autoridade licenciadora ou outras entidades com atribuições legais para o efeito ordenam a demolição de uma obra fixando para o efeito o respectivo prazo porque a obra, por exemplo, não respeita os requisitos previstos em matéria de salubridade, solidez ou segurança contra o risco de incêndio. Pode acontecer que o dono da obra opõe resistência activa ou passiva à ordem de demolição. Neste caso, a regulamentação vigente prevê um procedimento, ao mesmo tempo, equilibrado e cauteloso em relação aos direitos dos particulares e da própria Administração.

Primeiro: a demolição não poderá ser ordenada sem que se proceda a vistoria, com observação da execução das obras necessárias para corrigir más condições de conservação, salubridade, solidez e segurança contra risco de incêndio. Por outras palavras, a Administração deve tomar o cuidado de verificar se existe efectiva e objectivamente uma situação factual contrária aos requisitos previstos na regulamentação vigente considerados como essenciais para garantir o interesse público lato sensu. Assim, a demolição tem lugar quando o prosseguimento das obras for irremediavelmente incompatível com o projecto aprovado, com a segurança de pessoas ou bens, com os instrumentos de planeamento territorial ou com a legislação sobre terras, ambiente e construção. Além disso, a demolição pode também ter lugar quando, por razões de interesse público, os direitos de uso e aproveitamento da terra hajam sido revogados ou as propriedades revertidas para o Estado, ou ainda quando as construções se desenvolvam ilegalmente em zona de reserva

Segundo: o interessado deve ser ouvido no processo para conhecer e avaliar o seu ponto de vista e argumentos. Com efeito, de acordo com a regulamentação vigente, “a ordem de demolição é antecedida de audição do interessado, que dispõe de 15 dias a contar da data da sua notificação para se pronunciar sobre o seu conteúdo”.

Terceiro: a entidade ordenante procede à demolição da obra por conta do infractor.

Em todo caso, a execução forçada de um acto ilegal bem como a execução forçada irregular de um acto legal são ambos fontes de responsabilidade. É também o caso quando o Instituto Nacional de Transportes Terrestres (INATRO) ordena a apreensão de veículos quando não tenham a matrícula regularizada ou o título de registo de propriedade regularizados, quando sejam encontrados a transitar estando o respectivo livrete apreendido ou quando sejam encontrados a transitar sem o respectivo número de matrícula ou com um número diferente.

Como se pode notar, as duas figuras atrás reportadas constituem garantias da Administração Pública, as quais lhe permitem impor os seus interesses de forma independente. Os exemplos de funcionamento nelas constantes, se verificam também no caso da manifestação. O privilégio de execução prévia por exemplo, faz-se presente na manifestação na medida em que as autoridades administrativas (civis e policiais) têm a possibilidade de tomar a decisão de proibição e interrupção respectivamente da manifestação, sem prévio recurso a um tribunal. Nesta situação, as autoridades administrativas são dispensadas, para realizar a sua pretensão, do prévio recurso a um tribunal com a convicção de que este ato está revestido de uma presunção de legalidade que obriga os particulares considerados destinatários do ato a executá-lo antes de qualquer contestação.

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Enquanto isso, o poder de execução coerciva ou forçada, tem a sua atuação na manifestação na medida em que as autoridades a cima, conseguem proibir ou interromper a manifestação mesmo perante a contestação ou resistência física dos particulares. Mas nestes casos, as autoridades administrativas não podem proceder ao cumprimento forçado das suas decisões sem respeitar os trâmites processuais legalmente previstos que constituem garantias administrativas para os particulares. Respeitar os trâmites processuais legalmente previstos para o caso de proibição ou interrupção da manifestação pelas autoridades em Moçambique, implica a observância das normas como:

  • Constar de um auto lavrado pelas autoridades competentes, a decisão que determina a proibição ou interrupção da manifestação cuja cópia deve ser entregue aos promotores, com uma descrição obrigatória dos fundamentos da ordem de proibição ou interrupção de acordo com a lei de manifestação temos vindo a citar;

  • Emissão do documento comprovativo da recepção do aviso dos promotores de manifestação, pela entidade receptora nos devidos termos.

As regras enunciadas acima, são raramente cumpridas pelas autoridades administrativas. O que se nota com maior frequência é a intervenção da Polícia da República de Moçambique (PRM) para impedir o exercício do direito a manifestação pacífica, livre, antecedida de todos os requisitos necessários, nomeadamente: a rota ou local público previamente definido; assinatura de dez promotores; informação das causas da manifestação; Aviso ou informação às autoridades civis e policiais da área em questão; Entrega do aviso com quatro dias de antecedência; Solicitação da proteção do Estado contra eventuais sabotadores; Garantia da inexistência de manifestantes com armas ou objetos susceptíveis de ferir terceiros.

E o mais decepcionante, é que a intervenção da Polícia da República de Moçambique, tem-se caracterizado por detenções arbitrárias, agressões físicas, baleamentos, tortura e outros maus tratos que consubstanciam violação dos direitos humanos, com argumentos segundo os quais a manifestação não foi autorizada ou é ilegal. Destes argumentos, a questão que perante a qual não se deve calar, é de saber que autorização se alega pela polícia, uma vez que legalmente se sabe que a manifestação não carece de pedido.

Então, há aqui, um claro desafio de as autoridades que insistem impedir a manifestação com esse argumento, serem atualizados por via da lei. Outro facto relativo ao exercício da manifestação menos claro, é a questão da alegada competência de proibição. Na prática, a Polícia da República de Moçambique é que proíbe verbalmente e com atos violentos à realização da manifestação sem exibir documento proibitivo de nenhuma autoridade civil, dita como competente para o efeito. Não obstante, a lei de manifestação prevê que a decisão de proibição ou restrição da manifestação compete a autoridade civil da área em causa e não a autoridade policial.

Nota-se ainda que em Moçambique, há tendência de se fazer uma interpretação extensiva da lei de manifestação pela parte das autoridades como é o caso do artigo 10. O n.º 1 deste artigo, refere que “as pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões ou manifestações em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito, do seu propósito e com a antecedência mínima de quatro dias úteis, às autoridades civis e policiais da área”. Aqui, as autoridades das áreas de realização da manifestação, estendem essa interpretação do aviso para pedido de autorização, o que supostamente lhes obriga sempre evocar a questão de falta de autorização da realização da manifestação.

Outra prática notável, é a omissão. Frequentemente as autoridades civis omitem o cumprimento de certas obrigações relativas à efetivação da lei da manifestação. O mesmo artigo 10 da lei de manifestação (Lei n.º 9/91 de 18 de Julho) por exemplo, no n.º 4 estabelece que, “a entidade que receber o aviso emitirá documento comprovativo da sua recepção nos devidos termos”. Contudo, tais autoridades no lugar de emitir o exigido comprovativo por lei, limitam-se em impedir o exercício desse direito sem fundamentos plausíveis. Outro desafio no exercício do direito a manifestação em Moçambique, tem a ver com a insuficiência de informações por parte dos promotores da manifestação, sobre os quais recaem as obrigações das autoridades. Os promotores muitas vezes só se preocupam em buscar os requisitos para a realização da manifestação. A parte do direito que eles têm de receber o documento comprovativo emitido pelas autoridades, a obrigatoriedade de fundamentação da proibição ou interrupção da manifestação por parte das autoridades, os promotores não têm domínio. Assim, esta falta de informação, propicia a violação desse direito constitucional e infra constitucionalmente reconhecido.

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