Ao proferir a decisão mandando afastar os membros da quadrilha de juízes vulgarmente apelidada de Cashback, o corregedor viu o que não podia deixar de ver. Mas existem algumas coisas que não foram vistas por ele.
Quando julgou o processo nº 0003021-32.2016.4.04.8000/RS em 2016, por maioria absoluta, o TRF-4 disse textualmente que a Lava Jato não precisava cumprir a Lei:
"Ora, é sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada "Operação Lava-Jato", sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns."
Essa decisão, que não foi referendada apenas por um juiz do TRF-4, abriu a porteira para todos os abusos subsequentes que foram praticados. Tudo indica que o Cashback começou a nascer justamente quando esse precedente foi criado e aplaudido pela imprensa. Afinal, pequenos abusos quase sempre originam grandes tragédias.
Com a honrosa exceção do desembargador Rogério Favreto, que afirmou que “...a tentativa de justificar os atos processuais com base na relevância excepcional do tema investigado na comentada operação, para submeter a atuação da Administração Pública e de seus agentes ao escrutínio público, também se afasta do objeto e objetivos da investigação criminal, mormente porque decisão judicial deve obediência aos preceitos legais, e não ao propósito de satisfazer a opinião pública...”, o TRF-4 autorizou os larápios lavajateiros a fazer o que bem entendessem. Em sua decisão, o corregedor do CNJ confirmou que eles meteram o pé na jaca e enfiaram a mão na cumbuca.
Perseguido pelos colegas e criminalizado pela imprensa, Favreto comeu o pão que o diabo amassou. O mesmo ocorreria com Eduardo Appio, juiz federal que removeu o sigilo da administração financeira dos processos da Lava Jato criando as condições indispensáveis para o CNJ desmantelar a quadrilha lavajateira.
“É tecnicamente irrepreensível. Pode-se gostar dela, ou não. Aqueles que não gostarem e por ela se sentiram atingidos tem os recursos próprios para se insurgir”, afirmou em 2017 Thompson Flores sobre a sentença nula proferida por Sérgio Moro contra Lula que seria anulada pelo STF. Ele dirá o mesmo da decisão do CNJ que o afastou do cargo?
O CNJ não foi criado para revisar atos jurisdicionais proferidas pelos juízes nos processos. Mas no cerne do debate levantado pelo afastamento de Gabriela Hardt, Thompson Flores e outros, estão justamente decisões judiciais que foram proferidas pela 13ª Vara Federal de Curitiba e referendadas pelo TRF-4. As que permitiram a instrumentação política do Judiciário pela quadrilha ou bando Cashback demoraram muito para despertar qualquer reação institucional. Aquelas que foram proferidas por juízes que tentaram restaurar a legalidade acabaram sendo desautorizadas pela imprensa expondo-os a processos administrativos no CNJ.
A Ajufe (associação de juízes), como é fato notório, ficou ao lado dos juízes lavajateiros. Esse é outro ponto importante aqui. Mesmo agora a Ajufe invoca o espírito de corpo para tenta restaurar a honra dos larápios lavajatistas. É possível defender os membros do Judiciário prejudicados pela decisão do CNJ sem questionar a própria a tecnicamente irrepreensível decisão que foi proferida? A resposta é não.
O aspecto mais evidente e deletério da Lava Jato foi a especularização do processo. Sérgio Moro e seus colegas transformaram a imprensa numa correia de transmissão de suas decisões. O que levou os jornalistas a acreditarem que a imprensa poderia ser uma instância judiciária capaz de condenar suspeitos, legitimar decisões judiciais e desacreditar juízes que tentavam manter o due process of law resistindo aos abusos praticados pela quadrilha ou bando Cashback.
Inelegível, Deltan Dellagnol voltou a público para atacar o CNJ em defesa dos amigos prejudicados pela decisão que os afastou dos seus cargos. A imprensa deu palanque para ele como se ele mesmo não estivesse no centro do esquema de apropriação privada (ou tentativa de apropriação privada) de verbas públicas arrecadadas no âmbito da Lava Jato.
A suspeição dos membros da quadrilha ou bando Cashback obviamente não serve à narrativa da parcela da imprensa que prefere afundar com a Lava Jato a admitir que ela comprometeu o due process of law. Afiliações políticas nesse caso, são mais importantes do que as tecnicalidades jurídicas. O cálculo da imprensa é eleitoral. Se a Lava Jato perde, Lula ganha. Se ele ganhar o PT poderá fazer mais prefeituras do que a oposição. Portanto, o ataque ao CNJ é inevitável e ele se tornará mais intenso nos próximos dias.
Não é possível ou aconselhável resistir à imprensa. Essa é a mensagem dos veículos de comunicação que defendem a Lava Jato e começam a se posicionar contra o CNJ em defesa de Gabriela Hardt, Thompson Flores e outros dando espaço para os amigos deles se manifestarem. Pessoalmente implicado nesse episódio, Sérgio Moro ainda não se manifestou. Mas me parece evidente que ele não poderá deixar de fazer isso.
A liberdade de imprensa garante aos veículos de comunicação o direito de divulgar aquilo que as autoridades querem esconder e de comentar aquilo que elas fazem. A opinião dos jornalistas é importante, mas ela não pode e não deve ser considerada mais importante do que as decisões judiciais. A imprensa não é um Tribunal de Exceção com poder de legitimar decisões judiciais abusivas. Ela obviamente não deveria funcionar como uma instância capaz de forçar a revogação de decisões judiciais tecnicamente corretas.
Os juízes devem proferir suas decisões com independência cumprindo e fazendo cumprir a legislação em vigor. Se forem pautados pela imprensa, o conteúdo das decisões deles será juridicamente nulo ou anulável. Nada disso, entretanto, servia ou serve aos propósitos da narrativa da quadrilha ou bando Cashback. Assim que começou a ser espetacularizada, a operação comandada por Sérgio Moro e Deltan Dellagnol entrou por um caminho sem volta. Ele só pode levar a dois resultados políticos: vitória ou derrota; hegemonia política total ou declínio e queda inexorável.
E isso nos leva a um paradoxo importante. O que parecia ser a maior força da Lava Jato (sua alavancagem jornalística) se tornou no aspecto mais fraco das carreiras dos membros do Sistema de Justiça que a comandaram e aderiram à narrativa lavajateira. Normalmente, o destino de um processo não se identifica com o destino pessoal do procurador que o iniciou ou do juiz encarregado do julgá-lo.
Os membros do Sistema de Justiça têm o dever de agir de maneira impessoal. É essa impessoalidade que os protege. Ao se identificarem com a Lava Jato, Deltan Dellagnol, Sérgio Moro e seus colegas vincularam suas carreiras profissionais e vidas pessoais com algo que poderia levá-lo ao poder ou à sarjeta. Tudo indica que a sarjeta os aguarda. Nenhuma reviravolta os salvará do fim triste e melancólico que teve Rocha Mattos. Antes de morrer em setembro de 2022, aquele ex-juiz era visto se enchendo de cachaça nos bares próximos do Ceasa SP.
Juízes e procuradores são suficientemente bem remunerados para resistir à tentação do protagonismo jornalístico. Todavia, a vaidade aliada à principal característica da sociedade do espetáculo parece compelir alguns deles a esquecer que a Justiça não é um teatro e que o roteiro das vidas profissionais e pessoais dos membros do Sistema de Justiça não é escrito pelos jornalistas e sim pelos legisladores (e pelos juízes que eventualmente julgarão os abusos que foram cometidos).
Num futuro próximo previsível, além de ser julgado pela imprensa, os juízes também serão julgados por Inteligências Artificiais. Suponho que eles ficarão horrorizados ao descobrir que a automatização das decisões é algo especialmente temível no caso deles.