A roda grande passa pela pequena (Ou "Do Poder Moderador")

16/04/2024 às 10:32
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Existe um célebre brocardo hermenêutico no seguinte sentido: “In claris cessat interpretativo”. Em tradução livre, “na clareza, cessa a interpretação”. Isso quer significar que alguns textos, diante da obviedade do seu conteúdo, prescindem de interpretação. Afinal, qual a necessidade de envidar esforços para dizer o que já está dito? Vai de encontro ao princípio do mínimo esforço, máximo resultado.

Até o presente momento, eu reputava ser o artigo 2° da Constituição um desses textos: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Ponto. A Constituição é de 1988, e não de 1824. Não há falar, aqui, ao largo do texto constitucional, na existência de poderes paralelos.

No entanto, minha namorada costuma brincar: “A roda grande pode passar pela pequena”... Essa parêmia, fruto das reflexões populares, é uma maneira alternativa de dizer que o impossível pode acontecer. E aconteceu.

Foi ajuizada a ADI 6457, que sustentava a existência de um “Poder Moderador”. Fundava-se a linha argumentativa no artigo 142 da Lei Maior de 88 (“As Forças Armadas [...] destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”), de tal sorte que os militares, diante de conflito entre os Poderes, poderiam intervir para repor a lei e a ordem.

O resultado, a toda evidência, não poderia ter sido diferente: por unanimidade, o STF afastou qualquer interpretação que permita conceber a figura do Poder Moderador. Ressaltou-se, ainda, “ que a chefia das Forças Armadas tem poder limitado, não sendo possível qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no funcionamento independente dos poderes da República” (STF, 2024, online).

Ora, não se deve jamais querer trazer à baila os sombrios tempos da ditadura (tão bem estudados, e deixo aqui a indicação, por Elio Gaspari, na sua profícua coleção de 5 volumes a respeito do tema), em que direitos e garantias fundamentais foram relegados a segundo plano. Com o advento da Constituição de 88, conquistada a árduas penas (vide Ihering e a sua “Luta pelo Direito”), deve-se sempre fazer valer os dogmas de uma hermenêutica constitucional, o que implica dizer que os princípios da unidade e da força normativa da Constituição não podem ser lançados ao oblívio. Se o artigo 2° assevera ser o Poder tripartido, nenhum outro artigo poderia desvirtuar seu sentido. Até então, não achava que isso precisava ser dito. Mas ao que parece, a roda grande passou pela pequena...

Sobre o autor
Gustavo Machado Rebouças

Jovem eivado de inexperiência que, casualmente, se presta a tecer breves considerações acerca do mundo jurídico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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