A corrupção é um câncer que corroi a sociedade pelo seu efeito nefasto. Planta no seio da sociedade a descrença nas instituições públicas e nas autoridades constituídas.
Apesar de o Brasil ter aderido ao acordo de combate à corrupção nos âmbitos da OCDE e da ONU, a corrupção entre nós tornou-se fora de qualquer mecanismo de controle, ao contrário do que acontece na maioria dos demais países, onde a corrupção está sob controle do Estado. Estados existem em que os corruptos são condenados è pena capital.
No Brasil, por conta de incríveis filigranas processuais, os corruptos não são alcançados pela lei penal deixando-se levar pela prescrição da ação penal. Mesmo depois de condenados por todas as instâncias judiciais conseguem a sua descondenação sob alegação de “defeitos processuais”, para anular a decisão condenatória, sem exame do mérito ganhando o status de ficha limpa. É de estarrecer!
Lamentavelmente a corrupção no Brasil está institucionalizada em nível constitucional e em nível da legislação ordinária como resultado da grave crise ética moral que estamos atravessando. Não há ética no ato de legislar; não há ética no ato de executar; e não há ética no ato de julgar.
Assim temos a emenda de relator (RP9) declarada inconstitucional pelo STF por ausência de publicidade e de transparência, e constitucionalizada no dia seguinte.
Realmente, um dia após a declaração de inconstitucionalidade dessa emenda do relator, a Câmara dos Deputados pegou a carona de uma PEC em adiantado estado de tramitação e, por meio de contrabando legislativo (jaboti), inseriu a totalidade das verbas previstas para o exercício de 2022 a título emenda do relator no bojo da emenda individual, que de 1,3% da receita corrente líquida passou para 2%, democraticamente, dividido entre deputados (1,55%) e senadores (0,45%). Parece um filme de ficção, mas é a dura realidade!
Para grande parte dos doutrinadores, agora, estaria tudo certo porque a emenda do relator passou a ter matriz constitucional, sendo que antes era regida por mera resolução do Congresso Nacional.
Pensamos diferente. No conflito de normas constitucionais devemos buscar uma interpretação dentro da ordem jurídico-constitucional global. Dentre os princípios de interpretação constitucional são pertinentes ao caso sob exame o Princípio da Unidade da Constituição e o princípio do Efeito Integrador.
São poderes independentes e harmônicos entre si o Judiciário, o Legislativo e o Executivo (art. 2º da CF). Esse princípio é protegido por cláusula pétrea (art. 60, § 4º, III da CF).
De conformidade com esse princípio não cabe ao Legislativo direcionar concretamente a aplicação de recursos financeiros. E no sistema presidencialista de governo a aplicação de recursos financeiros cabe privativamente ao Poder Executivo não se admitindo sócio na gestão financeira do Estado. Esse negócio de presidencialismo de coalizão que leva à velha praxe de “dá cá e toma lá” é uma excrescência dentro do sistema presidencialista de governo, a revelar atos de corrupção.
Ao legislativo cabe controlar e fiscalizar a execução orçamentária com o auxilio do TCU.
Dai a inconstitucionalidade do direcionamento, pelos parlamentares, de verbas pertinentes às emendas individuais e de bancada que conflitam abertamente com o princípio da independência e harmonia dos Poderes e com o sistema presidencialista do governo, descambando para o semiparlamentarismo de governo.
Um Poder incumbido da fiscalização e controle das despesas públicas não pode realizar despesas sob pena de tornar inoperante o mecanismo de controle. Todos estão lembrados do episódio do “tratoraço” em que parlamentares destinaram os tratores a diversos municípios com preços superfaturados em mais de 180% do preço normal. São conhecidas, igualmente, as utilizações de verbas da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaiba (Codevsf) para execução de obras que distam mais de 1.500 quilômetros do Rio São Francisco. Mas, o pior exemplo é daquele da construção de um imponente mirante em frente a um condomínio de alto luxo, de propriedade de um ilustre Senador da República, com os recursos da emenda individual.
Igualmente inconstitucionais os Fundos Partidário e Eleitoral por destinar dinheiro público às pessoas de direito privado, além de faltar a prévia regulamentação, por lei complementar, das hipóteses de instituição de fundos, bem como dos mecanismos de seu controle e fiscalização, como determina o art. 165, § 9º, II da CF.
Quando é o próprio Estado quem patrocina a corrupção, qualquer mecanismo de combate existente na esfera privada e pública torna-se inoperante.
Tanto é que nem a operação lava jato, que custou fantásticos recursos financeiros à nação, acabou com a corrupção institucionalizada. Além de não acabar com ela trouxe novos casos de corrupção durante a sua execução, com desvios de vultosos recursos financeiros provenientes de delações premiadas e de acordos de leniência, mediante a destinação direta desses recursos por parte das autoridades públicas envolvidas nessa operação lava jato, afrontando o princípio elementar de direito financeiro, segundo o qual tudo que se arrecada deve convergir para o Tesouro de onde só pode sair em forma de despesa legalmente autorizada. É o princípio da unidade de tesouraria, expresso no art. 56 da Lei nº 4.320/64, que veda a permanência de dinheiro público em caixas especiais, de sorte a assegurar o controle e a fiscalização das despesas públicas.
A LRF foi sendo paulatinamente enfraquecida por medida legislativas expandindo-se as despesas de pessoal além dos limites fixados nos arts. 19 e 20. Outras vezes, por meio de interpretações jurisprudenciais casuísticas obtém-se a mágica de duplicar o teto remuneratório previsto no inciso XI, do art. 37 da CF mediante a indevida exclusão de valores a título de verbas indenizatórias que vão surgindo aos montes como sucedâneo de aumento salarial: auxílio paletó, auxílio moradia; auxílio transporte; auxílio refeição; auxílio para compra de livros etc. Não faz menor sentido o pagamento de auxílio moradia e auxílio transporte para autoridades públicas contempladas com moradia oficial e com automóvel motorizado por conta do erário. Somente os detentores do poder não sofrem os efeitos da omissão da revisão geral e anual da remuneração dos servidores públicos prevista no inciso X, do art. 37 da CF, porque têm a prerrogativa de eles próprios criar uma porção de penduricalhos que vão engordando os subsídios.
A Lei de Improbidade Administrativa, Lei nº 8.429/02, por sua vez, recebeu um golpe mortal com o advento da Lei nº 14.230/2021. Dentre inúmeras maldades, o astuto legislador, sob a capa de endurecimento no combate a atos de improbidade administrativa aumentou o prazo de suspensão de direitos políticos de 5 a 8 anos, conforme o caso para 14 anos. Só que os casos de perda de função passaram a atingir apenas o vínculo da mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração. Em outras palavras, um prefeito que tenha cometido ato de improbidade ao se eleger deputado, senador, ou governador assume o novo cargo expurgado de todos os vícios. Isso equivale a abolir as hipóteses de suspensão de direitos políticos. O agente político poderá cometer “n” atos de improbidade administrativa bastando que mude de cargo ou função a cada quatro anos para permanecer impune.
O mesmo artifício foi utilizado pelo esperto legislador que “aumentou” o prazo de prescrição que era de cinco anos após o término do mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança, para 8 anos, porém contados a partir do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência.
A vinculação da infração ao cargo ocupado pelo agente público à época da infração, aliada ao novo prazo prescricional implicou, na prática, a abolição dos atos de improbidade administrativa do ordenamento jurídico.
A corrupção faz parte da história do Brasil e de outros povos, porque ela é inerente à sociedade. Só para citar, nos desvios de recursos públicos perpetrados na execução de obra da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos estão envolvidas as seguintes multinacionais: Siemens (ALE); Mitsui (JAP); Bonbardier (CAN); Alston (FRA); e CAF (ESP). Este é um exemplo típico de efeito multiplicador da corrupção a nível mundial. O que, na verdade, existe são os diferentes graus de corrupção, bem como, o sistema jurídico de sua repressão que varia de um país para outro.
A corrupção é um sério obstáculo à inclusão social que aniquila a igualdade das pessoas, separando a sociedade em andar de cima, onde alguns poucos vivem como nababos e andar de baixo, onde vivem milhões de pessoas sem o mínimo do mínimo indispensável à vida condigna segundo os ditames da justiça social, como reza o art. 170 da CF.
São bilhões de reais desviados pela corrupção sob todas as formas possíveis e imaginárias que poderiam ser canalizados para as obras de infraestrutura nas áreas de saúde, educação, transportes, segurança pública e outras áreas essenciais.
Não há um único governo que não tenha praticado ou tolerado atos de corrupção no Brasil.
Segundos os dados da ONG (Transparency Intenancional) dos 180 países pesquisados, o Brasil em 2012 situou-se na 69ª posição como país com menos percepção dos atos de corrupção; no ano de 2014 caia para a 72ª posição; depois para a 94º, para ficar em 2021 na 96º posição; em 2023 o país despencou de vez: ficou em 104º posição dentre os 180 países pesquisados. Em 2024, com certeza, irá despencar mais ainda como estão a apontar os indicadores: fantásticos “gastos” com cartões coorporativos; sumiço dos móveis do Planalto seguido de compra de móveis novos sem licitação; 50 pedidos de impeachment a exigir mobilização de recursos para mantê-los engavetados; o contingenciamento dos dividendos da Petrobras sem nenhuma motivação técnico-financeira etc.
Enfim, o nosso país é movido à corrupção. Sem ela a economia trava. A desmontagem dos esquemas de corrupção das grandes empreiteiras causou a estagnação econômica. Porém, a corrupção não acabou. Ela simplesmente migrou para outras plagas.
Confirmando que a corrupção no Brasil é de natureza estrutural Leo da Silva Alves escreveu uma obra versando sobre Corrupção Política no Brasil, sob o sugestivo título de RATARIA[1], n’uma pertinente referência “aos ratos inteligentes que habitam os subterrâneos do poder; invadem as despensas do país, pilham o que há de melhor e fogem astutamente de todos os controles”. Em 266 páginas o autor, um dos maiores críticos da realidade brasileira, descreve as formas como agem os corruptos e os expedientes dos quais se valem para auferir vantagens ilícitas. O autor faz uma travessia na história para afirmar que a corrupção se assentou já na independência em 1822: “Os brasileiros se acostumaram com essa convivência, vista como inerentes ao exercício das funções públicas”.
O vírus da corrupção, infelizmente, já atingiu todo o tecido social que se encontra em fase de metástase, sem possibilidade de reversão. É triste, mas querer bani-la de nossa sociedade não é possível à medida que é o próprio Estado que alimenta a corrupção.
[1] Edição online de 2021, disponível na Amazon.