4. Secularismo solidário, ausência e comunidade
Com este trabalho, advogo pela democracia em favor de uma ausência que desbanque a Presença milenar que se erige como constituinte de nossos juízos mais corretos. Essa ausência, contudo, precisa ser inaudita, fraca (como intui o "pensamento fraco" Gianni Vattimo e sua pretensão de acabar com as raízes do pensamento "forte" do programa da metafísica ocidental). É uma ausência que não pode ser dita, nem como ausência, pois cairíamos na tolice auto-anuladora de dizer a presença dessa ausência, colocando-a como sucessora de Deus ou da Razão. Se eu falo sobre ela neste texto, isto se dá em razão de um problema lingüístico que surge na linguagem pela minha obrigação de ser coerente, de afirmar, de construir uma verdade para apresentar. Por este motivo, penso ser a de Richard Rorty a melhor das propostas para superação da metafísica, uma proposta que consiste em um silêncio anti-reflexivo e anti-abstracional que nos guie à ação, à prática, a diferenças que façam diferença na prática. Este silêncio afirma a ausência sem precisar, contudo, afirmá-la afirmativamente. Isso pode ser evidenciado na proposta que fiz, parágrafos atrás, de pararmos de achar que a democracia tem alguma coisa a ver com o ateísmo ou com o teísmo, bem como com o irracionalismo ou o Racionalismo transcendente, e assim em diante: somente dessa maneira nos livramos de lógicas binárias que são a marca maior da metafísica e da pretensão realista, como mostra Rorty em A filosofia e o espelho da natureza. Precisamos realizar um segundo processo de secularização, onde se efetivará a travessia da objetividade à solidariedade (William James), da epistemologia à ética. Acredito que o único caminho de acabarmos com o preconceito, com a exclusão moral, com a hierarquia metafísica dos valores (em oposição a uma hierarquia meramente normativa, com base em premissas construídas em comunidade, e não descobertas transcendentalmente), é rumarmos em direção a esta prática da ausência, que constitui uma aceitação, um estar aberto, um permitir o outro. Lutar por uma democracia não-metafísica (reitero que a democracia não pode ser "antimetafísica", pois seria igualmente metafísica; de outro modo, deve ser não-metafísica) significa abandonar a crença de que há valores absolutos com os quais podemos dizer ao outro o que é certo, ou o modo com que o outro deve viver a própria vida ou encarar o desafio de existir, de ser-aí. Uma verdade sobre a vida deve ser construída, e não encontrada "aí" no mundo, pois "aí" ela não está a não ser como linguagem, como nos mostrou Wittgenstein (para quem a tarefa de procurar um "significado" primeiro era uma tentativa marcada por uma ação infinita, e que, portanto, não é prudente), e a linguagem não é nenhuma entidade não-humana (como as vezes até Heidegger e Derrida quase disseram), mas simplesmente um instrumento com o qual lidamos com o mundo que nos circunda.
Em uma de suas últimas entrevistas, questionado a respeito dos riscos do fascismo, Rorty disse acreditar que se o fascismo chegasse à América seria por vias de fundamentalismos religiosos. Mas acrescento que qualquer fundamentalismo (o caráter primordialmente presente da Presença) é um possível canal por onde fascismo pode chegar até nós, pois, como disse Roland Barthes em sua famosa Aula, o fascismo não é proibir de dizer, mas obrigar. Discordo apenas de Barthes no sentido de que existem fortíssimos laços subterrâneos que ligam a proibição à obrigação. Contudo, qualquer doutrina, seja teísta, ateísta ou secularmente racional, que intente obrigar peremptoriamente nossos juízos morais a se aproximarem de um ideal alheio às suas próprias pulsões de significação, precisa ser apartada da instituição para que o caráter democrático desta instituição se acentue e se estabeleça.
Por fim, reafirmo que um Estado laico não precisa ter nada a ver com um Estado ateu, que obrigue todos ao ateísmo. Isto é um absurdo. Para que qualquer metafísica seja individualmente professada é necessário que a instituição pública, como defende Rorty em Contingência, ironia e solidariedade, seja esvaziada, seja desterritorializada (usando uma acepção deleuziana). A instituição não deve ter rosto: nem Deus, nem Anticristo, nem Razão Transcendente, nem Cosmos, nada. Nem mesmo o nada: o rosto do Estado deve ser múltiplo; ou seja, a ausência da Presença implica na presença de todas as diferenças e modos de ser, da livre-determinação de todos os cidadãos individualmente, sem imposição de crenças ou opiniões. Nisto se funda democraticamente um Secularismo Solidário, um pensamento laico, fraco, amplo.
5. Referências bibliográficas
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002.
KRAUSE, Paul Medeiros. Estado laico e Estado ateu. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1678, 4 fev. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10911>. Acesso em: 04 fev. 2008.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins, 2007.
_____________. Ensaios sobre Heidegger e outros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
_____________. Objetivismo, relativismo e verdade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.