1. Introdução
O julgamento do Recurso Extraordinário nº 1355208/SC, afetado à sistemática da Repercussão Geral (Tema nº 1.184), trouxe à discussão a extinção de execuções fiscais de pequeno valor e, em especial, se tinha havido a superação do entendimento fixado no Tema de Repercussão Geral nº 109, em que se consignou que “Lei estadual autorizadora da não inscrição em dívida ativa e do não ajuizamento de débitos de pequeno valor é insuscetível de aplicação a Município e, consequentemente, não serve de fundamento para a extinção das execuções fiscais que promova, sob pena de violação à sua competência tributária.”
A análise do Tema nº 1.184 teve em consideração, como se infere da leitura dos votos dos Excelentíssimos Ministros da Corte Suprema, que são propostas execuções fiscais em massa, na quase totalidade dos Estados e Municípios, o que representa uma das maiores razões de congestionamento do Poder Judiciário, bem como custos para a República que muitas vezes superam o valor exequendo.
No caso de Pernambuco, a Corte de Justiça deparou-se, recentemente, com centenas de recursos contra sentenças proferidas em ordem a extinguir Execuções Fiscais, sob o fundamento de que o Município não observou os critérios e requisitos da Resolução TCE n. 119, de 16 de dezembro de 2020, tampouco a IN nº 02/2021 da Presidência do TJPE1. No julgamento dos referidos recursos, interpostos contra os feitos sentenciados com base na Resolução do TCE nº 119, de 16 de dezembro de 2020, salientou-se o inegável o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, ressaltando-se que, potencialmente, a questão afeta também os demais Municípios, de modo que a interposição de Apelações em massa pode ser reproduzida pelas Procuradorias de outros 180 municípios pernambucanos.
Não é novidade nesta Corte de Justiça, tampouco nos demais Tribunais de Justiça Estaduais, a problemática em torno da extinção ou arquivamento compulsório de execuções fiscais em virtude de ser o valor exequendo, supostamente, irrisório.
A questão há de ser analisada, porém, com outro viés, a partir do julgamento do Tema de Repercussão Geral nº 1.184. Cumpre analisar, como dito, se houve a superação do Tema de Repercussão Geral nº 109 e o respectivo impacto não apenas na propositura de execuções fiscais, mas também em relação aos feitos já em curso. Analisar-se-á, de início, a situação específica do Estado de Pernambuco e seus Municípios, e, após, passar-se-á à análise do julgamento do Tema de Repercussão Geral nº 1.184.
2. O Estado de Pernambuco e seus Municípios: extinção de execuções fiscais com base na Resolução TCE nº 119/2020, alterada pela Resolução TCE nº 132/2021, e na Instrução Normativa nº 02/2021, da Presidência do TJPE
A Resolução TCE nº 119, de 16 de dezembro de 2020, alterada pela Resolução TCE nº 132, de 02 de junho de 2021, apresenta inegáveis vícios de inconstitucionalidade.
Vejamos, por oportuno, o que estabelece o artigo primeiro da TCE nº 119/2020:
Art. 1º Esta Resolução dispõe sobre os procedimentos a serem observados pelos Municípios na constituição, na inscrição e na recuperação dos créditos públicos, por meio de cobrança extrajudicial e de ajuizamento de execuções fiscais. (Redação dada pela Resolução TC nº 132, de 02 de junho de 2021 )
A referida Resolução define, desse modo, procedimentos a serem seguidos pelos Municípios para a constituição e cobrança de créditos públicos por meio de execuções fiscais, o que, a toda evidência, caracteriza-se como norma de Direito Processual.
Ocorre que, como é sabido, de acordo com a redação do citado artigo 22, I, da CF/88, a competência para legislar acerca de Direito Processual é privativa da União. A Resolução vai, desse modo, muito além do que poderia ser eventualmente considerada mera regulamentação da fase administrativa que antecede o ajuizamento das execuções fiscais e inova no cenário processual, “estabelecendo condições da ação e pressupostos processuais não previstos na norma processual civil pátria.”
Essa constatação revela-se ainda mais notória ao se analisar o artigo 6º da Resolução em comento, especialmente aos fixar requisito de “admissibilidade processual” em seu §5º:
Art. 6º Na execução do crédito fiscal, de naturezas tributária e não tributária, deve-se:
I – proceder anualmente à distribuição de ações de execução fiscal;
II – juntar em um único processo todas as dívidas do mesmo contribuinte, inclusive as de parcelamentos não cumpridos e autos de infração ou lançamento de tributo, executando-as até o quarto ano do prazo prescricional da dívida mais antiga, de modo a reduzir o número de processos referentes a dívidas de tributos lançados em massa;
III – implantar e implementar instrumento normativo (Instrução Normativa, Ordem de Serviço, Decreto, dentre outros) descrevendo os procedimentos a serem observados com vistas a qualificar os débitos inscritos nas Certidões de Dívida Ativa (CDAs) antes do ajuizamento da execução fiscal;
IV – implantar ferramenta no sistema de arrecadação que permita o agrupamento de dívidas de um mesmo devedor em uma única CDA;
V – protestar o crédito inscrito em certidão de dívida ativa antes de promover o ajuizamento da ação de execução fiscal, já que esta atividade é menos onerosa aos cofres públicos, mais célere e bastante eficaz;
VI – inscrever o nome do devedor em cadastros restritivos de crédito;
VII – promover mesa permanente de negociação fiscal;
VIII – nas dívidas de natureza tributária, apenas ajuizar as execuções fiscais de valor igual ou superior ao que for estabelecido como piso antieconômico por Lei ou Decreto, devendo-se levar em consideração, para sua fixação, a realidade sócio-econômica de cada ente, a natureza do crédito tributário e o custo unitário de um processo de execução fiscal encontrado pelo estudo do IPEA em colaboração com o CNJ em 2011, aplicada a correção monetária para atualização do valor em cada exercício; e
IX – estabelecer um mecanismo de controle e acompanhamento das execuções fiscais por intermédio do sistema informatizado, de forma a dar andamento tempestivo aos processos e evitar sua extinção por negligência.
§ 1º A não-observância aos procedimentos de execução fiscal estabelecidos neste artigo serão considerados atos antieconômicos, podendo caracterizar desperdício do dinheiro público e a correspondente apuração de infração.
§ 2º Para fins do inciso II deste artigo, a unidade deverá providenciar até o final do ano 2021 (ano X) a execução das dívidas relativas aos tributos de ano-base 2018 (ano X menos 3) e, apenas para esses devedores de 2018 (ano X menos 3), juntando os eventuais débitos dos anos-base 2019 (ano X menos 2 anos) e 2020 (ano X menos 1 ano).
§ 3º O disposto no § 2º deve ser aplicado nos anos subsequentes.
§ 4º Para fins do inciso VIII deste artigo, deve-se expedir Lei ou Decreto que disponha sobre o piso mínimo de ajuizamento das execuções fiscais no prazo de até 180 (cento e oitenta dias), contados da data de publicação desta Resolução, sob pena de aplicação de multa prevista no artigo 73 da Lei Estadual 12.600, de 14 de junho de 2004.
§ 5º Os entes deverão informar ao TCE-PE o valor dos pisos mínimos legalmente fixados, sob pena de utilização, para fins de admissibilidade processual, dos valores definidos nos termos do § 6º deste artigo.
§ 6º Na ausência de Lei ou Decreto previsto no § 4º deste artigo, será considerado o valor fixado no Anexo Único desta Resolução.
§ 7º O TCE-PE publicará, no seu sítio eletrônico, as informações de que trata o § 5º e, quando necessário, atualizará o Anexo Único desta Resolução”.
Ora, todas as disposições constantes dos incisos e §§ 1º ao 4º do artigo 6º supratranscrito poderiam, perfeitamente, ser compreendidas como recomendações e orientações dirigidas aos gestores, no âmbito de um processo fiscalizatório onde o TCE poderia, em tal hipótese, vir a exigir providências “nesse sentido”, sob pena de não aprovação de suas contas, por exemplo. Configurariam tais medidas, dessa forma, mera recomendação, que poderiam, no caso de inobservância, dar azo à instauração de procedimento fiscalizatório e à eventual responsabilização do gestor.
No entanto, as disposições dos parágrafos §§ 5º e 6º excedem o poder de regulamentação e fiscalização do Tribunal de Contas do Estado, uma vez que fixam regras de “admissibilidade processual” e estabelecem “piso mínimo” para ajuizamento de execuções fiscais, o que, inegavelmente, limita o direito de ação dos Municípios e impõe novas regras de Direito Processual, extrapolando a competência atribuída ao Tribunal de Contas do Estado, órgão constitucional de controle externo.
Não se permite ao TCE, portanto, criar hipóteses que condicionem a instauração da execução fiscal, além daquelas previstas pelo Código de Processo Civil, pelo Código Tributário Nacional e pela Lei de Execução Fiscal, e é certo que, nestes diplomas, não há quaisquer limitações semelhantes àquelas estabelecidas pelo artigo 6º da Resolução ora em comento.
Portanto, resta configurado patente vício de inconstitucionalidade por usurpação da competência privativa da União Federal para legislar acerca de Direito Processual.
Por sua vez, no que tange à competência do Tribunal de Contas do Estado, com efeito, lhe são atribuídos poderes de fiscalização, orientação e apreciação de contas do Estado e dos Municípios. Cumpre-lhe, pois, verificar a observância da “legalidade, legitimidade, economicidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, aplicação de subvenções e renúncia de receitas, com vistas a assegurar a eficácia do controle que lhe compete, a instruir o julgamento de contas e a prestar à Assembléia Legislativa e às Câmaras Municipais o auxílio que estas solicitarem para o desempenho do controle externo a seu cargo, avaliando, ainda, sob o aspecto operacional, os órgãos, entidades, programas e projetos governamentais” (art. 3º da Lei Estadual nº 12.600/2004 – Lei Orgânica do TCE/PE).
O poder regulamentar do TCE/PE encontra-se exteriorizado, especialmente, nos artigos 4º, 56 e 102, XVIII, de sua Lei Orgânica:
Art. 4º Ao Tribunal de Contas do Estado, no âmbito de sua jurisdição, compete, ainda, expedir atos regulamentares sobre matéria de sua atribuição e sobre a organização dos processos que lhe devam ser submetidos.
(…)
Art. 56. Os atos administrativos do Tribunal de Contas consistirão em Resoluções e Portarias, sendo aquelas para regulamentar procedimentos de atribuições que alcancem seus jurisdicionados e estas para procedimentos administrativos.
(…)
Art. 102. Compete ao Pleno, originariamente:
(…)
XVIII - expedir Resoluções.
Tais disposições decorrem do artigo 71 da CF/88, aplicável aos Tribunais de Contas Estaduais por força do artigo 75 da CF/88, que traz elenco das atribuições que competem ao controle externo desempenhado pelo Tribunal de Contas, auxiliar do Poder Legislativo na função fiscalizatória, que é exercida pelo Tribunal, observe-se, apenas e tão somente com contornos técnicos e não políticos.
O Exmo. Min. Sepúlveda Pertence, citado por Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, nesse sentido, salienta que:
“A jurisprudência do STF acolheu a nítida diferença que a jurisprudência dos Tribunais de Contas estabelece entre a competência de apreciação do artigo 71, I, das contas do Presidente da República e a competência de que falava a Constituição passada, de julgamento das contas de todos os demais responsáveis por dinheiros, bens e valores da Administração direta e indireta. Claramente se estabeleceu, em consequência, algo que me parece de grande relevo na caracterização do próprio perfil constitucional do Tribunal de Contas porque, diferentemente do que ocorre com as contas gerais da Presidência da República ou do Governo do Estado, as contas da Assembleia Legislativa e as contas do Poder Judiciário, assim como as do Ministério Público, são sujeitas a julgamento, vale dizer, a decisão definitiva do Tribunal de Contas”.2
Por sua vez, acerca do poder regulamentar, Francisco Sérgio Maia Alves esclarece, em citação do Exmo. Min. Luís Roberto Barroso, que:
“(…) o exercício do poder regulamentar pelo TCU deve ser interpretado conforme a Constituição. Segundo o Ministro do Supremo Tribunal Federal, o órgão de contas desfruta de competências normativas inferiores, e não do poder de editar regras gerais e abstratas. Para ele, o Tribunal não tem competência para editar regulamentos de execução, regulamentos autônomos, muito menos para invadir a esfera de reserva legal, com o fim de impor obrigações, estabelecer requisitos ou ditar vedações que não tenham apoio na lei (BARROSO, 2001, p. 239). Desse modo, o poder regulamentar do Tribunal restringe-se ao detalhamento do exercício de suas competências, como julgar contas, aplicar sanções, fiscalizar atos e contratos, dentre outras, e, por outro lado, à organização de seus processos, ou seja, ao estabelecimento de suas normas procedimentais.”3
O mesmo autor, ao analisar o Acórdão 1.977/2013-TCU-Plenário, em que foram fixadas orientações acerca da uniformização de procedimentos para aplicação do regime de empreitada por preço global em obras públicas, destacou que o TCU, ao pretender sanar omissão constante da Lei de Licitações e Contratos, findou por extrapolar seu poder regulamentar:
“(…) Sem entrar no mérito das valorações técnicas adotadas na decisão e dos benefícios de sua atuação prospectiva, até porque, como visto, compete também ao TCU orientar a Administração Pública federal, entende-se que o Tribunal, ao preencher lacuna legal fora do exame de casos concretos, extrapolou o limite permitido para o exercício da atividade de integração, conforme estabelecido pela Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro ( BRASIL, 1942). Nesse contexto, o Acórdão 1.977/2013-TCU-Plenário, pelo seu caráter genérico, assemelha-se a uma regra jurídica infralegal. Isso se mostra inapropriado, pois: primeiro, compete ao Presidente da República a função de regulamentar lei para a sua fiel execução; e, segundo, tal atividade não pode inovar no ordenamento jurídico, sob pena de violação do princípio da legalidade e do arranjo de distribuição de poderes da Constituição”4.
Ainda sobre licitação, Roberto Ribeiro Bazilli pontua que não pode haver invasão de competência pelo Tribunal de Contas, senão vejamos:
“Com referência à licitação, obriga os órgãos ou entidades da Administração interessados à adoção das medidas corretivas e, a nosso ver, incide em inconstitucionalidade flagrante, pois que não cabe a um órgão do Poder Legislativo, o Tribunal de Contas, determinar a órgãos do outro Poder, o Executivo, a adoção de medidas que julga corretivas. Tal procedimento expressamente previsto na lei fere o princípio da separação dos Poderes. Compete – isto sim – ao Tribunal de Contas apontar, no exercício do controle externo, ao órgão ou entidade as incorreções existentes no edital. No entanto, ao órgão ou entidade, cabe, a juízo próprio, aceitar ou não as medidas corretivas indicadas pelo Tribunal de Contas. Mesmo porque o Tribunal de Contas não é infalível, e seria uma temeridade a aceitação pura e simples desta ou daquela correção por provir de determinação do Tribunal de Contas.”5
O mesmo raciocínio deve ser empregado no presente caso, de modo que as disposições constantes da Resolução TCE nº 119/2020 devem ser tomadas como meras recomendações e jamais como imposições e limitação ao direito de ação dos Municípios, sob pena de ofensa à separação dos Poderes.
Em síntese, como esclarece o Exmo. Min. Luís Roberto Barroso:
“(…) De fato, parece aceitável reconhecer-se ao Tribunal de Contas competência para editar atos normativos, administrativos, como seu Regimento Interno, ou para baixar uma resolução ou outros atos internos. Poderá igualmente expedir atos ordinatórios, como circulares, avisos, ordens de serviço. Nunca, porém, será legítima a produção de atos de efeitos externos geradores de direitos e obrigações para terceiros, notadamente quando dirigidos a órgãos constitucionais de outro poder. Situa-se ao arrepio da Constituição e foge inteiramente ao razoável o exercício, pelo Tribunal de Contas, de uma indevida competência regulamentar, equiparada ao executivo, ou mesmo em alguns casos de abuso mais explícito, de uma competência legislativa com inovações da ordem jurídica.”6
Verifica-se, portanto, vício de inconstitucionalidade por extrapolar o Tribunal de Contas do Estado as competências delimitadas pelos artigos 71 e 75 da CF/88, indo além de seu poder regulamentar.
Como visto, não é dado ao TCE limitar o direito de ação (na acepção processual) dos Municípios, tampouco extrapolar seu poder regulamentar, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.
Observe-se que, no caso da Resolução TCE nº 119/2020, os dispositivos constantes do artigo 6º, incisos e §§ 1º a 4º podem ser interpretados como meras orientações, não sendo necessário, portanto, afastá-los.
No entanto, os §§ 5º e 6º revelam-se, claramente, normas limitadoras do direito de ação dos Municípios, ao pretender fixar piso mínimo para ajuizamento e admissibilidade processual de execuções fiscais, representando disposições de Direito Processual que extrapolam as normas legais, especificamente dispostas no Código de Processo Civil, no Código Tributário Nacional e na Lei de Execução Fiscal.
Nesse sentido, destaque-se julgado da Corte de Uniformização da Jurisprudência Constitucional:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÃO Nº 001/1999 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESPÍRITO SANTO. VEDAÇÃO DE LITISCONSÓRCIO ATIVO E INTERVENÇÃO DE TERCEIROS APÓS A DISTRIBUIÇÃO, NAS AÇÕES DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO TRIBUNAL E EM PRIMEIRO GRAU. ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL POR VIOLAÇÃO DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE MATÉRIA PROCESSUAL (ART. 22, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). PEDIDO JULGADO PROCEDENTE. 1. A Resolução nº 001/1999 do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, em seus arts. 1º e 5º, estabelece vedação de admissão de litisconsórcio ativo, ou intervenção de terceiros que lhe faça as vezes, após a distribuição, tanto em ações de competência originária do tribunal como em processos de competência dos juízos de primeiro grau. 2. A resolução impugnada reveste-se de coeficiente de normatividade suficientemente apto a qualificá-la como ato normativo de caráter primário ou autônomo, a autorizar o controle abstrato de constitucionalidade, nos termos da linha decisória adotada por esta Suprema Corte. Precedentes: ADI 4874/DF, j. 01/02/2018, DJe 01/02/2019, sob a minha relatoria; ADI 5543/DF, Rel. Min. Edson Fachin, j. 11/05/2020, DJe 21/05/2020; ADI 3731-MC/PI, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 29/08/2007, DJe 29/08/2007; ADI 2.439/MS, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 13/11/2002, DJ 21/02/2003; ADI 6766/RO, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 23/08/2021, DJe 30/08/2021; ADI 758/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 27/09/2019, DJe 18/11/2019. 3. Matéria afeta a quem pode ser parte ou, mais amplamente, quem pode participar do processo, ou quando e de que modo alguém pode fazê-lo, diz respeito a aspectos essenciais do “direito de ação”, ou direito à tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal), além do direito de defesa e do devido processo (art. 5º, LIV e LV, da Constituição Federal), a se qualificar, dessa forma, como matéria de direito processual (art. 22, I, da Constituição Federal). 4. No caso, a regulação operada foge, ainda, do espaço normativo conferido aos tribunais para normatizar sobre a competência e o funcionamento de seus órgãos (art. 96, I, a, da Constituição Federal). 5. Ocorrência de violação do art. 22, I, da Constituição Federal. 6. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade do inteiro teor da resolução impugnada. 7. Declaração de inconstitucionalidade formal dos art. 1º, caput e parágrafo único, e art. 5º, caput, primeira parte, até a expressão “para julgá-lo”, da Resolução nº 001/1999 do Tribunal de Justiça do Espírito. Demais dispositivos declarados inconstitucionais por arrastamento.
(ADI 2932, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 04/11/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-226 DIVULG 16-11-2021 PUBLIC 17-11-2021)
No voto da Exma. Ministra Relatora Rosa Weber, são apontados diversos precedentes do STF que reconhecem violação à competência privativa da União em casos de atos normativos estaduais que tratam de temas processuais. A Relatora pontua que "questões envolvendo quem pode ser parte ou, mais amplamente, quem pode participar do processo, ou quando e de que modo alguém pode fazê-lo, constituem matérias de Direito Processual, pois dizem respeito a aspectos essenciais do dito 'direito de ação', além do direito de defesa e do devido processo". Desse modo, não seriam "aspectos procedimentais colaterais ou de operacionalidade prática".
Vejamos, ainda, os seguintes julgados:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 6.816/2007 DE ALAGOAS, INSTITUINDO DEPÓSITO PRÉVIO DE 100% DO VALOR DA CONDENAÇÃO PARA A INTERPOSIÇÃO DE RECURSO NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS DO ESTADO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL: COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE MATÉRIA PROCESSUAL. ART. 22, INC. I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE.
(ADI 4161, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 30/10/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-027 DIVULG 09-02-2015 PUBLIC 10-02-2015)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE INSTITUI EXIGÊNCIA DE DEPÓSITO RECURSAL NO VALOR DE 100% DA CONDENAÇÃO COMO PRESSUPOSTO DE INTERPOSIÇÃO DE QUALQUER RECURSO NO ÂMBITO DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS DO ESTADO DE PERNAMBUCO – REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL: TÍPICA MATÉRIA DE DIREITO PROCESSUAL – TEMA SUBMETIDO AO REGIME DE COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO (CF, ART. 22, INCISO I) – USURPAÇÃO, PELO ESTADO-MEMBRO, DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO FEDERAL PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO PROCESSUAL – OFENSA AO ART. 22, I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL DECLARADA – AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE. – Os Estados-membros e o Distrito Federal não dispõem de competência para legislar sobre direito processual, eis que, nesse tema, que compreende a disciplina dos recursos em geral, somente a União Federal – considerado o sistema de poderes enumerados e de repartição constitucional de competências legislativas – possui atribuição para legitimamente estabelecer, em caráter de absoluta privatividade (CF, art. 22, n. I), a regulação normativa a propósito de referida matéria, inclusive no que concerne à definição dos pressupostos de admissibilidade pertinentes aos recursos interponíveis no âmbito dos Juizados Especiais. Precedentes. – Consequente inconstitucionalidade formal (ou orgânica) de legislação estadual que haja instituído depósito prévio como requisito de admissibilidade de recurso voluntário no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis. Precedente: ADI 4.161/AL, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA.
(ADI 2699, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 20/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-110 DIVULG 09-06-2015 PUBLIC 10-06-2015)
A matéria não é nova também nesta Corte de Justiça, como anteriormente referido, sendo inúmeros os julgados que declaram ser indevida tal ingerência, com base em entendimento assente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive sumulado.
De acordo com entendimento pacífico na col. Corte de Uniformização de Jurisprudência em Matéria Infraconstitucional (STJ), caberia apenas à Fazenda Pública avaliar se deve ou não dispensar a inscrição em dívida e o ajuizamento de execução de seus créditos de pequeno valor, sendo defeso até mesmo ao juízo substituir o credor na valoração de interesse de agir e extinguir a execução sob esse fundamento.
Outro não é, a propósito, o teor da Súmula 452 do STJ, a qual enuncia: "A extinção das ações de pequeno valor é faculdade da Administração Federal, vedada a atuação judicial de ofício".
Por oportuno, merecem destaque os elucidativos precedentes da referida Corte Superior (STJ):
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. VALOR IRRISÓRIO. EXTINÇÃO DE OFÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR.
1. Não procede a alegada ofensa aos artigos 458 e 535 do CPC. É que o Poder Judiciário não está obrigado a emitir expresso juízo de valor a respeito de todas as teses e artigos de lei invocados pelas partes, bastando para fundamentar o decidido fazer uso de argumentação adequada, ainda que não espelhe qualquer das teses invocadas.
2. "Não incumbe ao Judiciário, mesmo por analogia a leis de outros entes tributantes, decretar, de ofício, a extinção da ação de execução fiscal, ao fundamento de que o valor da cobrança é pequeno ou irrisório, não compensando sequer as despesas da execução, porquanto o crédito tributário regularmente lançado é indisponível (art. 141, do CTN), somente podendo ser remitido à vista de lei expressa do próprio ente tributante (art. 150, § 6º, da CF e art. 172, do CTN)" (REsp 999.639/PR, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 6.5.2008, DJe 18.6.2008).
3. Recurso especial provido, em parte, para determinar o prosseguimento da execução fiscal.
(STJ, REsp 1.319.824/SP, rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 23/05/2012).
TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. IPTU. IMPOSTO MUNICIPAL. VALOR IRRISÓRIO. AUSÊNCIA DE LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA. INTERESSE DE AGIR. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO. IMPOSSIBILIDADE.
1. A extinção da execução fiscal, sem resolução de mérito, fundada no valor irrisório do crédito tributário, é admissível quando prevista em legislação específica da entidade tributante.
2. O crédito tributário regularmente lançado é indisponível (art. 141, do CTN), somente podendo ser remitido à vista de lei expressa do próprio ente tributante (art. 150, § 6º, da CF/1988 e art. 172, do CTN), o que não ocorre na presente hipótese.
3. Incumbe aos Municípios a disposição que permite legislarem sobre interesse local, nos termos do art. 30, da Carta Magna.
4. A intervenção do judiciário na presente hipótese importa na afronta ao princípio constitucional da separação dos poderes, restringindo, outrossim, o direito de ação do Município, uma vez que, estando presentes os pressupostos processuais e as condições da ação, não há qualquer impedimento legal ao ajuizamento da demanda no valor lançado pela Administração.
5. Recurso especial desprovido.
(STJ, REsp 999.639/PR, rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 18/06/2008).
Portanto, pode-se dizer que, nos termos da jurisprudência do STJ, mesmo que vigente a Resolução TCE nº 119/2020 ou outro ato normativo infralegal, não é facultado ao juízo extinguir a execução fiscal, ainda que o valor do crédito exequendo seja inferior àquele indicado pelo Tribunal de Contas do Estado, se o Município, ainda assim, resolveu ajuizar a execução fiscal.
Em reforço a essa linha de raciocínio, cumpre fazer paralelo com situação idêntica relacionada à extinção de ofício de execuções fiscais estaduais de créditos de pequeno valor, amplamente analisada por esta Corte de Justiça.
Destaque-se que, no âmbito da Fazenda Estadual, a legislação de regência (Lei Complementar nº 401/2018 e Decreto Estadual nº 47.086/19) apenas autoriza a Fazenda Pública a desistir ou requerer a extinção de ação de execução fiscal, ou seja, trata-se de mera faculdade. Ademais, nos termos dos mesmos diplomas normativos, observe-se que apenas e tão somente a Fazenda Pública poderia exercer tal faculdade, não sendo dado ao magistrado atuar de ofício, tampouco a um órgão externo – o TCE/PE – estabelecer tais limites.
Ora bem, ao aplicar o piso mínimo para ajuizamento e admissibilidade de execuções fiscais municipais, incorre-se no mesmo equívoco, uma vez que competiria apenas à Fazenda Pública Municipal decidir acerca do ajuizamento, desistência ou extinção de ação de execução fiscal.
Acresça-se aos fundamentos expendidos, ainda, o teor do Enunciado Administrativo nº 38 da Seção de Direito Público do TJPE, aprovado à unanimidade na sessão de 23/03/2022:
“Não pode o magistrado, de ofício, arquivar, inadmitir ou extinguir a execução fiscal sob o fundamento de que não foram atendidos os procedimentos prévios constantes de atos normativos infralegais, interpretados como condição de procedibilidade da ação ou de que não foi observado o valor mínimo para a propositura da demanda executiva”.
Resta claro, desse modo, que não é dada a extinção da execução fiscal com fundamento em ato normativo infralegal ou em razão da inobservância de valor mínimo para ajuizamento da demanda, como no presente caso, em que o magistrado se baseou na Resolução TCE nº 119/2020 e Instrução Normativa nº 02/2021 da Presidência do TJPE.
Diante do exposto, forçoso reconhecer que a Resolução TCE nº 119/2020 deve obediência à Constituição Federal e aos demais diplomas legais que fixam normas para a constituição e cobrança de créditos públicos por meio de execuções fiscais, não podendo com estas entrar em conflito.
Atuar em desacordo com este entendimento importaria em permitir ao TCE avocar o próprio poder de tributar do Município, “ente federado detentor de autonomia tributária, com competência legislativa plena tanto para a instituição do tributo, observado o art. 150, I, da Constituição, como para eventuais desonerações, nos termos do art. 150, § 6º, da Constituição”, o que não é admitido de acordo com a jurisprudência da Suprema Corte (STF).
Nesta senda, conclui-se que, ao editar a Resolução em comento, prevendo em seu texto normas de Direito Processual relativas ao ajuizamento e à admissibilidade de execuções fiscais - matéria esta afeta à competência privativa da União -, o TCE/PE comete vício de inconstitucionalidade: (a) ante a inobservância do artigo 22, I, da CF/88, (b) bem como por extrapolar de sua competência constitucional (artigos 71 e 75, CF/88) e (c) usurpar o poder de tributar do Município (artigo 150, I e §6º da CF/88), nos termos da tese fixada no Tema nº 109 de Repercussão Geral.
Cumpre mencionar, além disso, que a Instrução Normativa nº 02/2021, da Presidência do TJPE, apresenta o mesmo equívoco da Resolução TCE nº 119/2020, ao fixar regras para o processamento de Execuções Fiscais Municipais:
“Art. 1º Fixar os procedimentos obrigatórios que deverão ser observados, no âmbito do TJPE, quando da constituição, da inscrição, da recuperação dos créditos públicos e do ajuizamento das ações fiscais.
Art. 2º Orientar os Senhores Magistrados do Poder Judiciário Estadual, com competência para processar e julgar ações de execuções fiscais estaduais e municipais, no seguinte sentido:
I - que seja verificado se os exequentes observaram os critérios e requisitos da Resolução TCE n. 119, de 16 de dezembro de 2020.
II - apenas ocorrerá o regular processamento das ações de execução fiscal quando atendidos os critérios e requisitos da Resolução TCE n. 119, de 2020.
III - caso seja constatada a desobediência às determinações previstas no art. 6º, incisos II, V, VI, VIII e §1º, da Resolução TCE n. 119, de 2020, em qualquer fase do processo, expeçam ofício ao Tribunal de Contas do Estado, informando sobre o descumprimento.
Art. 3º Esta Instrução Normativa entra em vigor na data de sua publicação.”
No caso, a Instrução Normativa em apreço pretende “Fixar os procedimentos obrigatórios que deverão ser observados, no âmbito do TJPE, quando da constituição, da inscrição, da recuperação dos créditos públicos e do ajuizamento das ações fiscais”, e, com esse objetivo, determina que apenas se dará o “regular processamento das ações de execução fiscal quando atendidos os critérios e requisitos da Resolução TCE n. 119, de 2020”. Incorre pois, em inconstitucionalidade indireta, mediata, de modo que não é objeto direto de eventual controle de constitucionalidade, restando a discussão no plano da legalidade. Uma vez que a Resolução TCE nº 119/2020 é inconstitucional, são igualmente inválidos os atos que nela se fundarem, tratando-se de uma inconstitucionalidade consequente.
Nesse sentido, os ensinamentos de Marcelo Novelino, ao dispor que, quanto ao prisma de apuração, a constitucionalidade pode ser direta ou indireta, subdividindo-se esta última em consequente e reflexa (ou por via oblíqua):
“A inconstitucionalidade indireta (ou mediata) ocorre quando há norma interposta entre o ato normativo impugnado e o parâmetro constitucional ofendido. Esta modalidade se divide em duas subespécies. Quando o vício de uma norma decorre da incompatibilidade de outra à qual está vinculada, trata-se de inconstitucionalidade consequente. É o que ocorre, por exemplo, com um decreto expedido para a execução de uma lei inconstitucional. Quando a incompatibilidade resulta da violação de uma norma infraconstitucional interposta entre a constituição e o ato impugnado, trata-se de inconstitucionalidade reflexa ou por via oblíqua. Um exemplo é o decreto expedido pelo Chefe do Executivo em contradição com a lei regulamentada que, neste caso, é considerado ilegal.”7
Portanto, neste caso, uma vez que a Instrução Normativa nº 02/2021 da Presidência do TJPE foi editada para fins de cumprimento da Resolução TCE nº 119/2020, encontra-se inquinada de inconstitucionalidade indireta, consequente ou “por arrastamento”.
Este era o entendimento desta Corte de Justiça, até o momento, o que precisa de ajustes diante das novas definições dadas com o Tema de Repercussão Geral nº 1.184. De forma muito sucinta, entendeu-se que o magistrado deve sim analisar o interesse de agir, mas encontra balizas na competência constitucional de cada ente federado, o que será esmiuçado mais adiante.
E a situação das execuções fiscais municipais costuma ser ainda mais grave, uma vez que estamos diante de decisões que se fundamentam, em regra, em atos infralegais, enquanto, no âmbito estadual, existe lei em sentido formal. Portanto, da mesma forma como compete apenas à Fazenda Estadual avaliar se deve ou não dispensar a inscrição em dívida e o ajuizamento de execução de seus créditos de pequeno valor, também apenas cabe à Fazenda Municipal decidir se irá ajuizar ou não a execução fiscal, sendo, porém, dado ao juiz verificar o interesse de agir e extinguir a execução, sem se descurar, destaque-se, da competência constitucional de cada ente federado.