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Hipoteca reversa

30/06/2024 às 12:32
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A hipoteca reversa é um instrumento por meio do qual uma pessoa transfere a propriedade de seu imóvel para uma seguradora, que garantirá uma renda complementar ao indivíduo, mantendo seu direito de usufruto do bem até o seu falecimento.

Resumo: Os direitos de garantia são uma possibilidade de assegurar o crédito de uma obrigação. No caso da hipoteca, depreende-se que a sua utilização está majoritariamente atrelada ao mercado imobiliário. No entanto, pelo advento de novos institutos garantidores da dívida, a hipoteca entrou em desuso. Visando aos direitos fundamentais da pessoa idosa, a criação da hipoteca reversa no ordenamento pátrio é uma possiblidade de resgate desse instituto, de modo a garantir não uma dívida, mas sim uma renda às pessoas idosas.

Palavras-chave: Hipoteca reversa. Direitos fundamentais. Pessoa idosa.


Introdução

Pretende-se com esse trabalho expor um instituto proveniente do direito estrangeiro, o qual garante uma renda à pessoa idosa, sem menosprezar os direitos hereditários em relação à divida em caso de falecimento.

O objetivo, portanto, é situar esse instituto em uma topografia que traga fácil e ampla visualização sobre o tema, em cotejo com as possibilidades existentes em outros países. É um instituto que vem sendo discutido no Congresso Nacional e que poderá impactar à sociedade.

Antevendo-se ao advento de uma possível lei sobre o tema, serão trazidos conceitos importantes que servem para situar o leitor no tratamento do assunto. A própria hipoteca, sem ser a modalidade reversa, muitas vezes já é uma incógnita para algumas pessoas.

Há que se considerar que o cenário atual da hipoteca é muito adverso, já que novos institutos foram sendo criados para viabilizar uma recuperação da dívida, em caso de inadimplemento, de maneira mais ágil. Assim, o mero registro de um direito real de garantia, mantendo a propriedade com o devedor hipotecário não vem sendo considerada meio eficaz.

Portanto, a hipoteca reversa é um ressurgimento do instituto, embora seu viés contenha diferenças notáveis em relação à hipoteca tradicional convencional. Desse modo, far-se-á essa distinção, utilizando-se do construtivismo sobre esse tópico e da proposição de viabilidade ou não no ordenamento jurídico brasileiro em consonância com a Constituição da República.

1) HIPOTECA CONVENCIONAL

1.1) Breve Histórico

A história da hipoteca é inseparável da propriedade. Já na época da transição do ser humano para fixação de residência, combinava-se religião doméstica, família e direito de propriedade. A inexistência de um desses conferia a inexistência dos demais.

Em relação aos direitos reais de garantia, não eram os bens os meios de adimplemento de determinada obrigação, mas sim a própria pessoa. Assim, surge uma sociedade escravocrata de dominância.

Ante a falibilidade desse sistema e a mercantilidade de bens, essa garantia pessoal necessitou ser despersonalizada e com eficácia erga omnes. Nessas circunstâncias, a gravação de bens era forma de transmissão da propriedade e do mesmo modo um direito real limitado.

Com o desenvolvimento disso, tanto aplicável aos bens móveis quanto aos imóveis, a necessidade de convenção sem necessidade de perda da posse demonstrou como método de reivindicação de bens. Existia, assim, uma convenção sem tradição.

No Brasil, a hipoteca surgiu antes mesmo do sistema do registro público. A partir do surgimento desse sistema, deparou-se com a imprescindibilidade de inscrição nos livros de registro do direito real de garantia para que se existisse uma presunção de conhecimento por terceiros do gravame, e que esse gravame teria eficácia para todos (caractere do princípio do absolutismo).

1.2) Conceitos gerais

Vige que o conceito de hipoteca, de modo geral, é como direito real, com caráter acessório, que assegura a eficiência de um direito pessoal, o adimplemento de uma obrigação, sobre bens alheios, que confere um direito de preferência e de sequela, em caso de inadimplemento. É indivisível e não exige a tradição por não ser contrato real.

Em outras palavras:

Hipoteca é o direito real de garantia sobre coisa imóvel alheia, que permanece em poder de seu titular, para execução pela não satisfação do crédito a que se vincula, com preferência sobre outros créditos. A coisa pode ser dada em garantia pelo próprio devedor ou por terceiro. A hipoteca não suprime a posse direta do titular da coisa hipotecada. Apenas pode hipotecar quem pode alienar a coisa.2

Maria Helena Diniz, em complemento, considera incidente tal direito real sobre o valor da coisa onerada e não sobre a sua substância:

A hipoteca é um direito real de garantia de natureza civil, que grava coisa imóvel ou bem que a lei entende por hipotecável, pertencente ao devedor ou a terceiro, sem transmissão de posse ao credor, conferindo a este o direito de promover a sua venda judicial, pagando­-se, pre­fe­ren­te­mente, se inadimplente o devedor. É, portanto, um direito sobre o valor da coisa onerada e não sobre sua substância.3

Além do conceito, é importante frisar as características da hipoteca: a) direito real de garantia; b) natureza civil; c) acessoriedade; d) indivisibilidade; e) especialização; f) eficácia erga omnes; g) direito de preferência; h) suscetível à sequela; g) natureza civil; h) solene.

É possível se elencar que os objetos da hipoteca são majoritariamente bens imóveis e que serão o enfoque deste trabalho, desde que preenchidos a alienabilidade do bem. Então, excluem-se os bens de família voluntário e legal, bens de uso e domínio público, bens fora de comércio, terras indígenas, bens de menores (salvo com autorização judicial), bens gravados com cláusula de inalienabilidade e assim por diante.

Os bens imóveis são requisitos objetivos da hipoteca, mas há também requisitos subjetivos. O requisito subjetivo está ligado à pessoa que pode instituir hipoteca. Para validade da hipoteca, assim sendo, a pessoa deve ter, além da capacidade geral para os atos da vida civil, a capacidade especial para alienar (art. 1.240 do Código Civil).

Daí surgem algumas restrições de natureza subjetiva. O cônjuge só pode grava de ônus real os bens imóveis com autorização do outro, salvo se casados pelo regime de separação absoluta de bens. Os menores condicionados ao poder familiar, além de dependerem de representação ou assistência, necessitam de autorização judicial. O falido e o inventariante no que concerne aos bens que integram o acervo hereditário, também não podem instituir hipoteca, com exceção de autorização judicial.

1.3) Formalidades e Registro

Mais adiante dos requisitos subjetivos e objetivos, é inevitável que haja o registro no Cartório de Registro de Imóveis, com observância à forma de sua instituição. O título constitutivo deve ser um instrumento escrito com participação de testemunhas instrumentárias e, caso o valor do imóvel seja superior a 30 vezes o salário mínimo, o título deve ser uma escritura pública (art. 108 do Código Civil).

A escritura pública deve conter todas as cláusulas necessárias a sua eficácia (art. 1.424 do Código Civil): a) valor do crédito, sua estimação, ou valor máximo; b) prazo fixado para pagamento; c) taxa dos juros, se houver; d) bem dado em garantia com as suas especificações. Esse último requisito reforça a especialização, identificação de partes, do débito e de todas as descrições do imóvel de modo a individualiza-lo. Portanto, não existe hipoteca sem especialização ou ilimitada.

Com o registro, a hipoteca passa a ter caráter erga omnes. Nesse sentido:

Por ter por objeto coisa imóvel, a hipoteca, mesmo a legal, deve ser registrada e especializada (CC, art. 1.497). Esse é o único modo de sua constituição. Sua extinção depende, igualmente, do cancelamento do registro público (Lei de Registros Públicos, art. 251), ainda que a dívida já tenha sido solvida. Uma vez feito o registro, a hipoteca produz efeitos contra todos (erga omnes). O registro deve ser feito no cartório da situação do imóvel, pelo credor hipotecário, exibindo o título.4

Realça-se que a partir do momento que o título constitutivo da hipoteca ingressa no Cartório de Registro de Imóveis, ele é prenotado. Dessa forma, com a prenotação do título, a anotação de que o título foi apresentado em cartório – protocolo, tem-se a prioridade da hipoteca, no caso de hipotecas sucessivas. Neste caso, o documento que foi prenotado primeiro e tiver o menor número de ordem tem prioridade no recebimento do crédito.

Depois da prenotação, há a fase de qualificação registral, que é aplicação do princípio da legalidade, a conferência dos requisitos da hipoteca, a análise pelo registrador conforme a sua prudência registral de conformação do título com o ordenamento jurídico. Havendo qualquer mácula nesse ínterim, o registrador abre a possibilidade de suprimento ou correção, emitindo uma nota devolutiva.

Quando o interessado recebe a nota devolutiva, abrem-se duas possibilidades: a) a conformação da rejeição com adoção das providências cabíveis; b) a não concordância em relação à exigência do oficial de registro que culmina em um processo administrativo chamado suscitação de dúvida, decidida pelo juízo competente.

Ainda em relação aos requisitos formais e ao conteúdo das cláusulas encartadas em um instrumento instituidor de hipoteca, é importante relacionar que é nula cláusula que proíba de vender o imóvel (art. 1.475 do Código Civil). Se se admitisse o contrário, haveria um óbice ao vendedor que desejasse alienar o bem para saldar a dívida. Logo, com a instituição do gravame, além de não haver a perda da propriedade, não há perda do direito de disposição.

De outro lado, não há impedimento para instituição de cláusula que estabeleça o vencimento antecipado da dívida em caso de alienação a terceiro. E mais, é lícito que se institua o que a doutrina chama de pacto marciano (oriundo do direito romano), o qual prescreve que em observância ao justo preço, a avaliação real da coisa, e a previsão de restituição do valor do bem dado em garantia que excede, de modo que com o inadimplemento da obrigação o próprio credor pode realizar a venda do imóvel, desde que não haja fraude à lei ou que seja realizado um vício social do negócio (simulação).

1.4) Remição e Extinção

Quando há o adimplemento da dívida em prol do credor, existe a remição da hipoteca (liberação ou resgate do imóvel). Dentre os legitimados a remir a garantia estão o próprio devedor, o credor da segunda hipoteca ou o adquirente do imóvel hipotecado.

O prazo final para o resgate pelo devedor é até a assinatura do auto de arrematação. Em todos os casos, apesar de o devedor não estar vinculado ao adimplemento integral do débito, ele não pode oferecer proposta aquém ao preço fixado na avaliação, justamente como corolário do prejuízo mínimo. Caso a venda não atinja o saldo devedor, o credor ainda tem direito à satisfação do débito, no entanto não pode penhorar o bem remido. Em complemento:

Preleciona Caio Mário da Silva Pereira que essa orientação favorável ao devedor foi atingida sob tríplice fundamento: “a) se fosse possível ao exequente perseguir o bem hipotecado após a remição, seria esta uma inutilidade; b) se o devedor continuasse a responder com o imóvel pelo remanescente da dívida, a remição que foi criada para favorecer ao devedor e sua família acabaria por converter-se em sistema protetor do credor, proporcionando-lhe desde logo um pagamento parcial com a operação remissiva, e recolocaria o bem ao alcance da execução pelo saldo da dívida; c) se fosse possível ao credor prosseguir contra o executado, fácil seria a este remir por interposta pessoa (cônjuge, descendente, ascendente) e, então, consagraria a própria lei a burla aos seus princípios, permitindo que se fizesse por via travessa, o que pela direta não lograria o devedor. 5

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No caso de remição pelo segundo credor, ocorre a sub-rogação dos direitos creditícios da primeira hipoteca. Entretanto, a lei possibilita duas formas de materialização desses direitos: a) o segundo devedor promove a execução; b) redime o imóvel hipotecado, consignado o valor e citando o primeiro credor para receber e o devedor pagar. No último caso, se não houver o pagamento o segundo credor se sub-roga nos direitos da hipoteca anterior.

Quanto ao último legitimado, o adquirente do imóvel hipotecado também pode remir a hipoteca. Se ele não fizer a remição ou pagamento da dívida, fica sujeito a excussão do bem imóvel. O prazo para exercício do direito de remição é no prazo decadencial de 30 dias improrrogáveis. Confere-se ainda ao adquirente a oportunidade de abandonar o imóvel.

Por derradeiro, quando aos aspectos de extinção da hipoteca, há previsão expressa no art. 1.499 do Código Civil das hipóteses previstas em lei: a) extinção da obrigação principal; b) perecimento da coisa; c) resolução da propriedade; d) renúncia do credor; e) remição; f) arrematação ou adjudicação. Esse rol é exemplificativo, já que há também a hipótese de consolidação da propriedade; perempção legal (extinção pelo decurso de 30 anos sem nota instituição de hipoteca); usucapião, este último, muito embora seja hipótese de aquisição originário da propriedade, não deixa de ser um exemplo de finalização do gravame.

2) HIPOTECA REVERSA

2.1) Conceito e Histórico

A origem da hipoteca reversa é apontada nos países como Estados Unidos e Canadá, a qual se denominou como reverse mortagage. Esse instituto é referido como a “conversão de um ativo imobiliário em um fluxo de renda que seja temporário ou vitalício, ou seja, o produto visa dar liquidez a um ativo que em sua essência é ilíquido”.6

O objetivo dessa garantia à época de sua criação era justamente fornecer subsídios pecuniários a pessoa idosa que possui ativo imobilizado e sem liquidez. Dessa forma, seria uma complementação da renda. No entanto, essa complementação estaria condicionada a análise de fatores como: valor de marcado, estado do imóvel, idade e condições de saúde da pessoa idosa.

Há vários tipos de hipoteca reversa, a depender do país, que viabilizam diversas formas de instituição e pagamento, considerando as circunstâncias de cada situação fática. Primeiro, a term ou tenure reverse mortage, uma hipoteca temporária de trato sucessivo por período delimitado (3 a 10 anos). No fim do contrato, o mutuante recebe os valores principais com os acréscimos devidos, além da valorização do imóvel.

Segundo, a lifetime reverse mortgage que nada mais é a versão vitalícia do pagamento mensal até o falecimento da pessoa idosa. Sujeitando-se a um risco maior em relação ao prazo, o mutuante concede um valor menor já que o período será menor. Terceiro, line of credit reverse mortgage consiste na pré-fixação do recurso financeiro a ser utilizado, deixando ao arbítrio do mutuário o momento e a forma de utilização do crédito.

Quarto, hybrid term reverse mortgage é a junção do primeiro com o terceiro (tenure reverse mortage e line of credit reverse mortgage) o que confere parte do valor com renda temporária e outra parte como linha de crédito com a quantia já fixada dos valores a serem usados a escolha do beneficiário. Quinto, fixed payment mortgage cinge-se ao pagamento fixo inicial ao mutuário com as demais parcelas pagas por período determinado, semelhante ao tenure reverse mortage.

Quinto, o home equity conversion mortgage é a hipótese em que há o pagamento vitalício, mas também pode ser por tempo determinado. No entanto, há ainda um seguro que confere proteção a entidade familiar em caso de desvalorização do imóvel. Essa última hipótese, assemelha-se ao home equity – modalidade de mútuo financeiro com garantia real. No caso do home equity, há na verdade uma alienação fiduciária, em que a instituição financeira passa a ter a propriedade resolúvel do imóvel em garantia.

Em relação propriamente a hipoteca reversa, colaciona-se que é um direito real de garantia, que é instituído em favor de um credor para garantia de mútuo financeiro atrelado a uma renda, gravame que recai sobre imóvel pertencente, geralmente, à pessoa idosa, com início do adimplemento a partir do falecimento do proprietário do imóvel. Esse instituto particularmente é oriundo do direito estadunidense. Segundo Gabriel Giuliano Araujo e João Vinicius de França Carvalho o conceito de hipoteca reversa se substancializa nos seguintes dizeres:

A hipoteca reversa é um instrumento por meio do qual uma pessoa física que possui um imóvel próprio transfere a propriedade para uma seguradora, que garantirá uma renda complementar ao indivíduo, mantendo seu direito de usufruto do imóvel até o seu falecimento. É um produto financeiro difundido nos EUA, na Europa e em diversos países e cujo interesse tem sido crescente ao longo da última década. Ainda não há previsão de sua implementação no Brasil, embora um projeto de lei já esteja em tramita ção no Congresso Nacional. 7

O projeto de lei a qual se refere o autor é o PL 3096/2019, de autoria do Deputado Federal Vinicius Farah (MDB-RJ). Segundo o deputado: “Se aprovada, a proposta trará um aumento na renda do idoso que seja proprietário de um bem imóvel. Muitas das vezes essa renda não ultrapassa o salário mínimo”.8

A íntegra do Projeto Lei pode assim ser citada:

Art. 1º Fica instituído a hipoteca reversa em benefício de pessoas idosas amparadas pelo Código do Idoso.

Art. 2º O idoso aposentado e proprietário de imóvel residencial poderá vendê-lo, reservando para si o direito de habitação e constituindo uma renda mensal.

Art. 3º O idoso beneficiário da hipoteca reversa, após a morte fará jus à posse direta do imóvel, extinguindo-se o pagamento da renda mensal.

Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Seguindo a estrutura do teor proposto no projeto de lei, é importante se salientar que o título constitutivo da hipoteca reversa tem natureza de negócio jurídico, já que há declaração de vontades com efeitos previstos contratualmente, cujo objeto é um direito obrigacional em consonância com um direito real de garantia que entrelaça tais direitos, conferindo um caráter de acessoriedade à hipoteca.

Trata-se de um negócio jurídico bilateral, solene, formal, acessório, instituído pelo registro no Cartório de Registro de Imóveis. No entanto, há uma ressalva em relação à hipoteca tradicional, já que o negócio jurídico é de trato sucessivo e a termo, protrai-se no tempo e tem como evento futuro e certo a morte, marco da exigibilidade da dívida.

A obrigação principal é um empréstimo – mútuo financeiro. É um negócio jurídico entre mutuante e mutuário (devedor) que há transferência de bens móveis – numerário. Doutrinariamente, conceitua-se como mútuo feneratício. Assim sendo, é contrato real, que exige a tradição para se efetivar. Entendido como unilateral, já se estabelecem obrigações a apenas o mutuário (obrigação de pagar).

2.2) Problemática e Direitos Fundamentais da Pessoa Idosa

É de conhecimento que a pessoa idosa no Brasil, majoritariamente, tem como renda os benefícios previdenciários. Os valores desses benefícios não perfazem uma quantia suficiente a garantir a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial.

Além disso, recai sobre o Poder Público, além da sociedade e da família, o dever de amparo às pessoas idosas. Esse dever se mostra presente na defesa da dignidade e bem-estar, como modo de garantia a vida (art. 230, caput, Constituição da República).

Em sede infraconstitucional, a efetivação do direito à vida (art. 3º, caput, do Estatuto da Pessoa Idosa). Substancializando esse direito à vida referida norma assim dispõe nos Título II – Dos Direitos Fundamentais, Capítulo I – Do Direito à Vida:

Art. 8o O envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social, nos termos desta Lei e da legislação vigente.

Art. 9o É obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.

Tendo por pressuposto que os direitos fundamentais encontram eficácia horizontal (entre particulares) e vertical (entre o Poder Público e o particular), não se encontra qualquer óbice à criação da hipoteca reversa proposta pelo PL 3096/2019.

A viabilidade jurídica deve ser adaptada à uma regulamentação que possa tanto satisfazer o interesse jurídico da pessoa idosa legitimado pela auferimento de renda extra, quanto garantir e evitar instrumentos abusivos e relacionados à fraude.

Nesse sentido, deve-se ponderar os riscos relacionados a esse título constitutivo uma vez que: primeiro, existem riscos de longevidade que se relacionam com o risco de descasamento entre ativo e passivo, logo a idade do idoso é inversamente proporcional ao resgate do saldo remanescente, correndo-se o risco até de a dívida superar o valor do ativo.

Segundo, tendo por base o risco da longevidade, as condições de crédito serão mais amplas para as idades mais avançadas, já que em um período próximo o crédito passa a ser exigível. Por outro lado, as idades menores, em razão da possibilidade de existência de um longo período de oferecimento de crédito, as condições serão mais restritivas. Assim, haverá uma flagrante discriminação em relação ao acesso ao crédito.

Terceiro, as taxas de juros são indicadores elementarmente variáveis, podendo sofrer constantes diversificação de valores atrelados às incertezas do mercado financeiro. Por exemplo, se houver um cenário negativo com taxas de juros altas, a dívida certamente se aumentará e o patrimônio líquido se encolherá.

Quarto, denota-se um risco de preço do imóvel que será objeto da garantia real do contrato principal de mútuo, em função da suscetibilidade à depreciação ou (des)valorização do valor do bem. Deflagra-se que se o imóvel sofrer desvalorização em contrapartida a uma alta da taxa de juros, o saldo do empréstimo será mais alto, o que acarreta possibilidades até de patrimônio negativo.

Ante a esse cenário, alguns países estabeleceram parâmetros de condições e requisitos necessários à instituição do gravame. No Canadá:

O CHIP Reverse Mortgage permite que o mutuário permaneça como proprietário da residência, desde que atendidas certas condições, tais como: manter o imóvel em boas condições; honrar o pagamento regular dos impostos devidos; contratar um seguro residencial caso ainda não o tenha e caso exista algum outro tipo de hipoteca já assumida para o imóvel em questão, esta deve ser paga na totalidade para que o contrato de Reverse Mortgage seja iniciado. É comum que a residência seja submetida a análises periódicas de avaliação, sendo este custo imputado ao mutuário que pode optar por pagá-los à medida que tais avaliações ocorrerem ou 21 pode optar por adicionar os custos ao montante da dívida, saldando-o no final com o valor da habitação. Dentre as principais taxas praticadas pelo CHIP está uma taxa administrativa e de fechamento de $ 1.795 que inclui pesquisa de segurança, seguro de título e registro de hipoteca. Somado a isso, estão outras taxas que variam de US $ 175 a US $ 400 para uma avaliação da propriedade e por fim, cobram uma taxa entre US $ 300 e US $ 500 por consultoria jurídica independente. (Crèvecoeur e Michaud, 2021)9

Logo, a hipoteca reversa é definida por uma sistemática que garante a intransmissibilidade da dívida do de cujus, garantia já conhecida do nosso ordenamento pátrio pelo artigo 1.788 do Código Civil Brasileiro: Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo.

Na Austrália, há também requisitos necessários à concessão do crédito, no entanto, visando também a afastar a transmissão da dívida aos herdeiros, há um Projeto de Lei que oferece uma proteção ou caução à limitação da dívida ao valor da residência:

Na Austrália, o Projeto de Lei de Emenda à Legislação de Crédito ao Consumidor promulgado em 18 de setembro de 2012 garante que todos os provedores de hipotecas reversas devem oferecer uma garantia de Negative Equity Protection semelhante a clausula de NoNegative Equity Guarantee (NNEG) praticada nos contratos de HECM dos Estados Unidos. Tal clausula garante que, independente do período de duração do empréstimo, o mutuário nunca poderá dever mais do que o valor de sua residência (Australian Government, 2021). No entanto, a clausula Negative Equity Protection poderá ser negada caso o Credor consiga provar algum tipo de negligência ou omissão por parte do mutuário, incluindo fraude ou deturpação, deixando de manter a propriedade em boas condições, caracterizando negligência com a situação física ou fiscal do bem, inadimplência com o seguro imobiliário obrigatório ou algum outro descumprimento de normas acordadas inicialmente. (Alai et al., 2014)

Nos Estados Unidos, há ainda uma possibilidade de alocação de fundos para o financiamento do crédito:

De acordo com Chatterjee em seu estudo “Reverse Mortgage Participation in the United States” o HECM detém a maior fatia do mercado de Reverse Mortgage norte-americano, com aproximadamente 90% de participação (Chatterjee, 2016). Além da possibilidade da 24 participação de investidores institucionais no financiamento do programa, o HECM tem características particulares quando comparadas aos demais modelos ofertados no país. Uma característica que distingue o produto HECM dos produtos convencionais de hipoteca reversa é uma opção de saída dada ao credor que alocou fundos para o financiamento do produto, tal opção dá o direito de os credores atribuírem o empréstimo ao HUD quando o saldo total da dívida contraída pelo mutuário igualar 98% ou mais do valor máximo da hipoteca, transferindo assim ao HUD todas as responsabilidades pelo serviço do empréstimo dali em diante. (Szymanoski et al., 2007)

Em relação ao Brasil, há que sopesar que: a) as pessoas idosas possuem renda majoritariamente limitada em razão das condições socioeconômicas do país; b) na hipoteca convencional já existem garantias e funcionalidades que galgam à proteção da pessoa idosa; c) a hipoteca convencional já caiu em desuso por comprometer a celeridade no recebimento do crédito, bem como no retorno financeiro esperado, de modo que a alienação fiduciária preencheu esse espaço; d) em razão do excessivo risco financeiro em cotejo com o grau pobreza da população idosa, talvez não exista interesse dos investidores e bancos em oferecer a renda temporária.

Propõe-se assim que haja uma mescla da hipoteca convencional com alguns propósitos de limitações estabelecidos na legislação estrangeira, inclusive com a possibilidade de inclusão de um procedimento que seja eficaz e célere para o adimplemento da dívida.

Portanto, é fato que a hipoteca reversa deve ter parâmetros regulamentados por lei. Deve incorporar características da hipoteca convencional, tal como a limitação da transmissão do crédito ao valor da herança sem se criar um patrimônio negativo e a permanência da propriedade e da posse direta pela pessoa idosa.

Outrossim, a criação de um procedimento extrajudicial, que é muito mais célere, relacionado ao inventário, que já possibilite ao credor o ressarcimento do crédito fornecido ou a transmissão imediata da posse direta para que se possibilite uma licitação de proponentes ou que seja feita a transmissão da propriedade ao credor com devolução dos excessos aos herdeiros.

Considerações Finais

Após a análise da hipoteca convencional regulada pelo ordenamento pátrio, possibilitou-se um estudo amplo do direito real de garantia e suas funcionalidades no que concerne ao adimplemento do crédito principal, seja ele relacionado a instrumentos financeiros ou imobiliários.

Extraiu-se que os requisitos e conceitos do instituto mencionado são base para a criação de qualquer regime de gravame, dado que já se consolidou no Brasil o sistema de registro público, sistema esse que deflagra a existência e oponibilidade em relação a terceiros condicionada ao ingresso do título no Cartório de Registro de Imóveis. Essa publicidade do registro garante uma presunção de conhecimento por terceiros das características e individualidades do imóvel.

Em posse dessas informações, com fundamento na possibilidade de se conferir uma vida digna à pessoa idosa, frente às necessidades sociais e ao dever do Poder Público de políticas públicas em defesa dessas pessoas, oportunizou-se a apresentação do conceito da hipoteca reversa, tanto sob a ótica da legislação pátria quando pela ótica da legislação estrangeira.

Além da legislação estrangeira, dessumiu-se a problemática da instituição da hipoteca reversa, no viés jurídico e no viés econômico. Os riscos financeiros e relacionados à própria higidez do patrimônio frente à dívida contraída são matérias que precisam ser levadas em consideração, a fim de que se criem sistemas de reversibilidade do ativo compatíveis com cada situação fática.

Por isso, propôs-se que, dentre esse rol de sistemas existentes no direito alienígena com algumas adequações à legislação vigente da hipoteca convencional, fosse criado um feixe de normas que sejam convergentes à proteção da pessoa idosa, primordialmente a dignidade da pessoa humana e a imprescindibilidade de uma renda mensal associada à manutenção da posse para a pessoa idosa.


Referências

  1. ....

  2. LÔBO, Paulo Luiz N. Direito Civil Volume 4 - Coisas. [Digite o Local da Editora]: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786555596885. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555596885/. Acesso em: 04 dez. 2022.

  3. DINIZ, Maria H. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. v.4. [Digite o Local da Editora]: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786555598674. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555598674/. Acesso em: 04 dez. 2022.

  4. LÔBO, Paulo Luiz N. Direito Civil Volume 4 - Coisas. [Digite o Local da Editora]: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786555596885. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555596885/. Acesso em: 05 dez. 2022.

  5. GONÇALVES, Carlos R. Direito Civil Brasileiro - Volume 5. [Digite o Local da Editora]: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786555596595. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555596595/. Acesso em: 06 dez. 2022.

  6. DEUS JUNIOR, Sérgio Luiz de Hipoteca Reversa: Viabilidade no cenário brasileiro e relevância financeira aos mutuários. (Trabalho de Conclusão do Curso em Ciências Atuariais) Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Política, Economia e Negócios, Osasco, 2022.

  7. ARAUJO, Gabriel Giuliano e CARVALHO, João Vinicius de França. Tijolo, moeda forte ?: uma análise da viabilidade da hipoteca reversa no Brasil. 2021, Anais.. São Paulo: EAC/FEA/USP, 2021. Disponível em: https://congressousp.fipecafi.org/anais/21UspInternational/ArtigosDownload/3053.pdf. Acesso em: 06 dez. 2022.

  8. Agencia de Notícia da Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/noticias/563287-proposta-cria-hipoteca-reversa-para-idosos/#:~:text=O%20Projeto%20de%20Lei%203096,uma%20nova%20fonte%20de%20renda. Acesso em: 06 dez. 2022.

  9. DEUS JUNIOR, Sérgio Luiz de Hipoteca Reversa: Viabilidade no cenário brasileiro e relevância financeira aos mutuários. (Trabalho de Conclusão do Curso em Ciências Atuariais) Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Política, Economia e Negócios, Osasco, 2022.

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Sobre o autor
Josmar Luiz Silveira Longo

Formando em Direito pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Estácio de Sá. Mestrando em Função Social do Direito na Faculdade de São Paulo - FADISP UNIALFA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LONGO, Josmar Luiz Silveira. Hipoteca reversa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7669, 30 jun. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109510. Acesso em: 3 jul. 2024.

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