Acabamos de presenciar, em março passado, a inclusão do “direito ao aborto” na Constituição Francesa, em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Na verdade, esses ideais da revolução sempre foram discutíveis, pois a fase do Terror que se seguiu à Convenção desmentiu esse mesmo ideário, na prática, com o derramamento de sangue de milhares de pessoas na guilhotina, até mesmo dos líderes da revoulução, sem direito à defesa ou a recurso.
Com a referida decisão do Parlamento Francês deste ano, ficou mais patente que a revolução deixou cicatrizes profundas e sangrentas na história francesa. Esse chamado “direito”, que é na verdade um contra-direito, pois institucionaliza o homicídio de crianças inocentes, contraria todos os princípios de humanidade dos povos civilizados e os direitos humanos consagrados nas declarações e tratados internacionais sobre o tema.
Em primeiro lugar, o direito à vida, à integridade corporal das crianças e o dever de proteção dos pais, consagrados, especificamente, na Declaração dos Direitos das Crianças e da respectiva Convenção1. Essa falta de reconhecimento dos nascituros como pessoas torna-os seres invisíveis do ponto de vista jurídico, sendo certo que qualquer mulher grávida pode ver o seu filho ainda na barriga, por um procedimento de exame médico muito comum em nossos dias, o que causa o maior espanto. Essa invisibilidade jurídica, inserida na Constituição Francesa, é uma das notas de decadência civilizacional, uma triste história que se repete na Europa, depois do holocausto.
Não há dúvida quanto à humanidade do embriões, eis que são seres humanos, crianças, em desenvolvimento embrionário e fetal, como confirmado pela embriologia há décadas. Após a fecundação, ou seja, a junção dos 23 cromossos masculinos aos 23 cromossomos femininos, forma-se um novo ser humano, com identidade genética única e irrepetível, que se desenvolverá de forma contínua, coordenada e gradual2.
Como se explica tamanha loucura? Como o direito agasalha em uma constituição a negação do próprio direito? Como um Estado que existe exatamente para salvaguardar a vida dos cidadãos como sua principal finalidade, como sua missão precípua, pode chegar a aprovar uma alteração constitucional deste jaez, autorizar o assassinato de crinças inocentes?
Lanço aqui uma pista para a explicação: primeiro, um falso conceito de liberdade, mal entendida e mal vivida, que se torna libertinagem. Um abuso do direito e da autonomia da vontade, como se fosse a possibilidade de tudo fazer e tudo poder, transbordando a sua legítima esfera para destruir a vida de seres humanos indefesos.
Em segundo lugar, um conceito de igualdade que não reconhece a natureza humana comum a todos os seres humanos e a sua intrínseca dignidade, o valor incondicionado de cada pessoa humana, tornando-se, na verdade, em uma falsa igualdade, uma nefasta desigualdade, que criou no nível constitucional cidadãos de segunda classe, ou seja, que nem o seu direito à vida está garantido por normas que coibam o homicídio3.
E por fim, a libertinagem e a desigualdade, geram a derrocada da fraternidade, que seria reconhecer aos demais como irmãos, membros da mesma família humana. O denominado ‘‘direito ao aborto” é a negação mais cruel da fraternidade, pois autoriza o homicídio, o assassinato, de uma criança inocente e indefesa no seio materno, por aqueles que titularizam o maior dever de proteção: a mãe, os pais e os médicos. Fragilizam-se todos os laços sociais. Institucionaliza-se a lei do mais forte. Aqui estamos diante do mais abominável individualismo, do maior desprezo pelo ser humano, a negação mais crassa da fraternidade.
Notas
Artigo primeiro da Convenção sobre os direitos da criança: Para efeito da presente Convenção, considera-se como criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade, salvo quando, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.︎
SCRECCIA, Elio. Manual de Bioética. I – Fundamentos e ética médica. Edições Loyola : São Paulo, 1996, p. 341-346.︎
Sobre o valor incondicionado de cada pessoa humana Cf. SPAEMANN, Robert. Personas. Acerca de la distinción entre “algo’ y “alguien”. EUNSA, Pamplona, 2000.︎