4. O CRIME E A SEGURANÇA PÚBLICA
4.1. Segurança Pública na Constituição Federal
De acordo com o art. 144. da Constituição Federal, a segurança pública é um dever do estado e um direito e responsabilidade de todos, devendo ser exercida para buscar a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio público.
O regime de segurança pública será formalizado pela polícia administrativa, o que abrange uma atuação preventiva, ostensiva, buscando evitar que o crime ocorra e pela polícia judiciária, que atua após a ocorrência do crime, de modo repressivo, sendo responsável pela investigação do fato delituoso.
De acordo com a Constituição da República, os órgãos encarregados da segurança pública são a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Ferroviária Federal, as Polícias Civis, a polícia Militar e o Corpo de Bombeiro militar e as Polícias Penais Federal, Estadual e Distrital. Segundo o STF, esse rol é taxativo, de observância compulsória, ou seja, os Estados também devem segui-lo, não podendo a Constituição Estadual ou legislação estadual, alterar, acrescer ou diminuir a previsão.
Seguindo os ditames constitucionais, a Polícia Federal é destinada a apurar infrações penais contra ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades, além de infrações cuja prática tenha repercussão internacional ou interestadual e exija repressão uniforme; prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, contrabando, descaminho; exercer a polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
Já à Polícia Rodoviária Federal caberá o patrulhamento ostensivo das rodovias federais. Da mesma forma, à Polícia Ferroviária Federal caberá o patrulhamento ostensivo,porém, das ferrovias federais.
No caso das Polícias Civis, que serão dirigidas por Delegado de Polícia Civil de carreira, ressalvada as competências da União, caberá as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais, exceto as militares. É essa a polícia mais próxima da população, que recebe maior ênfase, junto com a Polícia Militar, no controle social formal.
À Polícia Militar, órgão que também recebe previsão no art. 144. da Constituição Federal, cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. No mesmo inciso, consta o Corpo de Bombeiros Militar, a quem cabe a atividade de defesa civil.
No ano de 2019, foi aprovada uma Emenda Constitucional, que adicionou ao rol do art. 144. da Constituição a Polícia Penal, que são vinculadas ao órgão administrador do sistema penal, cabendo a segurança pública dos estabelecimentos penais.
Ademais, também é previsão da Constituição, porém fora do rol taxativo do artigo em questão, a criação das guardas municipais, constituídas pelos Municípios para proteção de seus bens, serviços e instalações públicas.
O que fica bastante perceptível é que cada polícia é responsável por um setor da sociedade. Esta é uma forma de tornar o serviço público mais eficiente, pois cada uma é responsável por agir de determinada forma na condução social. Ocorre que, apesar de autônomas, as polícias trabalham de forma colaborativa entre si, ou seja, a Polícia Militar faz um patrulhamento ostensivo da região, tentando inibir o cometimento dos crimes, mas, caso venha ocorrer um ilícito, ela deverá acionar a Polícia Civil ou a Polícia Federal, a depender do caso concreto.
O setor de segurança pública do Estado tem um ideal bastante coerente, abrangendo teoricamente todos os departamentos necessários para coibir o crime ou manter um controle social. Contudo, falta verba e organização. De um lado, tem-se notícias de policiais trabalhando com baixas de pessoal, de salários que não condizem com a responsabilidade do trabalho, equipamentos de segurança vencidos, armas e munições em péssimo estado. De outro lado, cada vez mais, os criminosos estão mais articulados, mais armados e preparados para um possível embate.
4.2. Criminologia e segurança pública
A relação da criminologia com a segurança pública tem relação direta com a prevenção e repressão do crime, desde sua gênese até seus desdobramentos na sociedade. A criminologia busca fornecer informações para nortear as ações de segurança pública, com técnicas de investigação específicas que permitem um tracejado do perfil criminológico.
Ressalta-se que diante de todo o estudo da segurança pública a contribuição da criminologia não diz respeito apenas ao criminoso em si. Relembre-se que o objeto da criminologia envolve além do sujeito ativo do crime, a vítima, o controle social e o próprio crime. Nesse sentido, todos os fatores criminais são importantes, inclusive os dias da semana, as condições climáticas, a hora do fato, o local, com observações minuciosas escritas em um croqui descritivo, estritamente de acordo com a lei.69
Mas, não são apenas as políticas públicas que se alimentam dos estudos da criminologia para buscar uma melhor contenção do crime. O próprio corpo policial responsável por determinada área deveria estabelecer um contato mais próximo das pessoas daquela comunidade específica, ou seja, o controle formal deveria se aproximar do controle informal para juntos estabelecerem uma forte relação com o condão de impedir ou prevenir o cometimento do crime.
A polícia, quando estabelece sua corporação em determinado setor social, deve fazer um reconhecimento do espaço geográfico, da disposição populacional, do nível socioeconômico, do nível de escolaridade, dos projetos sociais ali presentes, qual o maior índice de criminalidade e a taxa de incidência de determinados tipos de crimes. E é nesse ponto que a criminologia mostra sua importância, pois é ela que vai permitir esse vasto olhar, através dos estudos do modus operandi, de uma apuração criteriosa dos fatos.
No controle social formal sabemos que há camadas de controle e é a polícia que ocupa a primeira camada, quer dizer, é ela a base do controle, a primeira que possui contato com o crime e com os problemas sociais ali presentes, seguidas do Ministério público e do judiciário. Mas, percebe-se que, como numa escada, o controle social é formado de degraus, e é a polícia o primeiro deles, devendo disseminar as políticas públicas, atuar no direcionamento dos jovens em situação de risco, protegendo o cidadão e trazendo o mesmo para mais perto do poder estatal. Tudo isso, são comportamentos analisados pelos estudos criminológicos, que contempla nos seus objetos de estudos todos os setores do crime.
Por óbvio, não pode toda sobrecarga ser colocada no órgão policial, pois, até mesmo a Constituição Federal coloca a segurança pública como dever do Estado, porém, como uma responsabilidade e direito de todos. Outrossim, nos estudos da vitimologia, do controle social informal e até mesmo da disposição geográfica do crime, resta evidente que a sociedade também tem seu percentual de colaboração na dinâmica criminosa e na atuação do Estado no setor da segurança pública.
De toda forma, diante da crescente desigualdade social e da exclusão, principalmente em relação a moradores dos bairros periféricos, é esperado que haja um aumento da criminalidade. E é neste ponto que fica evidente a responsabilidade social no que tange à segurança pública, pois, se não há uma maior inserção social de determinados indivíduos e nem uma abertura de oportunidades, seja de emprego, inclusão, resolução de conflitos, não há a efetividade de um controle social informal.
A própria sociedade, como já explanado nos estudos da teoria do Labelling Approach, nega oportunidades para aqueles que já tiveram passagem pelo sistema policial. Estigmatizam, segregam, fazem com que o criminoso mergulhe no rótulo que lhe foi atribuído, e sem oportunidades, não resta outra opção senão a reincidência. Não há emprego, não há oportunidade, não há inclusão social, não há cidadania, parece que tudo foi retirado daquela pessoa e restou apenas o criminoso, que não merece uma segunda chance.
É certo que o que se discute são situações em que o próprio delinquente quer e busca ser reinserido, visto que, não tem como obrigar ninguém a ter um comportamento positivo sem a pessoa querer. Nesse diapasão, voltamos a pergunta que a maioria das teorias criminológicas tentam responder: porquê essas pessoas cometem crimes?
Muitas das teorias relacionam a falta de moradia, a situação de extrema pobreza, a falta de educação, lazer, imigração, movimento das cidades e outras relacionam, como por exemplo, a teoria a da Associação Diferencial, com o aprendizado do crime, com a criação de oportunidades, o que justificaria, inclusive, os crimes cometidos por pessoas economicamente favorecidas. Nenhuma delas deve ser descartada, pois o que se observa é que há uma relação entre todos esses motivos.
No mais, pelos estudos da criminologia, defende-se uma polícia mais comunitária, envolvida em programas sociais, promovendo uma atuação mais próxima da população, participando de resolução dos conflitos, assegurando os direitos do cidadão. Ao mesmo tempo, requer uma atuação por parte do Estado, voltada para uma política penitenciária condizente com a realidade, respeitando a individualidade dos delitos, um maior empenho do governo nas políticas públicas de segurança e na condução de projetos voltados a melhoria de condição de vida. Ademais, como já explanado, a segurança pública é responsabilidade (e direito) da sociedade, mas, para isso é necessário um corpo social menos limitante e menos estigmatizante, mais acolhedor para os que desejam se reestabelecer – e não mais delinquir - com uma efetiva atuação do controle informal, já que ele é a principal fonte de controle.
4.3. Política Criminal e Segurança Pública
Em uma realidade teórica, a política criminal, como já evidenciado, tem a finalidade de evitar o cometimento dos crimes, bem como, reprimi-los, caso eles venham a acontecer. Também no campo teórico, deveria a política criminal fornecer meios de o Estado evitar o crime e punir o criminoso sem necessitar de novas leis, novos tipos penais, pois, já evidente que criar crimes e prender pessoas, não necessariamente, fará diminuir a taxa da criminalidade. Porém, como já dito, isso é na teoria.
Na prática, os estudos da política criminal tem sido utilizados para atender um clamor social, que busca, cada vez mais, um recrudescimento da lei, das penas, com o necessário afastamento total do criminoso da sociedade. Assim, no decorrer dos anos, o papel do Estado diante das conclusões dos estudos, tem sido atribuir ao legislativo a competência para criar novas leis e endurecer penas de crimes já existentes. Em síntese, estudos que deveriam servir para amenizar o encarceramento e a criação de novos tipos, tem sido utilizado para endurecer ainda mais.70
Na sociedade muito se acredita que quanto maior for a pena de determinado crime, menos criminosos irão cometê-lo, contudo, esse pensamento é errado e já foi provado por inúmeros estudos de política criminal e da criminologia que não é assim que funciona, pois os crimes continuam a acontecer e, muitas vezes, de formas mais graves. O papel das duas ciências é encontrar uma forma de diminuir a criminalidade, estudando o crime e elaborando as estratégias de contenção, porém, aparentemente, quando essas propostas chegam ao Poder legislativo, juntamente com o poder judiciário, as determinações são de aplicação de leis mais severas e penas maiores, por causa de um clamor social direcionado ao pensamento em questão.
Através dos estudos da política criminal, além da construção de estratégias para diminuição da criminalidade, é possível fazer uma análise do patamar civilizatório que determinado Estado alcançou, além de verificar o grau de efetividade que os direitos humanos obtiveram. A depender da forma como o Estado se comporta ouvindo seu corpo social, será tido como um estado autoritário ou democrático, e por isso, muitas vezes, buscando este cunho de uma “democracia”, é que a política criminal se confunde em produção de leis mais duras e penas maiores.
Salienta-se que não é apenas o Poder executivo que é responsável pela política criminal. Sim, o judiciário e o legislativo aplicam a política criminal transformando-a em normas, mas, muito além disso, a política criminal seria um vetor de interpretação para aplicação da lei. Por exemplo, quando um juiz, em um processo decide se aplica ou não o princípio da insignificância, com base em critérios subjetivos, ele está realizando a atividade de política criminal, pois está fazendo uma análise do alcance das liberdades e garantias dos indivíduos.71
Uma outra fonte da política criminal é o Plano Nacional de Segurança Pública, emitido pelo Ministro de Estado da Justiça e Segurança pública, que visa estabelecer metas, planejamento e compromisso em conjunto das esferas públicas para redução da criminalidade. Ocorre que em 2017 este plano sofreu diversas mudanças com reforço de medidas repressivas e aumento da vigilância por parte dos órgãos de segurança, afastando-se dos propósitos de segurança e paz social. Neste plano, não se trabalhou na raiz do problema da criminalidade, e sim, houve uma releitura da “lei de tolerância zero”.72
Dessa forma, voltamos ao ponto central, ao cerne do problema de operacionalização das políticas criminais, pois muito se pensa em punir e pouco se pensa em chegar na raiz do problema. É certo que o plano de operacionalização deveria se preocupar em capacitar o efetivo estatal, em melhorar as condições dentro dos presídios, reduzir o caos dentro dos estabelecimentos, dar oportunidades para os egressos.
É de se recordar, diante deste cenário, o incidente em Manaus- Amazonas, onde facções de dois estabelecimentos diferentes que comandam o sistema prisional, organizaram motins, resultando em 60 mortos e em 184 detentos fugitivos. Mas claro, esse fato não é uma situação isolada, já aconteceram situações parecidas73 como essas em outros estabelecimentos, porém, o que chama atenção é que justamente que dias após esse fato, o plano de 2017, acima citado, foi elaborado. Aparentemente, quem elaborou o plano de segurança, não aprendeu com os fatos daquela época, uma vez que, diante da situação dos presídios, do caos instaurado, das recomendações da própria ONU, que, diga-se de passagem, já havia visitado o mesmo presídio em 2015, através do seu subcomitê, e denunciou superlotação, violência, impunidade e péssimas condições nas quais os detentos eram submetidos, seria evidente que piorar a situação dos presídios com mais pessoas lá dentro e penas mais graves, não iria resolver.
4.4. A execução da pena e os estudos criminológicos
Com o caminhar da história da humanidade as penas e o sistema de execução penal sofreram profundas mudanças, a principal delas, respeitada em boa parte do mundo, ao menos na teoria, diz respeito a concretude de direitos humanos, preservando a dignidade humana, a vida, o mínimo necessário para que um ser humano seja reconhecido como pessoa.
Mas, como mencionado, essa ideologia é um tanto quanto utópica, principalmente na realidade do Brasil, com superlotação nos presídios, desídia dos estados em promover políticas de segurança e integração social, a demora de julgamento dos processos, o que colabora com o encarceramento excessivo, pois estima-se que ao menos 32% da massa carcerária é de presos que ainda aguardam julgamento, além, por certo, das condições que essas pessoas vivem dentro dos presídios, submetidas ao comando de facções, controle dos próprios presos, que por muitas vezes, decidem quem vive e quem morre lá dentro.
Por certo, do lado de fora das grades, vemos uma população cada vez mais empenhada em um discurso de desprezo pelas normas de direitos fundamentais, por direitos subjetivos dos presos, pelo que fora estabelecido pelo Direito Constitucional e que deve ser respeitado por todos os setores da sociedade.
Por essa razão, se faz cada mais necessário estabelecer regras e princípios que norteiem o cumprimento da pena, que traga segurança para o condenado e que ao mesmo tempo, traga respostas para uma população inquieta. Salienta-se que proteger o condenado com o fim de ressocializar e lhe dar oportunidades, não significa encher de regalias e benefícios, significa que diante de um ato criminoso, não só pela definição legal de crime como fato típico, antijurídico e culpável, mas também pela problemática dos atos praticados e o reflexo na sociedade, deve-se ofertar a chance de uma reabilitação, e não é em um sistema criminal cruel como o brasileiro, que este objetivo será alcançado.
Um dos maiores estudiosos sobre o tema da execução penal e a interação com os saberes criminológicos, Alvino Augusto de Sá, relatava que é sim possível a ressocialização, não ela pura e simples, mas sim, adicionada de um diálogo e de reintegração social. Alvino Augusto não é abolicionista, mas reconhece que a realidade do cárcere é completamente distante do que seria ideal para uma política de prevenção/repressão ao crime74
Por certo, a execução penal tem o objetivo de efetivar as disposições da sentença, da decisão criminal, e para isso, classifica-se o condenado segundo seus antecedentes e sua personalidade, orientando, assim, a individualização da pena. Uma comissão técnica de classificação será designada para esse estudo, seja para presos provisórios, seja para os definitivamente condenados. Essa Comissão é composta, no mínimo, por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social, além de ser presidida pelo diretor do estabelecimento e deverá avaliar a personalidade do agente, podendo entrevistar pessoas, requisitar dados do condenado a outros estabelecimentos e repartições e realizar outras diligências e quaisquer exames necessários.
Essa classificação dos presos não é apenas uma norma da Lei de Execuções Penais, é uma norma constitucional, prevista no artigo 5, sobre individualização da pena e deve ser obedecida. A execução de uma pena não pode ser igual para todos e nunca será, pois cada pessoa, por mais cruel que tenha sido o crime cometido, receberá a pena de uma forma diferente.
São analisadas as condutas anteriores, o comportamento social, o crime cometido, as razões, a forma e, o objetivo principal, além de assegurar a individualidade, é estabelecer uma meta de ressocialização, de progressão de regime, conversões de pena, auxiliando no cumprimento das penas privativas de liberdade e restritivas de direito.
É cediço que desde os primórdios dos estudos criminológicos tenta-se explicar a personalidade, a conduta, do criminoso, traçando, muitas vezes, o perfil pela aparência, por métricas do rosto (Lombroso fez muito técnica), atribuindo, até mesmo antes do período científico, o cometimento do crime a fisionomia do indivíduo. O que se sabe é que não é apenas o perfil pessoal do indivíduo que resulta na conduta criminosa, por isso outras teorias começaram a considerar o contexto social, a interação das pessoas com outras- através de grupos culturais, o aprendizado do crime, dentre outras. E da mesma forma que é importante individualizar o motivo, a forma e o contexto de determinado crime, também é importante personalizar a pena e a forma de cumprimento de determinado criminoso, até mesmo, para que ele não fique mais ainda inserido no contexto criminal.
Em relação ao exame criminológico, importante mencionar que após alterações legislativas, ele passa a ser obrigatório somente para os indivíduos condenados a uma pena privativa de liberdade em regime fechado, se for o caso de ser estabelecido um regime semiaberto, será facultativo. Em outras situações é necessário que o juiz determine sua feitura, cabendo apenas em situações necessárias e imprescindíveis.
Atenta-se que o trabalho da Comissão Técnica não é apenas individualizar a pena de maneira inicial, estabelecendo onde será cumprida, em que condições, qual melhor direcionamento do preso etc. O trabalho vai além, pois muito se discute da necessidade de um parecer da Comissão para se estabelecer um mérito objetivo nos critérios de progressão de regime e o livramento condicional.
Outro ponto que merece ser observado é que segundo a lei, a realização dos exames de classificação deveriam ocorrer em estabelecimentos específicos de observação, porém, no Brasil ainda não foram implantados. O que leva, novamente, a um debate sobre a qualidade da lei versus a realidade. Pois bem, foi estudado até aqui, que boa parte dos estudos criminológicos e da política criminal dão base e fundamento para elaboração das leis pelo legislativo e, como se vê, de forma acertada, ficou estabelecido, seguindo os ditames constitucionais, um plano de individualização, recuperação e reinserção, mas tudo isso se torna impossível e utópico quando observa-se a prática.
Ademais, a própria Lei de Execuções, seguindo teorias da criminologia, como por exemplo a Teoria da Associação Diferencial, encabeçada por Edwin Sutherland, que explicita que o comportamento criminoso é resultado de um aprendizado, preza pela separação dos presos provisórios dos efetivamente condenados, assim como, também determina a separação dos presos primários dos reincidentes, tentando evitar uma possível influência do comportamento.
A realidade é que os presídios brasileiros não acompanham a Lei de Execuções Penais. Por melhor que fosse a sua redação, as ideias, por melhor que seja o fundamento criminológico, a política pública, na prática, a realidade é muito distante da teoria. O que vemos, como já citado aqui, são presos separados pela quantidade de pena, pelo tipo de crime cometido, pouco obedecendo o que a lei determina e pior, ofendendo a própria Constituição da República, quando não individualiza e mantém o sistema carcerário fadado ao desastre.
4.5. A política criminal e a criminologia no direito penal e processual
O Direito penal é uma ciência de repressão social ao crime, servindo de base para punição do criminoso, como resposta ao mal causado. O art. 59. do Código Penal é a base de toda dosimetria da pena, abraçando o princípio da individualização da pena, que será formalizado pelo Processo penal.
No art. 59. o juiz deve analisar a culpabilidade, os antecedentes, à conduta social, a personalidade do agente, aos motivos, as circunstâncias e as consequências do crime, além do comportamento da vítima, estabelecendo uma resposta equilibrada pelo crime causado. Isso não é apenas a lei penal. O art. 59. é reflexo dos estudos criminológicos, que permitem que o magistrado identifique a real causa da conduta delituosa e os motivos que levaram à sua prática.
Dessa forma, diante do estudo do criminoso, é possível que o poder judiciário decida individualmente pela aplicação de uma pena ou por uma medida de segurança. Ademais, o comportamento da vítima também tem um peso no estudo da individualização da pena, exemplo disso é o fato de uma provocação injusta ou uma retorsão imediata ter reflexos diretos na aplicação da pena e no crime.
Após a aplicação da pena de maneira correta e individualizada, também é necessária a execução da pena de maneira acertada, pois, se o objetivo é ressocializar o criminoso, nada mais justo do que dar meios para que isso ocorra. A LEP faz previsão de estudos do comportamento criminoso através de uma Comissão Técnica de Classificação, que elaborará programas de individualização da pena, específicos para cada condenado ou para presos provisórios. Além disso, cada preso passará por exames criminológicos para sua classificação.
Por outro lado, garante assistência ao preso, para prevenir novos crimes e orientar o indivíduo ao retorno social. É certo que a partir do momento em que o indivíduo ingressa no sistema carcerário, todo seu comportamento passa, teoricamente, a ser estudado, assim como as medidas que devem ser tomadas para que ele possa ser reintegrado. A criminologia atua também neste ponto, pois também estuda o comportamento social e sua maneira de lidar com o reinserido.
Já a política criminal atua dentro das penitenciárias, para que a passagem do criminoso pelo sistema seja efetiva, e que a pena cumpra seu objetivo de prevenir a prática de novos crimes. É através de estratégias, estatísticas e planos, que a política criminal procura reintegrar o egresso e avaliar a sensação de segurança da sociedade diante da liberdade daquele indivíduo.75
As duas ciências devem atuar conjuntamente dando base para que o Estado possa aplicar uma política criminal, com fulcro em prevenção e redução dos crimes em determinados espaços geográficos. A politica criminal se preocupa com a estratagema do crime, com as suas circunstâncias e a partir daí elaborará um plano de prevenção efetivo, e a criminologia irá fornecer substrato para esses estudos, através dos seus objetos: o crime, o criminoso, a vítima e o controle social.
Mas, olhando firmemente para a segurança pública em si, o Estado possui a função de garantir a prevenção do crime, fornecendo um sistema eficiente. É certo que a redução do números de crimes se mostra pelas políticas e cooperações das áreas de segurança pública, que foram completamente direcionadas para fortalecer ações positivas no combate ao crime. Além disso, estudos demonstram áreas de vulnerabilidade, que precisam de uma maior atenção estatal, onde a população é mais ou menos propícia à criminalidade, por questões regionais, pobreza, miséria, moradia.
4.6. Criminalidade em números
No Brasil, são realizadas pesquisas anuais para fazer a análise da criminalidade em números. O instituto responsável é o IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, que em colaboração com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP e Instituto Jones dos Santos Neves – USN, realizou o Atlas da Violência, do ano de 2021.
Os dados desta pesquisa são coletados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e pelo Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN), órgãos do Ministério da Saúde. Em regra, registrou-se um aumento nos números das mortes violentas por causas indeterminadas, em 2019. Já pelo SINAN, os estudos demonstram que o principal alvo foram a população LGBTQI+ e as pessoas com deficiências.
Nessas pesquisas são levados em consideração quatro grandes pontos: o primeiro deles, é a campanha armamentista que vem sendo desenvolvida pelo governo federal desde 2019, pois, a facilitação ao acesso das armas da população – o que pode aumentar o índice de crimes passionais e interpessoais – também pode resultar no mais fácil acesso de criminosos à armas de fogo, já que há uma estreita relação entre o mercado legal e o ilegal de armas, impossibilitando o rastreamento destes objetos. O segundo ponto é o recrudescimento da violência de campo, que tem como maiores vítimas os índios, os sem teto, os assentados e a liderança agrária. Já o terceiro, faz uma análise da violência policial, diante da ausência de mecanismos institucionais de controle, fazendo uso da força, vitimizando não só civis como os próprios policiais. O quarto e último ponto diz respeito ao risco de politização das organizações de segurança pública, principalmente com a Polícia Militar76
O Atlas da violência 2021 revelou que a taxa de homicídios em todos os estados brasileiros apresentou queda, salvo o estado do Amazonas, que desde 2018 apresenta um aumento no percentual. Porém, ressalta que houve um aumento nos registros de mortes violentas por causa indeterminada, que são aquelas que não é possível identificar a motivação, que saltou de 12.310 para 16.648. Essas mortes podem ter sido provocadas por agressões, suicídios, assassinatos ou acidentes, mas entram como indefinidas e faz com que o números de homicídios diminua77
No Monitor da Violência, contabilizaram-se 41.069 mil assassinatos no país durante o ano, um número 7% menor do que o ano de 2019. Esse valor quantitativo está de acordo com o Monitor de Violência, parceiro do site de notícias do G1 e do Núcleo de Violência da Universidade de São Paulo, em conjunto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo os especialistas essa redução no números de assassinatos está relacionada com as políticas públicas de teor social e de segurança, com a redução do número de jovens na população brasileira e com o controle dos governos em relação aos criminosos.78
Colocando em números outros aspectos da criminalidade, sabemos que os crimes contra o patrimônio, sejam tentados ou consumados, são as modalidades que mais prendem no Brasil. São 278.809 pessoas encarceradas por causa deles, onde o roubo qualificado atinge 102.068 detentos dentre o primeiro patamar. Na lei de drogas, são 176.691 pessoas presas, e no caso de crime contra pessoas, com destaque para os homicídios qualificados, que batem 84.686 presos, sobressai um total de 37.907 criminosos.
Segundo a pesquisa, os estados da federação que mais possuem pessoas presas é São Paulo (33,03%), Minas Gerais (9,40%) e Paraná (7,11%) , conforme levantamento realizado pelo DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional.79
Segundo a reportagem do Grupo Globo, no Jornal G1, noticiada online no dia 22/02/2022, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos de violência da USP, o Amazonas se tornou o estado com maior taxa de mortes violentas no país, no ano de 2021. Na outra ponta da lista está São Paulo, com 6,6.80
Essa questão do Amazonas tem recebido maior evidência diante do aumento da pirataria praticada na fronteira, pelo tráfico de drogas na região e pelos crimes ambientais, como garimpos ilegais, desmatamento e grilagem. Se de um lado grupos criminosos tentam reconquistar territórios para praticar o tráfico de drogas, de outro, cresce os homicídios em regiões de desmatamento por causa do conflito direto da população – principalmente indígena, com os empreteiros.
Ainda de acordo com a pesquisa, os estados do Norte e do Nordeste estão no topo da lista, mas, não necessariamente por serem mais violentos, e sim, pela contagem ser atribuída na relação de assassinatos por habitante. Após o estado do Amazonas, aparece o estado do Ceará, com 35,7%, Amapá, com 35,6% e Pernambuco, com 34,8%. O curioso é que a Bahia, por exemplo, em números absolutos, teve mais homicídios do que qualquer outro estado do país, com 5.099 vítimas de assassinato, mas na lista, em percentual, aparece logo após o Estado de Pernambuco.81
Entre os estados menos violentos, aparece Santa Catarina, com 9,2% e São Paulo, como já mencionado. O Distrito Federal e Minas Gerais também aparecem no fim da lista, com 10,5% e 11.3% respectivamente.
É certo que em 2021 os números caíram de maneira significativa, mas ainda são alarmantes. O número de homicídios foi o menor, desde 2007, por exemplo. Mas e os motivos dessa queda, quais são?
Estudiosos atribuem a um conjunto de fatores82:
Profissionalização do mercado de drogas: os próprios traficantes encontraram uma forma de conviver e regulamentar a relação entre eles, reduzindo o número de conflitos fatais.
Maior controle e influência dos governos sobre os criminosos: como parte das lideranças dos grandes comandos criminosos está dentro do sistema penitenciário, as ordem por eles dadas passaram a objeto de constante vigilância das autoridades, o que obriga um comando mais diplomático e lucrativo por parte das gangues.
Apaziguamento de conflito entre facções
Criação de programas de focalização e outras políticas públicas: vários estados adotaram um programa de redução de homicídios nos territórios. Em Pernambuco, o “pacto pela vida”, no Espírito Santo, o “estado presente”, no Ceará, o “ Ceará pacífico”, são exemplos que buscaram integrar ações policiais e medidas de caráter preventivo. Além disso, outros mecanismos, focados em inteligencia policial e investigação também foram implementados.
Criação do SUSP - Sistema Único de Segurança Pública e mudanças nas regras de repasses: o SUSP é responsável pela integração e eficiência das instituições de Segurança Pública.
Em suma, percebe-se que não apenas o Estado encontrou uma forma de introduzir políticas públicas, como também, conseguiu se fazer presente, mesmo que de forma mínima, dentro dos presídios brasileiros. Ainda há uma grande desordem, visto que comandos de gangues, como por exemplo o PCC ou o Comando Vermelho, acontecem de dentro dos presídios, porém, um passo de cada vez. Ter uma queda no número de homicídios já é uma resposta significativa, mas é preciso ir além: não há mais como permitir que os próprios criminosos comandem dentro e fora dos estabelecimentos penais,
É preciso que o Estado evolua na forma de punir, que busque novos mecanismos de controle da criminalidade, que invista na população menos favorecida economicamente, principalmente em oportunidades de emprego, de melhoria na condição de vida dessas pessoas. Faz-se necessário bater de frente com o crime organizado, com o tráfico de entorpecentes, combater os crimes cibernéticos que estão cada vez mais evidentes nos tempos atuais. Há muito trabalho pela frente, a sociedade encontra-se em constante evolução, e assim como ela, deve o direito penal, a criminologia e a política criminal procurar evoluir para que o combate a criminalidade seja cada mais efetivo, e, se for o caso, a ressocialização esteja cada vez mais presente.
4.7. Criminalidade e política criminal de drogas
Dentre os inúmeros temas que poderiam ser escolhidos para exemplificar o que fora tratado durante todo o trabalho, será escolhido o tema de drogas para exemplificar a linha de raciocínio das políticas públicas e da criminalidade, e a relação delas com a resposta do crime, com a ação do Estado e as condutas tomadas pelo legislador para realizar a política de prevenção em âmbito legislativo.
Nem sempre o uso de drogas foi considerado proibitivo pela legislação. A política criminal brasileira passou por um processo de repressão a partir do ingresso do país no modelo internacional de controle de drogas, iniciado pela Convenção de Genebra em 1936, que regulamentava a produção, tráfico e consumo, proibindo, inclusive, diversas substâncias consideradas entorpecentes.
Com o Código Penal de 1940, houve uma tentativa de preservar o que ficou estabelecido em Genebra, estabelecendo regras gerais de interpretação e aplicação das legislações extrapenais. E assim, consolidaram-se diversas leis sobre drogas tratando o tema de maneira diferenciada.
Já nessa época, fala-se em conduta desviante, subculturas e identificação de usuários, criando um esteriótipo social e moral do consumidor e do vendedor da droga. Após o período militar e a promulgação da Convenção Única sobre Entorpecentes, subscrito por Castelo Branco, o Brasil embarcou na jornada de combate as drogas de forma enérgica.83
Porém, ter uma legislação que criminalizasse a conduta de vender, portar, possuir drogas, não foi suficiente para afastar o crescimento do mercado no Estado. O consumo de drogas ganhou cada vez mais amplitude, cada vez mais as pessoas consumem, compram, vendem, produzem. Para os três poderem que compõe o Estado, ficou claro que apenas criminalizar essas condutas estava longe de ser o suficiente. Era preciso mais, preciso ação do estado de forma direta na prevenção, atingindo a população mais vulnerável, investindo em educação e conhecimento.
Além disso, passa-se a adotar um discurso diferenciador entre os próprios sujeitos envolvidos com drogas. Ficou evidente que havia o traficante habitual, contumaz, que fomentava a violência do tráfico e havia o consumidor, taxado muitas vezes como um doente, dependente e que merecia uma posição de tratamento.
Se a legislação da década de sessenta considerava o esteriótipo do usuário dependente e do traficante delinquente, passou-se a prever a necessidade de medidas preventivas e terapêuticas, bem como a distinção do apenamento entre o tráfico e o uso. E neste contexto que surge a lei 6368/76.
Ao mesmo tempo, a Constituição de 88, em seu art. 5, passou a prevê disposições sobre o combate as drogas, equiparando, inclusive, a crimes hediondos, estabelecendo um tratamento diferenciado, o que impede a concessão de anistia e graça, por exemplo.
Toda essa explanação histórica foi para demonstrar o quanto a política de drogas evoluiu até o momento, contrapondo ao fato de, na prática, a questão do tráfico de entorpecentes ainda ser fundamento de grandes discussões doutrinárias e criminológicas, no que tange ao seu combate e financiamento.
A lei em vigor que trata sobre o tráfico ilícito de entorpecentes, é a lei 11.343/06, que trouxe como eixo principal uma sólida política de prevenção ao uso, assistência e reinserção social, eliminação da pena de prisão do usuário, um rigor punitivo do traficante e do financiador, mantendo a distinção entre o traficante profissional e ocasional.84
O que se percebe é que a nova lei fez mais do que apenas manter ou criar condutas típicas de crime, ela trouxe um grau de atenção especial para o usuário e dependentes, com planos de reinserção social, redução de riscos e conscientização dos danos causados à saúde, com uma descarcerização, porém, mantendo seu viés proibicionista.
O fato do Estado trazer a não prisão para o usuário, não significa uma abstenção do estado, e sim, que não se aplica pena carcerária, porém, conserva-se mecanismos de controle. Tanto é que o porte de drogas para uso próprio, previsto no art. 28. da lei 11.343/06 é apenado com advertência sobre os efeitos da droga, com prestação de serviços à comunidade ou com medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Mas, o que toda essa explicação tem de relação com este presente trabalho? Na realidade, apesar de toda política prevencionista proposta pela lei, a mesma é ineficiente. Por um lado, continua punindo o usuário, mesmo que com penas leves, mas ainda, com uma postura extremamente conservadora, quando na realidade, boa parte da sociedade não reprova ou não tende a reprovar o usuário, principalmente nos grupos mais jovens da sociedade. Por outro ângulo, pune severamente o traficante, que com certa vênia, mesmo sendo primário, fica proibido de ter benefícios em seu favor, como por exemplo, substituição das penas privativas de liberdades por penas restritivas de direito.
Como já fora mencionado aqui, o trabalho do Estado não é apenas punir, é criar oportunidades para que as pessoas se afastem do desvio. Mas, e as pessoas que moram nas periferias, que não possuem oportunidades e que muitas vezes não tem opção se não realizar um serviço para o traficante do morro? Todos sabemos que no mundo das drogas, principalmente quando falamos dos traficantes, aviõezinhos , informantes, só há uma maneira de sair.
E diante de tudo que já fora exposto, resta claro que o Estado precisa é de uma política pública voltada para a prevenção das drogas, e não apenas do seu uso, mas sim, prevenir que o jovem que mora na periferia, muitas vezes ainda criança, envolva-se com o crime. É necessário criar oportunidades, educação, escolas, lazer, para que o adolescente ou a criança não veja o tráfico como a única solução.