1.Introdução
Hodiernamente, a indenização por dano moral no Brasil encontra ampla aceitação. Com o advento da Constituição Federal de 1988 pacificou-se a questão da aceitabilidade da tese de reparação integral da ofensa moral, pois, de forma expressa, nossa Lei Maior (art. 5º, incisos V e X) alçou a status constitucional a proteção aos bens imateriais.
Há que se dizer, contudo, que, anteriormente à Constituição de 88, havia uma intensa disputa doutrinária e jurisprudencial quanto à aceitação da reparabilidade do dano moral individual. A doutrina, de uma forma geral, sempre demonstrou simpatia por esta concepção, ao contrário da jurisprudência, que, durante muito tempo, se mostrou contrária à idéia.
Mesmo antes da promulgação da atual Carta Magna, diversas leis esparsas já previam as indenizações pelos danos extrapatrimoniais causados (verbi gratia: Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4117/62); Lei de Imprensa (Lei 5250/67); Código Eleitoral (Lei 4737/65) e o precursor Decreto 2681 de 1912 que regulava as atividades das estradas de ferro).
Apesar disso,
(...) seria oportuno advertir, que antes da Constituição de 1988, não se falava em dano moral coletivo, bem como não era aceito a tese de que as pessoas jurídicas também podiam ser agentes passivos, nas indenizações por danos morais, em que pese a pessoa jurídica contar com expressa previsão em seu favor em leis anteriores, tais como na Lei de Imprensa (Lei 5.250/67, art. 49, I c/c art. 16, II e IV), ou no Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62, art. 99 do texto original). [02]
Não bastasse a límpida previsão constitucional (art. 5º, incisos V e X), ao fixar o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos maiores da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III), a Constituição de 88 colocou o homem no vértice do ordenamento jurídico e, em conseqüência disso, "temos hoje o que se pode ser chamado de direito subjetivo constitucional à dignidade, a qual deu ao dano moral uma nova feição diante do fator de ser ela a essência de todos os direitos personalíssimos" [03].
Assim, conforme aduz Nehemias Domingos de Melo, "a constitucionalização do dano moral indiscutivelmente inaugurou uma nova fase no direito brasileiro, porquanto institucionalizou a obrigação de compensar a dor ou a humilhação sofrida pelo indivíduo em decorrência da prática de ato ilícito" [04].
Nesse contexto, pode-se afirmar que o fenômeno da globalização, a modernização da sociedade e os novos valores insculpidos na Carta Maior impuseram uma intensa modificação no modo de pensar o Direito (fenômeno da repersonalização [05]), que, por sua vez, passou a dar mais importância à coletividade que ao indivíduo em si. Em conseqüência disto, as normas de ordem pública – que traduzem interesses gerais e comuns na busca do bem social – ganharam relevo e, dentro desse novo panorama, desenvolveu-se o direito à compensação aos danos morais coletivos [06].
2.Visão doutrinária e jurisprudencial
Neste ponto, avulta-se necessário enfocar que, originariamente, a Lei 7347/85 (Lei da Ação Civil Pública) limitava-se a fazer referência à responsabilidade por danos. Todavia, a Lei 8884/94 deu nova redação ao artigo 1º da Lei da Ação Civil Pública, introduzindo os adjetivos morais e patrimoniais ao mencionado preceptivo.
Como facilmente se nota, esta alteração legislativa guardou perfeita harmonia normativa com o perfil constitucional relativo ao dano moral, porquanto a Constituição não fez nenhuma distinção entre danos morais individuais e coletivos, apesar de que, para o intangível mestre José dos Santos Carvalho Filho, "a redação anterior, referindo-se a danos, já ensejaria a interpretação de que o termo abrangeria também o dano moral. Não obstante, para dirimir eventuais questionamentos, decidiu-se inserir expressamente no dispositivo a qualificação morais ao substantivo danos" [07].
Prosseguindo seu distinto raciocínio sobre a vexata quaestio, o mencionado jurista ensina:
(...) que o dano moral se caracteriza pela ofensa a padrões éticos dos indivíduos, no caso em foco dos indivíduos componentes dos grupos sociais protegidos. Sendo assim, pode-se afirmar que não apenas o indivíduo, isoladamente, é dotado de determinado padrão ético. Os grupos sociais, titulares de direitos transindividuais, também o são. Assim, se for causado dano moral a um desses grupos pela violação a interesses coletivos ou difusos, presente estará o interesse de agir para a propositura da ação civil pública.
Tribunais e doutrinadores (...) têm avançado na aplicação da norma condenatória que permite a obrigação de indenizar no caso de dano moral coletivo. Na Justiça do Trabalho, por exemplo, há decisões que adotaram esse entendimento contra empregadores que se prevaleciam dessa condição para obter vantagens ilícitas à custa dos empregados [08] ou, o que tem sido mais comum, que mantêm empregados em situação análoga à de escravos – o trabalho-escravo, que, sem dúvida, causa ofensa à dignidade de toda a sociedade. Por sua precisão, vale a pena ver os termos da ementa do seguinte acórdão:
DANO MORAL COLETIVO – POSSIBILIDADE – Uma vez configurado que a ré violou direito transindividual de ordem coletiva, infringindo normas de ordem pública que regem a saúde, segurança, higiene e meio ambiente do trabalho e do trabalhador, é devida a indenização por dano moral coletivo, pois tal atitude da ré abala o sentimento de dignidade, falta de apreço e consideração, tendo reflexos na coletividade e causando grandes prejuízos à sociedade. [09]
Na doutrina, vários estudiosos têm advogado a necessidade de aplicação da norma que prevê o dano moral coletivo. Em nosso entender, as dificuldades na configuração do dano moral quando há ofensa a interesses coletivos e difusos devem ser cada vez mais mitigadas, de forma a ser imposta a obrigação indenizatória como verdadeiro fator de exemplaridade e de respeito aos grupos sociais, sabido que a ofensa à dignidade destes tem talvez maior gravidade que as agressões individuais. Daí ser correta a afirmação de que o dano moral coletivo é a injusta lesão na esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. [10][11]
Delineados estes contornos iniciais sobre o dever de indenizar os danos morais coletivos, insta perceber que a ótica civil-constitucional dos institutos impõe que, sendo constatada a prática de agressões ao meio ambiente [12] (direito fundamental de terceira geração [13]) – bem difuso de uso comum do povo (art. 225, caput, da CF/88) – deverá ser imposto ao agressor o inarredável dever de indenizar os danos extrapatrimoniais (difusos) causados à sociedade.
Nessa quadra, é indene de dúvidas que o respeito à força normativa da constituição [14] está a reclamar a indenização dos danos ambientais (extrapatrimoniais) coletivos causados por todo aquele que violar o dever (constitucionalmente imposto) de preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, provocando, por exemplo, intensas queimadas para a limpeza do solo, o preparo do plantio e a colheita da cana-de-açúcar.
Isto porque, pela lesão provocada a interesse ou direito difuso, o agressor do meio ambiente – sujeito passivo da ação civil pública – deverá ser condenado ao pagamento de uma determinada quantia em dinheiro a título de indenização [15] pelos danos praticados contra o bem coletivo e pela dor e o desgosto experimentado por todos os cidadãos que se encontram expostos às lesões (patrimoniais e extrapatrimoniais) ambientais advindas da conduta infratora.
Encampando a linha intelectiva aqui defendida, ensina Carlos Alberto Bittar Filho:
(...) O dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial. Tal como se dá na seara do dano moral individual, aqui também não há que se cogitar de prova da culpa, devendo-se responsabilizar o agente pelo simples fato da violação (damnum in re ipsa). [16]
No mesmo caminho da doutrina supracitada, em abalizado comentário sobre o dever de indenizar os danos morais coletivos, pondera Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho:
O Direito se preocupou durante séculos com os conflitos intersubjetivos. A sociedade de massas, a complexidade das relações econômicas e sociais, a percepção da existência de outros bens jurídicos vitais para a existência humana, deslocaram a preocupação jurídica do setor privado para o setor público; do interesse individual para o interesse difuso ou coletivo; do dano individual para o dano difuso ou coletivo. Se o dano individual ocupou tanto e tão profundamente o Direito, o que dizer do dano que atinge um número considerável de pessoas? É natural que o Direito se volte, agora, para elucidar as intrincadas relações coletivas e difusas e especialmente à reparação de um dano que tenha esse caráter. [17]
Vale destacar, ainda, a manifestação de André de Carvalho Ramos que, ao analisar o assunto em tela, assim dissertou:
(...) é preciso sempre enfatizar o imenso dano moral coletivo causado pelas agressões aos interesses transindividuais. Afeta-se a boa-imagem da proteção legal a estes direitos e afeta-se a tranqüilidade do cidadão, que se vê em verdadeira selva, onde a lei do mais forte impera. (...) Tal intranqüilidade e sentimento de desapreço gerado pelos danos coletivos, justamente por serem indivisíveis, acarretam lesão moral que também deve ser reparada coletivamente. Ou será que alguém duvida que o cidadão brasileiro, a cada notícia de lesão a seus direitos não se vê desprestigiado e ofendido no seu sentimento de pertencer a uma comunidade séria, onde as leis são cumpridas? A expressão popular ‘o Brasil é assim mesmo’ deveria sensibilizar todos os operadores do Direito sobre a urgência na reparação do dano moral coletivo. [18]
Abordando o tema, Gabriel Stiglitz, notável jurista argentino, acentua que a evolução dos sistemas modernos de responsabilidade civil encontra-se fundamentada em concepções solidárias e humanistas, proclamando:
a) la nueva vigencia de los factores objetivos de atribuición de responsabilidad (teoria del riesgo, deber de garantia etc.); b) la función preventiva del Derecho de Daños; c) la total resarcibilidad del daño moral; d) la extensión del derecho a reparación, en favor de los llamados intereses simples, incluidos los supraindividuais [19].
Nesse passo, há de se ressaltar que, modernamente, tornou-se necessária e significativa para a preservação da ordem jurídica justa, da harmonia social e da efetiva promoção da justiça, a reação do Direito em face de determinadas condutas que vêm a configurar lesão a interesses: a) juridicamente protegidos; b) de caráter extrapatrimonial; c) titularizados por uma determinada coletividade. Ou seja: adquiriu relevo jurídico, no âmbito da responsabilidade civil, a reparação dos danos – ambientais – morais coletivos (em sentido lato). [20]
Captando essa noção, André de Carvalho Ramos [21] registra que o entendimento jurisprudencial de aceitação do dano moral em relação a pessoas jurídicas "é o primeiro passo para que se aceite a reparabilidade do dano moral em face de uma coletividade". E arremata: "o ponto chave para a aceitação do chamado dano moral coletivo está na ampliação de seu conceito, deixando de ser o dano moral um equivalente da dor psíquica, que seria exclusividade de pessoas físicas".
Assim, torna-se imperativa a reparabilidade do dano moral em face da coletividade, que apesar de ente despersonalizado, possui valores morais e um patrimônio ideal a ser juridicamente tutelado. Ora, se aceita-se a reparabilidade do dano moral em face das pessoas jurídicas, quanto a honra objetiva, da mesma forma, deverá ser aceita tal tese em face da coletividade (mesmo porque a Constituição não fez nenhuma restrição neste aspecto).
De mais a mais, repise-se que a partir da Constituição da República de 1988 descortinou-se um novo horizonte quanto à tutela dos danos morais (particularmente no que tange à sua feição coletiva), face à adoção do princípio basilar da reparação integral (art. 5º, incisos V e X, CF/88) e diante do direcionamento do amparo jurídico à esfera dos interesses transindividuais, valorizando-se, pois, destacadamente, os direitos desta natureza (a exemplo dos artigos 6º, 7º, 194, 196, 205, 215, 220, 225 e 227) e os instrumentos jurídicos destinados a protegê-los (art. 5º, LXX e LXXIII, e art. 129, III).
Com isso, a tutela do dano moral coletivo passou a ter, explícita e indiscutivelmente, fundamento constitucional de validade. Destaque-se, por oportuno, a ampliação do objeto da ação popular manejada pelo cidadão, que, em decorrência do referido artigo 5º, LXXIII, da Lei Maior, passou a visar a anulação de ato lesivo (e a conseqüente reparação por perdas e danos – art. 11 da Lei 4717/65) ao patrimônio público e, também, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Daí a pertinência dessa ação no campo do dano moral coletivo, conforme destacado por Carlos Alberto Bittar Filho, ao citar Hely Lopes Meirelles:
Embora os casos mais freqüentes de lesão se refiram ao dano pecuniário, a lesividade a que alude o texto constitucional tanto abrange o patrimônio material quanto o moral, o estético, o espiritual, o histórico. Na verdade, tanto é lesiva ao patrimônio público a alienação de um imóvel por preço vil, realizada por favoritismo, quanto a destruição de um recanto ou de objetos sem valor econômico, mas de alto valor histórico, cultural, ecológico ou artístico para a coletividade local. [22]
Ainda dentro deste enfoque, vê-se que o artigo 129, inciso III, do Pacto Social de 1988, ao conferir legitimação qualificada ao Ministério Público para o manuseio da ação civil pública, também abriu o leque do seu objeto para qualquer interesse difuso e coletivo, além daqueles referentes ao patrimônio público e social e ao meio ambiente. Assim, a ação civil pública tornou-se um poderoso instrumento de alçada constitucional apto a ser utilizado pelo Parquet na busca da proteção irrestrita de todo interesse de natureza transindividual, inclusive os de caráter moral.
Frise-se, mais uma vez, que a possibilidade jurídica do pedido de indenização por dano moral coletivo decorre de expressos dispositivos legais (art. 1º, caput, inciso I, da Lei 7347/85 e art. 6º, incisos VI e VII, da Lei 8078/90), assim redigidos (sem destaques na redação original):
Art. 1º da Lei 7347/85. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, AS AÇÕES DE RESPONSABILIDADE POR DANOS MORAIS e patrimoniais CAUSADOS: I – AO MEIO AMBIENTE.
Art. 6º da Lei 8078/90. São direitos básicos do consumidor: (...) VI – a efetiva proteção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos; (...) VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos (...).
Dessa forma, não se há de duvidar, enfim, que nos tempos atuais o reconhecimento e a efetiva reparação dos danos morais coletivos – na medida em que sanciona o ofensor (desestimulando novas lesões) e compensa os efeitos negativos decorrentes do desrespeito aos bens mais elevados do agrupamento social – constitui uma das formas de alicerçar o ideal de um Estado Constitucional e Democrático de Direito.
No embalo destas asserções, com distinta precisão, o Promotor de Justiça do Estado de São Paulo Luis Henrique Paccagnella dispara ser
Perfeitamente possível o reconhecimento do dano moral difuso ou coletivo, ao lado do dano "patrimonial" ou material.
De fato, como acentuam Leite, Dantas e Fernandes, "assim como o dano moral individual, também o coletivo é passível de reparação. Isto pode ser depreendido do próprio texto constitucional, no qual não se faz qualquer espécie de restrição que leve à conclusão de que somente a lesão ao patrimônio moral do indivíduo isoladamente considerado é que seria passível de ser reparado" [23].
De modo coerente com o pensamento constitucional, o legislador federal disciplinou o assunto na Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal 7.347/85, com a redação da Lei Federal 8.884/94) (...).
Em suma, inegável o caráter indenizável do dano moral, cumulativamente com o dano material, em tema de interesses difusos e coletivos. [24]
Dissertando especificamente sobre a posição legislativa e doutrinária em face do dano moral coletivo, Sérgio Augustin e Ângela Almeida ensinam que:
O dano moral coletivo encontra-se consagrado expressamente no ordenamento jurídico brasileiro. (...)
No campo doutrinário, em face da simplicidade com que o tema foi tratado legalmente, a par da ausência de modelo teórico próprio e sedimentado para atender aos conflitos envolvendo direitos transindividuais, fez-se necessário construir soluções que se utilizam, a um só tempo, de algumas noções e conceitos extraídos da responsabilidade civil e da perspectiva própria do direito penal.
(...).
LUIZ GUSTAVO GRANDINETTI CASTANHO DE CARVALHO [25], para justificar sua concepção sobre o dano moral coletivo, destaca os seguintes pontos sobre a matéria:
"1) Mostra-se inconveniente a separação rígida entre interesse público-pena e interesse privado-reparação (ressarcimento ou reintegração); 2) Quando se protege o interesse difuso, o que se está protegendo, em última instância, é o interesse publico; 3) Tal interesse público pode ser tutelado pelo modo clássico de tutela de interesses públicos, tipificando-se a conduta do agente causador do dano como crime e sancionando-a com uma pena criminal, mas pode ocorrer, por razões várias, que o ordenamento jurídico não tipifique tal conduta como crime, caso em que os instrumentos próprios para a proteção de interesses privados acabam assumindo nítida função substitutiva da sanção penal; 4) Deve-se admitir uma certa fungibilidade entre as funções sancionatória e reparatória em matéria de interesses difusos lesionados; 6) Com essa conformação e preocupação, surge o recém denominado dano moral coletivo, o qual deixa a concepção individualista, caracterizadora da responsabilidade civil, para assumir uma outra, mais socializada, preocupada com valores de uma determinada comunidade, e não apenas com o valor da pessoa individualizada."
XISTO TIAGO DE MEDEIROS NETO [26], depois de destacar o avanço legal relativamente à proteção aos interesses de essência moral (extrapatrimonial) e aos direitos coletivos lato sensu, registra:
"A ampliação dos danos passíveis de ressarcimento reflete-se destacadamente na abrangência da obrigação de reparar quaisquer lesões de índole extrapatrimonial, em especial as de natureza coletiva, aspecto que corresponde ao anseio justo, legítimo e necessário apresentado pela sociedade de nossos dias. Atualmente, tornaram-se necessárias e significativas, para a ordem e a harmonia social, a reação e a resposta do Direito em face de situações em que determinadas condutas vêm a configurar lesão a interesses juridicamente protegidos, de caráter extrapatrimonial, titularizados por uma determinada coletividade. Ou seja, adquiriu expressivo relevo jurídico, no âmbito da responsabilidade civil, a reparação do dano moral coletivo (em sentido lato)".
O autor supracitado defende que o conceito de dano moral coletivo não deve restringir-se ao sofrimento ou à dor pessoal, e sim ser compreendido como toda modificação desvaliosa do espírito coletivo, ou seja, a qualquer violação aos valores fundamentais compartilhados pela coletividade.
"Com efeito, toda vez em que se vislumbrar o ferimento a interesse moral (extrapatrimonial) de uma coletividade, configurar-se-á dano possível de reparação, tendo em vista o abalo, a repulsa, a indignação ou mesmo a diminuição da estima, infligidos e apreendidos em dimensão coletiva (por todos os membros), entre outros efeitos lesivos. Nesse passo, é imperioso que se apresente o dano como injusto e de real significância, usurpando a esfera jurídica de proteção à coletividade, em detrimento dos valores (interesses) fundamentais do seu acervo" [27].
No que concerne à destinação do dinheiro decorrente de condenação por dano moral coletivo, o mesmo autor observa:
"Na hipótese da reparação do dano moral coletivo ou difuso, o direcionamento da parcela pecuniária ao Fundo é de importância indiscutível, por apresentar-se a lesão, em essência, ainda mais fluida e dispersa no âmbito da coletividade. Além disso, tenha-se em conta que a reparação em dinheiro não visa a reconstituir um bem material passível de quantificação, e sim a oferecer compensação diante da lesão a bens de natureza imaterial sem equivalência econômica, e sancionamento exemplar ao ofensor, rendendo-se ensejo para se conferir destinação de proveito coletivo ao dinheiro recolhido" [28].
Assim, entre os doutrinadores predomina a idéia de que o dano moral coletivo cumpre, idealmente, além de seu caráter compensatório e punitivo, uma função eminentemente preventiva, de modo a garantir real e efetiva tutela ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, à ordem urbanística, às relações de consumo, enfim, a quaisquer outros bens que extrapolam o interesse individual. [29]
Seguindo a trilha de entendimento aqui esboçada, um dos maiores mestres em temas de Direito Ambiental, o Procurador de Justiça (aposentado) Édis Milaré, com a maestria que lhe é peculiar, professa que
(...) tem razão Morato Leite quando afirma que o dano ambiental tem uma conceituação ambivalente, por designar não só a lesão que recai sobre o patrimônio ambiental, que é comum à coletividade, mas igualmente por se referir ao dano – por intermédio do meio ambiente ou dano ricochete – a interesses pessoais, legitimando os lesados a uma reparação pelo prejuízo patrimonial ou extrapatrimonial sofrido. [30]
Segundo esse autor, o dano ambiental pode ser entendido "como toda lesão intolerável causada por qualquer ação humana (culposa ou não) ao meio ambiente, diretamente, como marcrobem de interesse da coletividade, em uma concepção totalizante, e indiretamente, a terceiros, tendo em vista interesses próprios e individualizáveis e que refletem no macrobem".
Isso significa que o dano ambiental, embora recaia diretamente sobre o ambiente e os recursos e elementos que o compõem, em prejuízo da coletividade, pode, em certos casos, refletir-se material ou moralmente, sobre o patrimônio, os interesses ou a saúde de uma determinada pessoa ou de um grupo de pessoas determinadas ou determináveis.
Dessarte pela conformação que o Direito dá ao dano ambiental, podemos distinguir: (i) o dano ambiental coletivo ou dano ambiental propriamente dito, causado ao meio ambiente globalmente considerado, em sua concepção difusa, como patrimônio coletivo; e (ii) o dano ambiental individual, que atinge pessoas, individualmente consideradas, através de sua integridade moral e/ou de seu patrimônio material particular. Aquele, quando cobrado, tem eventual indenização destinada a um Fundo, cujos recursos serão alocados à reconstituição dos bens lesados. Este, diversamente, dá ensejo à indenização dirigida à recomposição do prejuízo individual sofrido pelas vítimas.
A autonomia entre os danos sofridos por particulares em seus patrimônios pessoais e os danos ambientais propriamente ditos, decorrentes de uma mesma causa, foi reconhecida em decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo [31] (...). [32]
Ainda no mesmo sentido das asserções já consignadas, um dos maiores expoentes da história do Ministério Público do Estado de São Paulo, o respeitado professor Hugo Nigro Mazzilli, em doutrina assaz conhecida, também defende a reparabilidade dos danos morais coletivos em matéria ambiental, in ipsis litteris:
Originariamente, o objeto da LACP consistia na disciplina da ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Mas, como já anotamos a legislação subseqüente ampliou gradativamente o objeto da ação civil pública.
Diante, porém, das inevitáveis discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre se a ação civil pública da Lei n. 7.347/85 também alcançaria ou não os danos morais, o legislador resolveu explicitar a mens legis. A Lei n. 8.884/94 introduziu alteração segundo a qual passou a ficar expresso que a ação civil pública objetiva a responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados a quaisquer dos valores transindividuais de que cuida a lei. [33]
Insta enfatizar, de igual modo, os ensinamentos dos modernos civilistas Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, os quais, advogando a tese dos danos morais coletivos, observam que:
A evolução da sociedade, com a formação de uma consciência de cidadania, leva ao reconhecimento de que a tutela meramente individual não é suficiente para combater as macrolesões passíveis de ocorrência.
Há, por isso, uma gama de danos coletivos lato sensu que precisa ser tutelada através de um procedimento especial – a ação coletiva – mais adequado à sua natureza. [34]
Continuando o raciocínio, disparam os cultos magistrados baianos:
(...) a lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85), com as modificações impostas pela Lei n. 8.884/94, estabeleceu expressamente a possibilidade de reparação por danos morais a direitos difusos (...).
Excluída a idéia – tão difundida quanto errônea – de que o dano moral é a dor sofrida pela pessoa (a dor, em verdade, é apenas a conseqüência da lesão à esfera extrapatrimonial), o conceito de direitos da personalidade tem que ser ampliado para abarcar a previsão legal, tendo em vista inexistir uma personalidade jurídica coletiva difusa.
Assim sendo, o dano moral difuso tutelado pela previsão legal somente pode ser caracterizado como uma lesão ao direito de toda e qualquer pessoa (e não de um direito específico da personalidade).
A título de exemplo, poderíamos imaginar uma lesão difusa a integridade corporal de toda uma população com a poluição causada em um acidente ambiental ou violação à integridade psíquica, com o cerceio à liberdade de conhecimento e pensamento, com a destruição de bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
A limitação da legitimidade para ajuizamento de tais pretensões, bem como a circunstância de que os valores obtidos reverterão para fundos específicos de defesa de direitos difusos justifica socialmente tal exceção legal, ressaltando a importância constitucional, por exemplo, da defesa de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. [35]
No que tange à avaliação econômica dos danos morais coletivos, tal como se dá no dano moral individual, entendemos que esta deverá ser feita por arbitramento. Nessa esteira, esmiuçando os mais variados pormenores atinentes ao quantum debeatur, segue-se o irreparável pensar de Luis Henrique Paccagnella:
Para arbitramento de valor ao dano moral individual a jurisprudência construiu uma combinação de critérios, a saber: intensidade da culpa ou dolo; extensão do prejuízo; capacidade econômica e cultural do responsável; necessidade de ser desestimulada a reiteração da ilicitude.
Não há razão para maiores inovações dessa consolidada construção, no âmbito do dano moral ambiental. Cabe ao operador do Direito, portanto, sopesar no caso concreto: a extensão do prejuízo ambiental; a intensidade da responsabilidade pela ação ou omissão, inclusive pelo exame do proveito do agente com a degradação; a condição econômica e cultural do degradador; valor suficiente para prevenção de futuros danos ambientais.
No que toca à extensão do prejuízo ambiental, deve ser analisada a eventual reversibilidade, bem como, conforme o caso, eventual prejuízo moral interino. Quanto a esse último aspecto, portanto, possível a caracterização de dano moral ambiental interino. Isso na medida em que a demora da restauração ao patrimônio ambiental cause novo sofrimento coletivo (dano moral interino), que exceda o desgosto comunitário pela degradação em si (dano moral originário).
Quanto à extensão da responsabilidade pela ação ou omissão, o julgador deve adaptar as teorias individualistas ao critério legal da responsabilidade objetiva. Assim, ao invés de análise da intensidade da culpa ou dolo, deve ser examinada a intensidade do proveito com a degradação ambiental, bem como o tempo de duração e a complexidade da ação ou omissão.
Por fim, em seu estágio atual a jurisprudência vem entendendo que a reparação do dano moral, no âmbito individual, deve servir como instrumento de desestímulo a futuras reiterações de atos ilícitos, assumindo verdadeiro caráter "punitivo".
Tal construção se encaixa perfeitamente no âmbito do Direito Ambiental, uma vez que ele é informado pelo "Princípio da Prevenção". De acordo com esse princípio, há uma necessidade de atuação estatal preventiva, para que se evitem os danos ambientais. Isso em vista das dificuldades e custos relacionados com a integral reparação dos mesmos. [36]
Corroborando todos os argumentos aqui lançados, impende trazer a baila alguns importantes julgados sobre o manifesto reconhecimento jurídico dos danos morais coletivos em matéria ambiental no ordenamento jurídico brasileiro [37]. Nessa ótica, eis a voz que dimana das nossas Casas de Justiça:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. (...) DANOS MORAIS COLETIVOS. (...) A ocorrência de danos morais coletivos é matéria relativamente nova na jurisprudência. Doutrinariamente, o dano moral é conceituado como o prejuízo de caráter intrínseco ao íntimo do ofendido, isto é, ligado à esfera da personalidade. A coletividade, por óbvio, é desprovida desse conteúdo próprio da personalidade. Entretanto, não pode permanecer desamparada diante de atos que atentam aos princípios éticos da sociedade. Costuma-se dizer que o dano moral tem dupla função: reparar o dano sofrido pela vítima e punir o ofensor. O denominado "dano moral coletivo" busca, justamente, valorar a segunda vertente, mas sob um prisma diferente. Mais do que punir o ofensor, confere um caráter de exemplaridade para a sociedade, de acordo com a importância que o princípio da moralidade administrativa adotou hodiernamente. Dessa forma, o dano moral coletivo tem lugar nas hipóteses onde exista um ato ilícito que, tomado individualmente, tem pouca relevância para cada pessoa; mas, frente à coletividade, assume proporções que afrontam o senso comum. É o que se verifica no caso dos autos. Por natureza, trata-se de um ilícito contratual, cujos efeitos atingiram a comunidade local. Mensurado individualmente, não daria ensejo à indenização pela pouca importância na esfera de cada cidadão. Contudo, na sua generalidade, leva à sua reparação aos olhos da sociedade. Mantido o quantum indenizatório fixado na sentença (R$ 50.000,00), já que adotou como critério a capacidade econômica da ré, estando de acordo com o intuito de exemplaridade e reparabilidade. Apelação parcialmente provida para que para que a Brasil Telecom promova a reabertura dos postos de atendimento que foram extintos (TRF da 4ª Região. 3ª Turma. Apelação Cível nº 2002.70.02.003164-5/PR. DJU 27.09.2006 – original sem destaques).
APELAÇÃO CÍVEL. (...) TOMBAMENTO. NEGLIGÊNCIA DOS PROPRIETÁRIOS. DESTRUIÇÃO PARCIAL DO BEM. DANO MORAL COLETIVO. Com a evolução do amparo ao meio ambiente no Brasil, a doutrina pacificou o entendimento acerca da possibilidade de reconhecimento da indenização por dano moral coletivo, quando decorrente de agressões ao patrimônio ambiental, com respaldo, após 1994, no art. 1º da Lei da Ação Civil Pública. (...) (TJSC. 1ª Câmara de Direito Público. Apelação Cível nº 2005.013455-7. Decisão Unânime, DJ 18.11.2005 – original sem destaques).
Nessa seara, importa dizer que o egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, dando provimento a um recurso de apelação interposto pelo Ministério Público goiano, oriundo da comarca de Itumbiara, em decisão pioneira naquela Corte, reconheceu a legitimidade da condenação do poluidor a arcar com os danos extrapatrimoniais coletivos como mais um dos instrumentos constitucionais disponíveis para o alcance da mais ampla proteção do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Devido à importância ímpar desta decisão, notadamente pela contundência das razões que a embasaram, calha conferir o teor de sua ementa. In verbis:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEIO AMBIENTE. DANO PATRIMONIAL E DANO MORAL COLETIVO. REPARAÇÃO. PROCEDÊNCIA. 1. A responsabilidade pelos atos que desrespeitam as normas ambientais é objetiva, não perquirindo quanto à culpa (Lei nº 6.938/81). Portanto, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos patrimoniais e extrapatrimoniais (morais) causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. 2. O meio ambiente goza de proteção constitucional, ex-vi do art. 225, III e § 3º, da Constituição Federal e legislação inferior, a efetividade da proteção ao meio ambiente, de interesse da coletividade, só é alcançada apenando-se o causador do dano. Assim, em sendo o evento danoso incontroverso, decorrente de degradação ambiental consistente em poluição atmosférica e do solo, como no caso dos autos, a conseqüência é a procedência do pedido. 3. O advento do novel ordenamento constitucional – no que concerne à proteção ao dano moral – possibilitou ultrapassar a barreira do indivíduo para abranger o dano extrapatrimonial à pessoa jurídica e à coletividade. O meio ambiente integra inegavelmente a categoria de interesse difuso, posto inapropriável uti singuli. Dessa forma, a sua lesão, caracterizada pela diminuição da qualidade de vida da população, pelo desequilíbrio ecológico, pela lesão a um determinado espaço protegido, acarreta incômodos físicos ou lesões à saúde da coletividade, revelando lesão ao patrimônio ambiental, constitucionalmente protegido, ensejando a reparação moral ambiental causada a coletividade, ou seja, os moradores daquela comunidade. 4. Sentença reformada. Condenação da requerida/apelada a recuperar e compensar os danos ambientais, socioeconômicos e à saúde pública, bem como em dano moral coletivo. Apelo conhecido e provido (TJGO. 5ª Turma Julgadora da 3ª Câmara Cível – votação unânime. Apelação Cível nº 108156-4/188 (200700552663). Comarca de Itumbiara. Relator Juiz G. Leandro S. Crispim. Julgado em 28 de junho de 2007).
Fincadas estas balizas, nota-se que existe uma tendência moderna caminhando na direção da consagração e do fortalecimento dos direitos coletivos (em sentido amplo). Nesse passo, sobressaem as nobres atribuições constitucionais do Ministério Público como a forma mais sólida de se garantir a íntegra preservação de todos os interesses difusos (arts. 127 e 129, incisos II e III, ambos da CF/88), inclusive os chamados danos morais coletivos.
Dessarte, incumbe ao Parquet uma atuação sempre combativa, transformadora e construtiva de uma sociedade efetivamente justa (art. 3º, inciso I, da CF/88), na qual seja resguardada a promoção do bem de todas as pessoas (art. 3º, inciso IV, da CF/88) como o modo por excelência de se alcançar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil anunciados no Pacto Social de 1988 [38].
Todavia, para que estes objetivos realmente sejam atingidos, é hora de se alterar o foco para enxergar os fatores reais de poder reinantes na sociedade, mudar paradigmas e romper dogmas, atitudes corajosas que exigem do jurista, sobretudo, desprendimento das concepções individualistas que fundamentaram a elaboração do Código Civil do século passado (de 1916), quando não se cogitava da existência dos apelidados "novos direitos" [39].