A questão do aborto jamais terminará, por mais que o Estado legalize. No Brasil, o aborto é permitido nos seguintes casos: estupro; feto anencéfalo; risco de vida para a gestante; nas primeiras doze semanas.
Ninguém gosta de ver uma pessoa em sofrimento, ser morta e, pior, sem se a mínima possibilidade de se defender. Isso não é verdade. Se analisarmos, historicamente, as políticas de desenvolvimento brasileiro, a morte sempre foi companheira de milhões de braseiros. Uma estrutura racista foi planejada para os "inferiores" morrerem ou serem meros objetos de produções de riquezas. Após a escravidão, pelas fim de correntes, outra surgiu, mas disfarçada de "liberdade". Essa "liberdade" aos ex-escravos não passava de uma ideia, esperança para os ex-escravos. Largados pela sociedade e Estado, ex-escravocratas, os "libertos" encontraram todas as formas de opressões para suas dignidades. Os projetos de desenvolvimento urbanísticos eram para os "puros", os "humanos", já que ex-escravos eram subprodutos da espécie humana, ou nem pertencentes da espécie.
Essa massa humana de "ex" tiveram que se virar diante de uma sociedade racista cujas estruturas ainda estavam presentes nas entranhas do Estado. A República pressupõe "para o povo", sendo os representantes uma forma de atuação, indireta, do povo. Ocorre que "para o povo" não era para todos, no entanto, parcela, pequeníssima, de pessoas no território brasileiro. Essa massa humana, pois nada mais era do que matérias condensadas desprovidas de dignidade, dignidade tal qual a conhecemos atualmente, servia de mão de obra barata, demorou muito para considerar "análoga a escrava". O "mínimo existencial" era para o funcionamento do metalismo basal, de maneira que os corpos continuassem, corpos e não pessoas, a gerar riquezas nacionais.
O sentido de não matar uma vida deve ser alastrada para outros olhares. Gestante trabalhando em condições insalubres, os riscos para ela e o nascituro. A periculosidade também deve ser considerada. A fome, somente em 2014 o Brasil deixou de ter famintos para ter subnutridos, também compromete o desenvolvimento, neurológico e físico, do nascituro. As péssimas condições, ou inexistências, de saneamento básico causam mortes prematuras.
No site da Câmara do Deputados:
Câmara aprova urgência para projeto que equipara aborto de gestação acima de 22 semanas a homicídio
A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (12) o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares, que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio. Os projetos com urgência podem ser votados diretamente no Plenário, sem passar antes pelas comissões da Câmara.
Não podemos de nos esquecer do PL 434/2021 (Estatuto do Nascituro).
Quando e fala em " a proteção integral do nascituro", a ideia não pode ser tão somente no desenvolvimento biológico das células.
O desenvolvimento de um nascituro no útero é considerado um processo de desenvolvimento biológico. Esse processo é também conhecido como desenvolvimento embrionário e fetal. O desenvolvimento começa com a fertilização, isto é, quando um espermatozoide se funde com um óvulo para formar um zigoto. O zigoto é uma célula única que começa a se dividir e a multiplicar, passando por várias fases de desenvolvimento. As etapas
1. Fase de divisão celular (cleavage): Após a fertilização, o zigoto se divide repetidamente por mitose, formando um aglomerado de células chamado de mórula.
2. Blastocisto: Cerca de cinco dias após a fertilização, o aglomerado de células forma uma estrutura chamada blastocisto, que consiste em uma camada externa de células e uma cavidade interna. Este blastocisto se implanta na parede do útero.
3. Gastrulação: As células começam a se organizar em camadas germinativas — ectoderma, mesoderma e endoderma — que eventualmente formarão os diversos tecidos e órgãos do corpo.
4. Organogênese: Durante esta fase, as três camadas germinativas começam a diferenciar-se em órgãos específicos. Por exemplo, o sistema nervoso começa a se formar a partir do ectoderma, enquanto o coração e os vasos sanguíneos se desenvolvem a partir do mesoderma.
5. Fase fetal: Após as principais estruturas e órgãos estarem formados, o embrião é então chamado de feto. Esta fase é caracterizada pelo crescimento rápido e pelo amadurecimento dos sistemas orgânicos.
6. Desenvolvimento de características físicas e funcionais: Ao longo da gravidez, o feto desenvolve capacidades funcionais, como a capacidade de ouvir sons e reagir à luz. O desenvolvimento dos pulmões e outros sistemas vitais se prepara para a vida fora do útero.
Ora, se olharmos tão somente pelo desenvolvimento biológico, também é possível tão somente olharmos para meios artificiais de desenvolvimento como inseminação artificial, geração de nascituro fora do útero etc.
Aqui no JusNavigandi tem dois artigos de minha autoria: Redução da maioridade penal: daqui a pouco serão os nascituros; Biodireito e bioética. O valor da vida e seu direito no cilindro da vida. Os artigos servem como suplementos para este artigo sobre criminalização do aborto como homicídio.
Pois bem. Quando não há eficiência, que pressupõe seriedade, compromisso, responsabilidade, solidariedade, importância com a vida alheia, a redução da maioridade penal é uma tentativa, desesperada, de "consertar". Um "remendo" para um problema maior e conjunto: desemprego pela automatização, robotização e inteligência artificial; corrupção entre agentes públicos; falta de seriedade no desenvolvimento social às populações carentes, para promoção da equidade. Dizer que o "marginal" é fruto da sociedade, correto? Ora, se alguém age para impedir furto ou roubo da posse, de objeto imóvel, isto tem a ver com: 1) tempo aplicado para conseguir o resultado, o pagamento, quando autônomo, ou salário, quando tem CTPS assinada; 2) O valor percebido pela serviço prestado e a capacidade deste valor comprar produto ou contratar serviço. Há uma matemática, ainda que inconsciente, sobre trabalho, intelectual ou braçal, despendido, e a capacidade do resultado, o recebimento pelo trabalho feito, suprir necessidades próprias.
Ninguém acordaria 3h para andar até o ponto de embarque e desembarque de passageiros, esperar o transporte público, ingressar, mediante pagamento de tarifa, percorrer o percurso, chegar ao local de trabalho, passar 8h ou mais trabalhando, terminar o trabalho, ir até o local de desembarque e desembarque de passageiros, esperar o transporte público etc., se o valor percebido não supre necessidades básicas, como o metabolismo basal. Pior, não dá para honrar com os credores no final do mês. Existe uma motivação, que é externa, a de acordar para obter o resultado do trabalho despendido. Uma família feliz pode ser encontrada no filme A Fantástica Fábrica de Chocolate. Uma residência, em péssimas condições, a única barra de chocolate, comprada com as economias de anos, para uma criança, que caridosamente resolver dividir com sua família. Um amor de situação. Essa alegria existe, nos filmes. Qual pai e qual mãe gostam de ver os seus filhos e filhas tristes pelo alimento, necessário, que falta no lar? Quais pais amam ver os seus filhos rirem sem os dentes por não terem condições pagarem dentistas, no "país dos banguelas"?
Sim, felicidade. Não basta somente existir, biologicamente. Existe muito mais do que existir pelos processos biológicos, simpático, parassimpático. Se ter alimento é o suficiente para ser feliz, abastados não teriam depressões. Existe o componente emocional na espécie humana. Mente e corpo, as doenças psicossomáticas.
Quando meia dúzia de parlamentares querem ditar regras sobre os corpos das mulheres, esquecem-se de que também estão impondo coação emocional às mulheres. Mas parlamentares também podem ser do gênero feminino? Correto. Ocorre que ninguém pode impor: homem ao homem; mulher à mulher. Não importa o gênero. Ora, se uma pessoa quer comer uma picanha, que coma. Não gosta, ninguém pode forçar com justificativa de "Não seja fresco". É coação.
A mulher, do gênero feminino, neste Estado, sempre fora coagida, pelo gênero masculino. Coagida pelo "estupro marital"; coagida a não trabalhar fora do lar, como ocorria na vigência do Código Civil de 1916; coagida a casar-se com o estuprador, pois mulher solteira era malvista socialmente, com filho gerado por estupro, "A senhora fechou bem, com força, suas pernas para não ser estuprada?". Essa frase era proferida nos tribunais da "justiça insensível".
Uma mulher estuprada está em agonia. A criminalização do aborto como homicídio é retrocesso, é insensibilidade, é atroz. Qual seria a reação dos parlamentares, de gênero masculino, que votaram a favor do Projeto de Lei 1904/24, se fossem currados? Muitos, ou todos, matariam, sem pestanejar, os violadores de seus aparelhos excretores. No entanto, não somente pela introdução por coação, mas pela conceituação de quem foram violentados em suas dignidades. O nojo, a revolta, a fúria, a perda do "verniz civilizatório": o troglodita milenar saltaria de dentro de cada alma para atacar, muito provavelmente "matar em nome da honra"; uma "matar por valor moral à luz da sociedade.
Contudo, quando se fala no gênero feminino, não se avalia a dor da alma. Deve suportar por um "bem maior", a vida. Vida que está em seu útero, que nada tem a ver com a ação sexual criminosa de seu algoz. Ah! Bons tempos em que os algozes poderiam estuprar suas "mulheres de família" pelo "crédito marital". E em caso de negativa da "amada esposa de meus filhos", alguns tapas na face da mulher para não ter resistência. E se tivesse resistência, o Estado defenderia o "bom marido e chefe de família". E quando o estuprador não era o marido? O Estado condenava o "cruel estuprador", o que não era casado, o casado era o "bom estuprador", por se atrever a romper o preciosos selo de autenticidade da "honra feminina". Sim, a himenolatria. Temos uma subversão de valores quanto à dignidade. A mulher era uma "coisa", não pessoa.
E a vida no útero? Qual seria a reação dos parlamentares, de gênero masculino, que votaram a favor do Projeto de Lei 1904/24 se fossem currados? Muitos, ou todos, matariam, sem pestanejar, os violadores de seus aparelhos excretores. No entanto, não somente pela introdução por coação, mas pela conceituação de quem foram violentados em suas dignidades. O nojo, a revolta, a fúria, a perda do "verniz civilizatório": o troglodita milenar saltaria de dentro de cada alma para atacar, muito provavelmente "matar em nome da honra"; uma "matar por valor moral à luz da sociedade. Ora, a revolta e o desejo de matar uma vida, a do estuprador. Bom. O estuprador violou uma vida, não é "pessoa do bem". O nascituro, nada tem a ver com o estupro; é inocente. E se os estupradores, que curraram cada parlamentar, fossem vítima? Quando crianças foram estuprados autoridades (o próprio pai, algum político, político, sacerdote), e a forma de entender que toda autoridade é má. Tais estupradores são vítimas, não compreendem o que fazem, isto é, que os parlamentares, apesarem de seres autoridades, não merecem a "transferência" dos algozes do passado. Não compreendem, como culpabilizar cada estuprador que currou cada parlamentar?
O texto é provocativo, sim. Provocativo para pensar, pensar que dentro do gênero feminino há alma, e como tal sente dor e amor. Ainda que se analise tão somente a parte biológica, a mulher estuprada se encontra em agonia. Quais hormônios serão produzidos em seu corpo pelo quadro emocional? Tais hormônios afetarão o desenvolvimento do nascituro? Se a gestante estuprada não quiser se alimentar, irão injetar substância hipodérmica, um complexo vitamínico, à força para salvar o nascituro? O Estado, por intermédio de meia dúzia, e ainda que fosse "maioria", não pode impor crueldade. Pode, sim, dar assistência médica, tanto para o organismo quanto para o emocional da mulher estuprada. Impor o não aborto à mulher, mais tarde, é impor o Estado confessional, pois os motivos podem ser vários, a intenção é única: impor ao outro.
A mulher, estuprada, deve ter liberdade de escolha, se continua ou não com a gestação. Da coação à mulher estuprada, outros tipos de coações, históricas, como esterilização forçada, por "gerar muitas vidas", por ter "genética ruim" (eugenia negativa). E, francamente, ter uma vida num Brasil de mentalidade neoliberal é ter a certeza de que a vida gerada tão somente servirá como geadora de riquezas, para alguns brasileiros. Não se preocupem com desemprego, com os "trabalhadores" sem CTPS assina. A tecnologia resolve, pela automação, robotização e, agora, inteligência artificial. No bojo, a dignidade humana é uma mera ideia de direito, quanto está serviço de geração de riqueza. Não gera, a única dignidade é suportar o descaso social, ou de algumas comunidades.
Para terminar. Alguém perguntará se o adulto, fruto de estupro, gostaria de ver a genitora em agonia durante e após o estupro? E até nos silêncios pessoais de suas lembranças das datas dos estupros? Os "filhos dos estupros" também não sofreriam emocionalmente por serem recriminados como resultados de ações de não de seus legítimo e amorosos pais? Sim. No passado, não longínquo, os "filhos bastardos", os fora do casamento, eram duramente ridicularizados pela "boa sociedade". Tempos bárbaros, tempos que não podem retornar.