Capa da publicação Biodireito e bioética: qual seria o valor da vida, e os direitos a ela inerentes, caso existisse um cilindro da vida?
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Biodireito e bioética. O valor da vida e seu direito no cilindro da vida

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Quais seriam as implicações éticas advindas da possibilidade de gerar uma vida artificialmente, sem os gametas masculino e feminino?

Nome, domicílio e o estado (posição social) representam a individualização da pessoa natural. Além desses aspectos individuais, o DNA. Novas relações comerciais surgirão nas companhias de seguro de vida, nas empresas empregadoras,  nas companhias de planos de saúde e outros. As informações sobre as empresas possuidoras do Clindro da Vida, a qualidade de todo material genético, artificialmente produzido, produzirá uma seleção artificial nas relações humanas, sejam elas nos simples relacionamentos amorosos e nas escolhas dos melhores trabalhadores? E como serão os contratos entre os fonecedores (companhias de seguro de vida, empresas empregadoras, companhias de planos de saúde) e os consumidores?

Imagine a existência do Cilindro da Vida. Nesse artefato tecnológico é possível gerar vida humana, sem necessidade de gametas masculino e feminino. Tudo é possível graças à engenharia genética. A seleção artificial é praticada há muito tempo. Cito, por exemplo, o caso mais famoso: a seleção artificial dos espartanos (a.C.). A seleção natural sempre coexistiu com a seleção natural, mesmo na aurora humana.

Vida eterna, retorno após a morte do corpo físico. Fatos históricos encontrados em antigas civilizações. Egípcios, astecas e outros povos acreditavam na vida após a morte, no retorno (reencarnação) do falecido à vida material. A ciência humana tenta explicar casos inexplicáveis, como de pessoas em como por anos e, de repente, o sair do coma.

O Cilindro da Vida pode parecer uma invencionice, sem precedentes, irracional e fantasiosa deste articulista. Se analisarmos antigas civilizações e seus métodos de construções, de tratar doenças e de até preveni-las, é possível verificar que houve aperfeiçoamento nos métodos, muito pouco de invenção extraordinária. Os egípcios, por exemplo, faziam cirurgias cerebrais, tinham contraceptivo masculino, escova dental. Misturavam-se ciência e religião. Com o rompimento do Estado com a Religião, pelos pensamentos filosóficos ao logo do desenvolvimento humano, a ciência não mais era compatível com conceitos puramente sobrenaturais, empíricos. O tubo de ensaio e, principalmente, o microscópico, passaram a ditar a ciência da verdade. Nade de superstições, crendices. o Homo Sapiens Sapiens deveria ser racional, deixar de lado o medo do sobrenatural.

A Revolução Científica trouxe novas descobertas, o rompimento da ciência racional com a ciência das superstições, do sobrenatural. E, com ela, surgiram preconceitos a qualquer forma terapêutica que não fosse comprovada através de microscópicos, tubos de ensaios — pensar que mesmo diante de Ciência Racional, quem discordava dos catedráticos, deuses mitológicos racionais, era chamado de curandeiro, charlatão. A História dos Cientistas Malucos prova que única verdade cabível ao ser humano é a sua própria arrogância de querer ser onipotente e onipresente. Ervas, shiatsu, acupuntura, moxabustão? O ocidente considerava todas essas práticas como medicina dos tolos. Homeopatia, pasmem, ainda é considerada como água com açúcar.

O que é o Cilindro da Vida? É um ambiente capaz de gerar vida, seja de animal não humano ou humano. Não há necessidade dos gametas, naturais, de mulher ou homem. Tudo é produzido artificialmente em laboratório. Quer ter filho (a) com olhos azuis, pele clara, cabelos loiros encaracolados — um anjinho da Terra —, basta escolher e, claro, ter dinheiro. Quer um filho negro atlético? A empresa de biotecnologia A Nova Gênesis consegue realizar sonhos. Não há mais necessidade de útero, ovário, trompa, pênis — e os fluídos corporais contendo gametas. A Nova Gênesis tem métodos capazes de dispensar o método, antiquado, dos avós. A nova geração, pela sua autopossessão, pela autonomia da vontade, pelo milagre tecnológico, agora pode escolher quando quer ter prole, quais as características genéticas.

Casal ainda não conseguiu estabilidade financeira para custear o desenvolvimento do filho (a) amado (a) — alimentação, fraldas, visitas ao pediatra, educação em instituição de ensino etc. Na Nova Gênesis, o pai, ou a mãe, ou os pais, sejam eles heterossexuais ou LGBTs, podem programar o desenvolvimento do (a) amado (a) filho (a). Mais além.

Digamos que, por hora, não existe nenhuma tecnologia de melhoramento genético capaz de proporcionar erradicação das doenças — analisando o surgimento das superbactérias e o sonho fracassado dos antibióticos, como cura para tudo; e aplicando a Teoria da Seleção Natural —, mas existe a nanotecnologia. Através da nanotecnologia, caso alguma doença surja, mesmo após a prévia seleção genética, é competente para evitar o desenvolvimento da (s) doença (s). A filha tem cinco anos de idade, pela aplicação da medicina preventiva, o médico de família diagnóstica desenvolvimento de tumor cerebral. A nanotecnologia entra em ação, o tumor é impedido de se desenvolver.

Quais os benefícios do Cilindro da Vida?

  • Homem e mulher não dependerão um do outro para ter filho (s) ou filha (s), já que é possível escolher o sexo;
  • Questões judiciais, contemporâneas, de "De quem é o filho?" desaparecerão. O filho é de quem se dirigiu à empresa e contratou os seus serviços;
  • O homem terá a sua autonomia da vontade. Se quer ter filho (a), não dependerá de qualquer mulher. Por analogia, a mulher não dependerá do homem para ter seu material genético (gameta) para ter filho (a). Ou seja: pagou, levou;
  • Se existir alguma crise econômica, e o (a) contratante não puder continuar com o pagamento aos serviços da empresa, a empresa poderá descartar o feto. Por quê? A empresa detém o direito de patente. É uma vida, mas artificialmente gerada, todo material genético é artificial. Logo, não é material genético natural. Se há crença de que há vida em um feto gerado naturalmente, e que este feto tem alma, o feto gerado artificialmente não tem alma, pois se o homem, através de sua inteligência criou uma vida, então está desvinculado, o feto, do Poder do Criador;
  • Se o feto é gerado artificialmente, por essa tecnologia, não se pode falar em aborto. Aborto é associado ao aparelho reprodutor humano, não importa se mulher heterossexual, se transgênero (mulher que mudou sua condição morfologia feminina para a morfologia masculina, mas não fez transgenitalização ou redesignação genérica ou sexual, comumente chamado de mudança de sexo (genital);
  • Planejamento familiar e liberdade sexual — A pessoa, ou casal, poderá escolher quais característica terá o (a) filho (a) amado (a): a cor dos olhos, dos cabelos, da altura, porte atlético ou não, e outras escolhas conforme os avanços biotecnológicos. Em relação à vida sexual, quando quiser, sem receio ou medo de gravidez indesejada, risco de Doença Sexualmente Transmissível (DST). Nova substância para planejamento familiar. O homem não precisará fazer cirurgia, como vasectomia, a mulher fica livre dos efeitos colaterais como aumento de peso corporal, espinhas, alteração de humano. Na contemporaneidade, as relações humanas são diversas, assim como os comportamentos sexuais. Os relacionamentos afetivos, como o monogâmico e o poliafetivo, os relacionamentos puramente sexuais (viu, gostou, acordos; é festa). Vamos chamar tal substância de PFLS (Planejamento Familiar e Liberdade Sexual). Querendo ou não, o Cilindro da Vida servirá para os relacionamentos "só nós", seja monogâmico (monoafetivo) ou poliafetivo, ou cada qual é livre e não precisa justificar (sem ciúmes, se possessões; se é possível, em se tratando de ser humano). Quem pensa que na poliafetividade não há acordo, engana-se. Não há mentiras, cada qual é livre para fazer o que quiser, desde que todos concordem o comum acordo;
  • Filho (a) sem preocupação quanto a "Quem é meu pai, minha mãe!" — Até o momento deste artigo, a normalidade da concepção da vida humana, mesmo que hajam técnicas inovadoras, como fertilização artificial, banco de gametas, ainda assim, o material genético, necessariamente, depende dos seres humanos (doadores). A gestação depende de aparelho reprodutor biológico natural. Há discussões contemporâneas sobre o sigilo aos doadores de gametas e o direito de saber quem é realmente o doador (a), ou barriga de aluguel. Existindo o Cilindro da Vida, nova mentalidade surgirá na sociedade. Vejam que é possível criar um mito capaz de mudar outro mito. Até a primeira metade do século XX, quem pensaria em clonagem de animal não humano? Somente os sonhadores, assim pensavam os seres humanos "com os dois pés no chão". Robert Edward, considerado um dos pais do primeiro bebé proveta, é contra a clonagem humana. Ou seja, há possibilidade de clonar; e por que não dizer possibilidade de criar um novo ser sem clonagem? Da Nova Gênesis (a artificial ou criação humana), com o tempo, possivelmente, as concepções naturais seriam diminuídas, ou mesmo extintas. As crianças geradas pelo Cilindro da Vida, dentro da nova cultura humana, não estariam preocupadas em saber "Quem são os meus pais?", porque seria irrelevante. Por exemplo, a geração atual desconhece o que é fax, máquina de escrever, gravador de VHS. Se há benefícios, bem maiores, na gestação pelo Cilindro da Vida, a gestação normal deixaria de existir, ou pelo menos, diminuiria. Pensemos, em pleno início do século XXI a virgindade prevalece sobre não ser virgem? Ser virgem neste século é "anormal", é fruto de dogmas religiosos — asseveram quem é contra as religiões. Por analogia, os filhos gerados por processo natural serão considerados "estranhos", "anormais", enquanto os filhos gerados pelo Cilindro da Vida serão "normais" e politicamente correto. Nesse diapasão, os filhos gerados pelo Cilindro não sofreriam traumas, angústias existenciais — a não ser que a empresa estivesse cometendo algum crime; assim, o ser gerado pela empresa seria "filho de peixe, peixinho é". Nasceria uma nova eugenia?

Se o Cilindro da Vida é o novo meio de gerar vida, se não há mais abortos (naturais), o "aborto" artificial não pode ser criminalizado. A humanidade ingressa num bico de sinuca, pois o que é vida, quem tem direito de decidir sobre a existência de uma vida? A vida orgânica pode ser comercializada no sentido de sociedade de consumo? Vejamos, serei redundante, em alguns momentos:

  1. Autopossessão, autonomia da vontade e ser humano de consumo — O ser humano, gerado pelo Cilindro, é uma escolha pessoal do contratante. Todo processo de fabricação do novo ser humano é artificial. A empresa detém o direito autoral pela sua invenção. O desligamento do suporte de vida ao desenvolvimento fetal, no Cilindro, por inadimplemento do contratante, não é crime: não há complicações para o organismo feminino, ou masculino, no caso de implante de aparelho reprodutor. O feto, artificialmente gerado, não possui alma, quando se analisam as crenças milenares, já que não existia o Cilindro da Vida;
  2. As leis contemporâneas em relação ao aborto — as leis contemporâneas se baseiam: a) nos sentimentos. Sentimento da barriga de aluguel, dos doadores, da mulher estuprada; b) no desenvolvimento do Sistema Nervoso Central (SNC) no feto (sentir dor); c) no risco de vida para a gestora; d) má formação do feto, como no caso de anencéfalo. Ora, logicamente, ou possivelmente, pelo desenvolvimento biotecnológico presente no Cilindro, o SNC pode se desenvolver, mas ser desativado (não transmitir os impulsos), enquanto o feto se desenvolve. O SNC só é ativado quando há o "nascimento" — saída do Cilindro. Outra hipótese, mesmo após o "nascimento", o nascituro tem funcionamento somente de seu metabolismo basal, como se estivesse em coma. Pelo uso da biotecnologia do Cilindro, quais leis jurídicas, contemporâneas, seriam aplicadas para criminalizar qualquer violação aos direitos humanos do feto, do nascituro? Início de século XXI. Se há imoralidade, por crença religiosa, em qualquer tipo de aborto, mesmo assim não é fator decisório na questão do aborto (ruptura entre Religião e Estado), se há conduta antiética, em questão de Biodireito e Bioética, nos casos atuais (direito da mulher à autopossessão, à autonomia da vontade versus direitos à vida intrauterina e extrauterina) — prejuízos psicológicos para a mulher, dor ao feto, os direitos pós-parto e desenvolvimento da criança — o ser humano, produto de desenvolvimento artificial, portanto, não há possibilidade de aplicação de qualquer lei vigente no mundo;
  3. Direito autoral, personalidade jurídica — A empresa A Nova Gênesis é detentora dos direitos autorais. Ela gastou tempo e dinheiro em pesquisas para criar o Cilindro. Todo processo para gerar vida é artificial, independe de doadores, barriga de aluguel. A empresa não força ninguém para ter filho (a), tem quem quer. A responsabilidade objetiva da empresa é de não cumprir o contrato. Mesmo que haja uma expectativa de o contratante querer, realmente, um filho, mas por alguma circunstância não pode pagar pelo processo de desenvolvimento do feto, nada de natural há no desenvolvimento do feto, todo procedimento é artificial (criar os gametas, fecundação, desenvolvimento fetal etc.). Se o direito autoral é um direito inviolável na atualidade, muito mais será em relação ao Cilindro. Por quê? Porque não viola nenhuma lei (ver item número "2").

Eis os imensos desafios para a Bioética e o Biodireito. É necessário, o mais rápido possível, já que a ciência é mais rápida do que as leis (discussões, votações, vetos, reformulações, promulgações, decisões judiais), a humanidade repensar sobre vida, Direito, Mercado.

  1. O que é a vida?
  2. Quem tem direito à vida?
  3. Ideologias próprias versus criação de nova vida.
  4. A autopossessão de um ser adulto versus a autopossessão de quem está se desenvolvendo.
  5. As diferenças entre vida natural e vida artificial, e os direitos de cada tipo de vida. A vida artificial terá mais ou menos valor que a vida natural? E vice-versa.
  6. A vida como valor de mercado versus ética.
  7. Gerar vida pelos padrões naturais será crime?
  8. Não existindo Estado Social, o Cilindro da Vida será acessível a todos os seres humanos?
  9. Razão versus sentimentos, até que momento os sentimentos não prevalecerão?
  10. Ciência e Mercado, a vida humana será regida, tão somente, por cálculos matemáticos de ter ou não filhos?
  11. Os filhos gerados naturalmente serão discriminados, pelo mercado de trabalho, pela sociedade em si?
  12. Os filhos gerados artificialmente serão privilegiados, pelo mercado de trabalho, pela sociedade em si?
  13. Contemporaneamente, as cirurgias plásticas estéticas e as silhuetas padronizadas por exercícios físicos ditam padrões de beleza, de saúde, de felicidade. Quais os tipos (características) de felicidades deve ter o novo ser humano?
  14. A nanotecnologia como fator de aperfeiçoar o corpo humano. E quanto à nanotecnologia capaz de aperfeiçoar o caráter e a personalidade humana? Quem ditará, escolherá o tipo de caráter, personalidade "sadia", "moralmente benéfica"?
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Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HENRIQUE, Sérgio Silva Pereira. Biodireito e bioética. O valor da vida e seu direito no cilindro da vida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5241, 6 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59433. Acesso em: 24 abr. 2024.

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