Em decisão monocrática proferida no dia 11 de janeiro de 2008, a ministra Ellen Gracie, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), entendeu que a Lei nº 11.464/07, que modificou a lei dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/90) para possibilitar a concessão de liberdade provisória aos autores de delitos hediondos e equiparados, não teria aplicação no caso do tráfico de drogas (crime equiparado).
Para ela, tanto a Constituição Federal de 1988 como a Lei nº 11.343/06 (nova lei de drogas) impedem a aplicação do citado benefício (HC 91.556-STF).
Com a devida vênia, equivocou-se completamente a eminente presidente da Corte Suprema brasileira. Impõe-se que o Pleno do STF corrija essa anomalia o mais pronto possível, para fazer preponderar a cientificidade do Direito penal sobre o PPBI (poder punitivo interno bruto), que, nesta matéria, foi iniciado pelo ministro Felix Fischer (STJ – HC 81.241-GO).
Lendo e relendo o artigo 5°, inciso XLIII, da Constituição não se encontra (nem implicitamente) a vedação da liberdade provisória nos crimes hediondos. Isso foi criação (inconstitucional) do legislador ordinário. Este, por força da Lei nº 8.072/1990, em sua redação original, proibiu, para os autores desses crimes (e equiparados), a concessão do referido benefício (liberdade que é concedida ao agente preso em flagrante, quando desnecessária a prisão cautelar).
No caso do tráfico de drogas, equiparado a crime hediondo desde 1990, a proibição da liberdade provisória foi reiterada na nova lei de drogas (Lei nº 11.343/2006), mais precisamente em seu artigo 44. Desde 8 de outubro de 2006 (data em que entrou em vigor esta última lei) essa proibição, portanto, achava-se presente tanto na lei geral (lei dos crimes hediondos) como na lei especial (lei de drogas).
Esse cenário, contudo, foi completamente alterado com o advento da Lei nº 11.464/2007 (vigente desde 29/03/07), que, alterando a redação do artigo 2°, II, da Lei nº 8.072/90, aboliu a vedação da liberdade provisória.
Como se vê, houve uma sucessão, no tempo, de leis processuais materiais, fenômeno regido pelo princípio da posterioridade, isto é, a lei posterior revoga a lei anterior (essa revogação, como sabemos, pode ser expressa ou tácita; no caso, a Lei nº 11.464/2007, que é geral, derrogou expressamente parte do artigo 44 da Lei nº 11.343/2006, que é especial).
Em outras palavras: desapareceu do citado artigo 44 a proibição da liberdade provisória, porque a lei nova revogou explicitamente a antiga.
O artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos, alterado pela Lei nº 11.464/07, passou a dizer o seguinte:
"Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I – anistia, graça e indulto; II – fiança".
Antes do advento da Lei nº 11.464/07 o antigo artigo 2º proibia a fiança e a liberdade provisória. Agora só veda a fiança. Ou seja: cabe liberdade provisória nos crimes hediondos, na prática da tortura, no tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e no terrorismo.
Quisesse o legislador perpetuar a restrição prevista na Lei de Drogas (artigo 44), optando, portanto, por um tratamento diverso e mais rigoroso, o teria feito expressamente. Assim ocorreu, por exemplo, com a nova redação do artigo 112 da LEP (Lei de Execução Penal):
"Artigo 112 - A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão" ( Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1/12/2003).
O Congresso Nacional, como se vê, ressalvou as hipóteses em que o benefício era vedado pela lei especial, impedindo, assim, os efeitos da lei posterior.
Em síntese: o princípio regente é o da posterioridade (lei posterior revoga a anterior), não o da especialidade, que pressupõe a vigência concomitante de duas ou mais leis, aparentemente aplicáveis ao caso concreto. Não se pode confundir o instituto da sucessão de leis (conflito de leis no tempo) com o conflito aparente de leis.
A diferença entre o conflito aparente de leis penais (ou de normas penais) e a sucessão de leis penais (conflito de leis penais no tempo) é a seguinte: o primeiro pressupõe (e exige) duas ou mais leis em vigor (sendo certo que por força do princípio ne bis in idem uma só norma será aplicável); no segundo (conflito de leis penais no tempo) há uma verdadeira sucessão de leis, ou seja, a posterior revoga (ou derroga) a anterior. Uma outra distinção: o conflito aparente de leis penais é regido pelos princípios da especialidade, subsidiariedade e consunção. O que reina na sucessão de leis penais é o da posterioridade.
Por fim, devemos observar que a interpretação dada pela presidente do STF gera indisfarçável injustiça, pois, proibindo o beneplácito da liberdade provisória somente para o tráfico (e não para outros delitos elencados na Lei nº 8072/90, alguns até mais graves, como o latrocínio, por exemplo), são desconsiderados princípios basilares do Direito Penal, como o da razoabilidade, da proporcionalidade e da isonomia (por que proibir liberdade provisória apenas ao traficante, e não ao estuprador?).
Constantemente alertamos o equívoco de se vedar benefícios penais e/ou processuais a determinados crimes em abstrato, ignorando as circunstâncias que rodeiam o caso concreto, técnica que transforma o magistrado num autômato, fazendo preponderar um positivismo cego, em claro detrimento da Justiça.