4. O SENTIMENTO DE CULPA DA VÍTIMA E OS DANOS PSICOSOCIAIS
O conceito de slut-shaming refere-se ao ato de fazer uma mulher sentir-se envergonhada ou moralmente inferior por expressar ou praticar comportamentos sexuais que desafiam as normas tradicionais atribuídas ao seu gênero. Esse termo, destacado por Raposo (2014), também abrange a crítica e a desvalorização da mulher com base em sua vida sexual ou até mesmo na forma como se veste. Frequentemente, essa atitude é utilizada de maneira equivocada para culpar a vítima em vez de condenar o agressor, especialmente em casos de crimes sexuais.
A origem dessa expressão é frequentemente associada às Marchas das Vadias ou SlutWalks, que tiveram início no Canadá em 2011, após um comentário de um policial sugerindo que a violência contra as mulheres era consequência das roupas provocativas que elas escolhiam usar. O slut-shaming não é uma prática exclusiva dos homens; mulheres também podem perpetuar esse comportamento umas contra as outras. Isso demonstra que o machismo é um problema sistêmico e, como apontado por Hooks (2020), as mulheres também são condicionadas a internalizar e perpetuar ideias e valores sexistas.
Nos casos de pornografia de vingança, a prática do slut-shaming é evidente, pois a mulher cujas imagens sexuais são divulgadas sem consentimento é frequentemente rotulada pela sociedade como promíscua e vista como cúmplice de sua própria exposição. Comumente, ela é julgada e sua identidade reduzida ao conteúdo exposto, ignorando-se todas as outras facetas de sua vida.
Esse fenômeno é relatado por uma vítima no livro “Exposição Pornográfica Não Consentida na Internet: Da Pornografia de Vingança ao Lucro”:
[...] como uma vítima de reveng porn, eu não sou vitimada uma vez. Sou vitimada toda vez que alguém digita meu nome num computador. A cena do crime está bem diante dos olhos de todos, repetidamente, e, ironicamente, sou tratada como se fosse eu a pessoa responsável pelo crime. Eu sou vitimada toda vez que alguém me diz que é culpa minha, porque eu concordei com aquelas fotos. (SYDOW; CASTRO, 2019, p. 26)
É imprescindível compreender que a vítima nunca deve ser culpabilizada. O fato de, em um momento íntimo e baseado na confiança em seu companheiro, uma mulher compartilhar imagens sensuais, sexuais ou qualquer outro tipo de conteúdo não pode justificar sua exposição. O término de um relacionamento, uma decisão pessoal e legítima, não deve servir como pretexto para violar sua privacidade.
Em uma cultura machista como a brasileira — já citada neste artigo e perpetuada não apenas por homens, mas também por mulheres —, as vítimas frequentemente internalizam a culpa. Muitas vezes, ao sofrerem o dano, escutam frases como "se não tivesse permitido..." ou "como pude me submeter a tirar fotos ou fazer vídeos?". Esse tipo de pensamento faz com que as mulheres afetadas pela pornografia de vingança sintam-se responsáveis pelo ocorrido, como se tivessem tido um papel direto na situação.
Os impactos da divulgação de imagens íntimas sem permissão na internet são devastadores e de longo prazo para quem sofre essa violação. A revelação forçada de momentos privados pode resultar em traumas emocionais severos, incluindo estresse profundo, ansiedade, quadros depressivos e, em casos extremos, ideias suicidas. Além disso, as vítimas enfrentam discriminação e vergonha social, o que pode prejudicar seriamente suas relações pessoais e oportunidades profissionais. A pornografia de vingança é um ato de agressão baseado em gênero, impactando majoritariamente as mulheres.
Para a psicologia analítica de Carl Gustav Jung (2013, p. 65), a psique é essencialmente simbólica. Nela estão contidos os aspectos da personalidade do sujeito, bem como seus sentimentos e pensamentos conscientes e inconscientes. A principal função da psique é regular o conteúdo interno do sujeito em relação ao ambiente e às relações nas quais está inserido. Em outras palavras, a psique é o aparato mental que possibilita ao indivíduo experimentar e interpretar o mundo ao seu redor.
É importante considerar que traumas psicológicos podem afetar negativamente a saúde mental, impactando a interação social do indivíduo com a família, amigos e no contexto profissional. Isso pode levar a um comportamento recluso e a uma diminuição na produtividade.
Conforme aponta Kalshed, uma psique traumatizada pode entrar em um estado de auto traumatização, no qual, mesmo após o fim do evento traumático, a vítima continua a ser atormentada pela presença da entidade opressora. Isso sugere que o prejuízo infligido é duradouro e potencialmente devastador a longo prazo, interferindo na capacidade de formar novas conexões afetivas devido às marcas emocionais deixadas.
Além do trauma psicológico, é comum que as vítimas desenvolvam medos que as impedem de sair de casa e manter suas atividades cotidianas. Elas também podem enfrentar episódios de ansiedade, depressão e ideias suicidas. Esses efeitos revelam paralelos entre as experiências de quem sofre com a pornografia de vingança e as de quem passou por agressões sexuais, refletindo-se em mudanças na maneira como vivenciam seu corpo, na expressão de sua sexualidade, na autoimagem e na percepção de segurança no ambiente em que vivem.
Deve-se destacar os casos mais graves, nos quais o dano psicológico é tão devastador que as vítimas chegam à prática do suicídio. Nesse contexto, o impacto psicológico é de extrema gravidade, gerando sentimentos imensuráveis de culpa e vergonha que afetam não apenas a vítima, mas também sua família, seu convívio social, suas crenças religiosas e seu ambiente de trabalho. Portanto, ao avaliar os danos psicológicos, é fundamental considerar a situação particular da vítima e o impacto prolongado desse sofrimento em sua vida pessoal e na de seus familiares.
4.1. Os casos de Júlia Rebeca e Giana Laura
Casos de grande repercussão midiática evidenciam o impacto devastador da pornografia de vingança, resultando, em algumas situações, no suicídio das vítimas. Um exemplo disso são os casos das adolescentes Júlia Rebeca e Giana Laura, que, por serem mais vulneráveis, sofreram intensamente com a exposição de sua intimidade. Embora este artigo não aborde crimes relacionados a crianças e adolescentes, esses casos são citados para demonstrar os danos psicológicos incalculáveis e de gravidade extrema, que podem levar a consequências irreversíveis, como o suicídio.
Júlia Rebeca dos Santos, de 17 anos, e Giana Laura Fabi, de 16 anos, tiraram suas próprias vidas após o vazamento de fotos íntimas. Ambas se enforcaram, pondo fim à humilhação que sofreram com a exposição de sua privacidade.
Júlia, moradora da cidade de Parnaíba (PI), foi encontrada morta em seu quarto, com o fio de sua prancha alisadora enrolado no pescoço, no dia 10 de novembro de 2013. Antes disso, a jovem havia dado indícios de sua intenção de cometer suicídio em suas redes sociais, como Instagram e twitter, onde escreveu: “É daqui a pouco que tudo acaba.” 4.
A razão que levou Júlia Rebeca a tirar a própria vida foi a divulgação não autorizada de um vídeo íntimo no qual ela aparece mantendo relações sexuais com seu namorado e uma amiga. Vale ressaltar que todos os envolvidos eram menores de idade na época. O vídeo se espalhou rapidamente pela internet e, com a repercussão do caso na mídia, muitas pessoas comentaram a notícia, culpabilizando Júlia — que, na realidade, era a vítima da situação. Até novembro de 2014, a Polícia Civil ainda investigava as circunstâncias da morte de Júlia, e ninguém havia sido responsabilizado pelo crime.
Outro caso de grande repercussão é o da adolescente Giana Laura, que foi encontrada sem vida em seu dormitório, na cidade de Veranópolis (RS), em 14 de novembro de 20135. Giana cometeu suicídio utilizando um laço de seda, e a causa do ato extremo foi a exposição de uma imagem onde ela é vista expondo o seio. A foto em questão foi capturada por um menino durante um bate-papo via Skype. No decorrer da conversa, o colega de escola de Giana pediu que ela mostrasse o sutiã para a câmera. Quando ela atendeu ao pedido, ele registrou a imagem sem seu consentimento, armazenou a foto e, posteriormente, a compartilhou com seus amigos.
Conforme explica Giongo (2015):
A ação suicida por enforcamento de Giana Laura e Julia Rebeca é emblemática para se fazer uma profunda reflexão sobre a preocupante inversão de valores de nossa sociedade. A punição não recai sobre a conduta anti ética dos autores – geralmente do sexo masculino –, que divulgaram as fotos sem consentimento, ou dos indivíduos – de ambos os sexos –, que armazenaram em seus aparelhos um material íntimo que não
lhes diz respeito, mas sim sobre o comportamento da pessoa exposta, profanada tão somente por expressar sua sexualidade.6
Esses casos evidenciam a gravidade dos efeitos e os danos psicológicos avassaladores que as vítimas sofrem após passarem por essa prática criminosa. No pior momento de sua dor emocional, é impossível mensurar o que cada vítima realmente enfrenta. O sofrimento parece interminável, marcado por uma tristeza profunda, vergonha moral e social, acusações e, não menos destrutivo, o sentimento de culpa.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pornografia de vingança apresenta-se como um desafio jurídico e social que ultrapassa o simples ato de exposição não consensual. Ela reflete uma cultura que ainda enfrenta dificuldades em respeitar a autonomia e a privacidade das mulheres. As vítimas desse crime enfrentam uma turbulência emocional e social, com consequências que podem ser irreversíveis, evidenciando a necessidade de uma resposta legal mais robusta e efetiva.
A legislação atual mostra-se insuficiente, deixando um vácuo de proteção que deve ser preenchido com urgência. Criar um tipo penal específico para a pornografia de vingança não se trata apenas de aplicar a lei, mas de dar um passo fundamental para a evolução social e a afirmação dos direitos humanos. Essa medida representa um chamado à responsabilidade coletiva e ao reconhecimento da dignidade intrínseca de cada indivíduo.
As penas atualmente aplicadas ao crime ainda não são suficientes para punir a prática de maneira mais eficaz, permitindo a sensação de impunidade entre as vítimas. A pena não alcança a necessidade de conscientizar o agente de que a pornografia de vingança é uma conduta gravíssima e criminosa, muitas vezes resultando no suicídio da vítima, do qual o agente é dolosamente responsável.
A tragédia das vidas perdidas para a pornografia de vingança serve como um sombrio lembrete da urgência de enfrentar essa questão. Nenhuma pessoa deveria sofrer consequências fatais por confiar em um parceiro. A responsabilidade é de todos: é necessário proteger o direito de cada indivíduo à privacidade e garantir que atos íntimos não resultem em desfechos tão devastadores.
Além da esfera legal, é imperativo promover uma mudança cultural que desencoraje a objetificação e a violação da intimidade. A prevenção eficaz passa pela educação e pela conscientização sobre o respeito ao consentimento e à privacidade. Somente assim será possível aspirar a uma sociedade onde a liberdade de expressão sexual não seja sinônimo de vulnerabilidade ao abuso e à vingança. O objetivo é erradicar a normalização do compartilhamento não consensual de conteúdo íntimo e desencorajar julgamentos morais prejudiciais.
O combate à pornografia de vingança é multifacetado, exigindo ações coordenadas entre legislação, educação e mudança cultural. É um caminho que deve ser trilhado com determinação e empatia, visando não apenas a punição dos culpados, mas também a proteção e o apoio às vítimas, garantindo-lhes a paz e a segurança que merecem. Isso inclui educar a sociedade e apoiar as vítimas, assegurando que tais violações da intimidade sejam vistas não apenas como crimes, mas como violações inaceitáveis do tecido social.
Deve-se reconhecer a gravidade da pornografia de vingança, que não pode ser minimizada como um delito de baixo impacto, dadas as sérias consequências que acarreta. Igualmente crucial é a necessidade de sensibilização. Através de políticas públicas, iniciativas e movimentos sobre a questão, busca-se promover a prática de não disseminar nem emitir julgamentos sobre conteúdos íntimos compartilhados. É inaceitável que alguém pague com a vida por confiar em seu parceiro e compartilhar um momento de intimidade.
Infelizmente, tais casos têm ocorrido, e é uma realidade que precisa ser transformada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUZZI, Vitória de Macedo. Pornografia de Vigança: Contexto Histórico – social e abordagem no Direito Brasileiro. Imprenta: Florianópolis, Empório do Direito, 2015. Disponível em: <https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:2015;001049903> Acesso em 22 de maio de 2024.
CASTRO, Ana Lara Camargo de, SYDOW, Spencer. Revista Liberdades. Ed. 21, jan./abr. 2016. pp. 12-23. Disponível em: <http://www.revistaliberdades.org.br/_upload/pdf/26/Liberdades21_Artigo01.pdf> Acesso em: 19 de maio de 2024.
COSTA, Paulo José da Costa Júnior. O Direito de estar só. Editora Siciliano Jurídico. São Paulo. 3ª Edição.
GIONGO, Marina Grandi. Madalenas modernas e um caso de pornografia de vingança: reflexões sobre gênero, sexualidade e cidadania na educação. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/MARINA-GRANDI-GIONGO.pdf>. Acesso em: 19 de maio de 2024.
HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 10ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.
JUNG, C.G. 1977. A Vida Simbólica- Vol. 18. Coleção Obras Completas de C. G. Jung, p.65.
KALSCHED, D.O Mundo Interior do Trauma: Defesas Arquetípicas do Espírito Pessoal. São Paulo. Paulus. 2013, p.11
NEVES, Serrano. A Tutela Penal da Solidão. Editora: Edições Trabalhistas S.A. Rio de Janeiro: 1ª Edição.
NUCCI, Guilherme de Souza, Código penal comentado. 14ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. RAPOSO, Vanessa. Sobre pensar antes de postar e slut shaming na internet. 2014. Disponível em: <https://dboramanzano.medium.com/slut-shaming-homens-parem-de-fazer-e-mulheres-parem-de-se-preocupar-20d0cf5de364>. Acesso em: 19 de maio de 2024.
VALENTE, Mariana Giorgetti; NERIS, Natália; RUIZ, Juliana Pacetta; BULGARELLI, Lucas. O Corpo é o Código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil. Internet Lab: SãoPaulo,2016.Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/pesquisa/o-corpo-e-ocodigoestrategias-juridicas-de-enfrentamento-ao-revenge-porn-no-brasil>. Acesso em: 19 de maio de 2024.
WERTHEIN, Jorge. A sociedade da informação e seus desafios. Ciência da Informação, v. 29, n. 2, 11. Disponível em: <https://revista.ibict.br/ciinf/article/view/889>. Acesso em: 19 de maio de 2024.
Notas
1 SALOMÃO, Graziela . Pornografia de revanche: “Nossa sociedade julga as mulheres como se o sexo denegrisse a honra”, diz Romário: O deputado federal apresentou projeto de lei que torna crime a divulgação indevida de material íntimo e virou uma das vozes mais fortes em defesa desta causa feminina. Diante das recentes histórias de mulheres que tiveram vídeos publicados em redes sociais, ele falou a Marie Claire sobre o assunto - como político e também como pai de quatro filhas. Disponível em: <https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2013/11/pornografia-de-revanche-nossa-sociedade-julga-mulheres-como-se-o-sexo-denegrisse-honra-diz-romario.html>. Acesso em: 19 de maio 2024.
2 <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/machismo/> Disponível em: Acesso em: 19 de maio de 2024.
3 PEREZ, Fábio. Vingança mortal. Istoé Independente, 22 nov. 2013. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/reportagens/336016_VINGANCA+MORTAL>. Acesso em: 19 de maio de 2024.
4 G1 – O portal de notícias da globo. Piauí, 17 nov. 2013. Disponível em: <https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2013/11/mae-de-jovem-achada-morta-apos-video-intimo-reclama-de-violacao.html>. Acesso em: 19 de maio de 2024.
5 BOCCHINI, Lino. Quem é culpado pelo suicídio da garota de Veranópolis?. Carta Capital. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/o-suicidio-da-adolescente-de-veranopolis-e-nossa-culpa-6036/>. Acesso em: 19 de maio de 2024.
6 GIONGO, Marina Grandi. Madalenas modernas e um caso de pornografia de vingança: reflexões sobre gênero, sexualidade e cidadania na educação. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/MARINA-GRANDI-GIONGO.pdf>. Acesso em: 19 de novembro de 2024.