PL 1904/24: Entre o pensamento retrógrado e a inconstitucionalidade do projeto

27/06/2024 às 16:43

Resumo:


  • O Direito busca atender o interesse comum, mas pode enfrentar dissonâncias entre o que é considerado certo ou errado, como no caso do aborto.

  • No Brasil, o aborto é permitido em situações específicas, como risco de vida da gestante, gravidez resultante de estupro e anencefalia fetal.

  • Um projeto de lei propõe equiparar o aborto ao homicídio simples, gerando debates sobre proporcionalidade, direitos do nascituro e inconstitucionalidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O Direito como uma ciência social aplicada tenta acompanhar e atender, sobretudo, o melhor do interesse comum, competindo ao Poder Legislativo dispor acerca e, quando não, passando a jurisprudência a assumir seu papel ativo e decisivo nos casos práticos. É problamático, contudo, quando a atuação política (digo isso em relação às funções legislativas típicas e atípicas de todos os poderes) tenta atender as convicções intrísecas sem manifesta referência e atenção ao mais importante: o DIREITO.

É comum de se observar as dissonâncias em plano jurídico-sociais causadas por debates intensos entre “o que é o certo e o que é errado” para o direito, para a moral e para a religião - das transfusões de sangue, da possibilidade do aborto à utilização de animais para manifestação de cultos religiosos.

Quanto ao aborto, tema a qual nos interessa no momento, no Brasil a permissão se dá em três situações específicas:

1. Risco de vida para a gestante;

2. Gravidez resultante de estupro;

3. Anencefalia do Feto: Quando o feto é diagnosticado com anencefalia, uma condição grave onde há ausência parcial ou total do cérebro e do crânio. A decisão foi validada pelo Supremo Tribunal Federal em 2012 – ADPF 54 [1].


Sobre o Projeto de Lei que visa à equiparação do aborto ao homicídio simples.

Ainda nessa seara, recentemente o Deputado Federal Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), apresentou o Projeto de Lei 1904/24 que, em apertada síntese, visa à equiparação do aborto ao homicídio. A bancada evangélica e conservadora, sem nenhuma surpresa, é a que mais manifesta interesse na prosperidade do projeto. Entre os principais e mais conhecidos parlamentares proponentes estão: Eduardo Bolsonaro, Nikolas Ferreira, Bibo Nunes, Julia Zanatta, Delegado Paulo Bilynsky, Bia Kicis, Abilio Brunini, Coronel Fernanda e Carla Zambelli, todos do Partido Liberal.

Para tanto, o PL caso aprovado, fará as seguintes modificações ao Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal): acrescentará dois parágrafos ao artigo 124; um parágrafo único ao artigo 125; um segundo parágrafo ao artigo 126; um parágrafo único ao artigo 128.

Veem-se as modificações do projeto em negrito: [2]

ARTIGOS DO CÓDIGO PENAL VIGENTE

COM A MUDANÇA PELA PL 1904/24

   Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: (Vide ADPF 54)

Pena - detenção, de um a três anos

 

   Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: ...........................................................................................

“§1º Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”.

“§2º O juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.”

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de três a dez anos.

 Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: ...........................................................................................

Parágrafo único. “Quando houver viabilidade fetal, presumida gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”.

  Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante:    (Vide ADPF 54)

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

...........................................................................................

“§1º Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência”.

“§2º Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”.

 

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:   (Vide ADPF 54)

 

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

...........................................................................................

“Parágrafo único. Se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo.”


Seja para o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, seja para aborto provocado por terceiro, ambos na hipótese de aborto devido estupro, havendo a viabilidade fetal em gestações acima de 22 semanas, as penas aplicadas à vítima decorrerão conforme disciplina o artigo 121 do Código Penal [3] sobre homicídio simples, cuja pena de reclusão poderá ir de 6 a 20 anos de prisão.

A discussão em primeira instância possivelmente se dê pelo fato da disparidade entre as penas da vítima de estupro e do estuprador. O Conselho Federal da OAB emitiu um parecer defendendo a seguinte tese:

"Trata-se não apenas de uma restrição temporal para o abortamento de um feto concebido a partir de um crime de estupro, masobriga meninas e mulheres, as principais vítimas de estupro, a duas opções: ou ela é presa pelo crime de aborto, cujo o tratamento será igual ao dispensado ao crime de homicídio simples, ou ela é obrigada a gerar um filho do seu estuprador”. O escopo da lei penal permissiva foi evitar exatamente a maternidade odiosa proveniente de estupro que recordará à mulher, perpetuamente, o horrível episódio da violência sofrida. A imposição dessa limitação temporal trazida pelo presente Projeto de Lei, deve se coadunar com os princípios que regem o direito penal, o que, salvo melhor juízo, não acontece na proposta legislativa em análise.

Pelo projeto, a vítima do crime de estupro poderá ter uma pena de até 20 anos de reclusão, enquanto o estuprador, pelo então mantido artigo 213 do Código Penal, terá pena de reclusão de até 10 anos [4]; se a conduta resulta em lesão de natureza grave se a vítima é menor de 18 e maior que 14 anos, o teto da pena será de até 12 anos [5] e, se a conduta resultar em morte, até 30 anos. [6]

Ora, questiona-se onde estaria a proporcionalidade e a razoabilidade numa aplicação de pena desta natureza, onde a mulher recebe a pena duas vezes maior do que a do próprio crime de estupro. Não seria penalizá-la duas vezes? Entende-se, desta forma, o motivo de se popularizar o projeto de lei em questão como “PL dos estupradores”.

Nesse sentido, o parecer do CFOAB manifestou que:

"Atribuir à vítima de estupro pena maior que do seu estuprador, não se coaduna com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade da proposição legislativa, além de tratamento desumano e discriminatório para com as vítimas de estupro”.


As aplicações e os conceitos do Direito Civil que foram ignorados no projeto

A vida é o principal bem tutelado no direito penal. Embora a doutrina majoritária não tente hierarquizar direitos (vida, saúde, moraria...), manter uma relação de direito horizontal entre a vida intrauterina e extrauterina não passa de um erro grosseiro num conceito básico do Direito Civil.

A vida uterina e a extrauterina são fases distintas do desenvolvimento humano. A vida intrauterina, refere-se ao período em que o embrião ou feto se desenvolve dentro do útero materno. Esse período começa na concepção e se estende até o nascimento.

A vida extrauterina marca o início da existência fora do ambiente protetivo do útero, onde o bebê deve se adaptar a novas condições de temperatura, alimentação e respiração. A fase é caracterizada por rápidos ajustes fisiológicos, como o início da respiração pulmonar e a independência do sistema circulatório materno.

Assim diz o Código Civil, atentando-se a última parte do texto: “Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. [7] (grifo nosso).

O artigo expressa que os direitos do nascituro estão sujeitos a uma condição suspensiva, que é o nascimento com vida. Até que essa condição seja cumprida, esses direitos permanecem em estado de expectativa.

O nascituro, embora seja biologicamente um conjunto de células com um patrimônio genético específico, não é considerado uma pessoa jurídica. Ele permanece indistinto de sua mãe (ou genitora) e depende inteiramente dela para sua sobrevivência e desenvolvimento. Por não ser reconhecido como uma pessoa, o nascituro não é sujeito de direitos e obrigações plenos. Em vez disso, ele possui apenas uma expectativa de direitos, que estão condicionados ao nascimento com vida para se concretizarem (Barbosa, 2019). [8]

Ainda que o art. 2º do Código Civil estabeleça que a personalidade civil comece com o nascimento com vida, outros artigos do mesmo dispositivo concedem direitos específicos ao nascituro. O art. 542 assegura ao nascituro o direito de receber bens por doação [9]; o art. 1609, parágrafo único, trata da legitimação do filho concebido ainda não nascido [10]; o art. 1779 dispõe sobre a curatela do nascituro [11]; e o art. 1799 permite que o nascituro possa adquirir bens por testamento [12]. Além disso, a Lei nº 8.560/1992, em seu artigo 7º, garante ao nascituro o direito a alimentos provisionais ou definitivos, quando necessários. [13]

Dessa forma, embora entenda-se que o legislador tenha adotado a teoria natalista ao estabelecer que a personalidade jurídica se inicia apenas com o nascimento com vida, a legislação manifestamente protege e atribui direitos ao nascituro, sem, no entanto, lhe conceder personalidade jurídica. Conclui-se que o nascituro classifica-se como um “sujeito de direitos despido de personalidade” (Fiúza, 2008, p. 126). [14]

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Não se trata de ser contra ou a favor do aborto, independentemente do nível de gestação da vítima. Trata-se, portanto, de um entendimento jurídico frágil que fundamenta o projeto, uma vez que a vida intrauterina JAMAIS equipara-se a vida extrauterina. Não se pode considerar ou tratar um sujeito de direito dotado de personalidade jurídica ao mesmo nível de proteção jurídica de um ser dotado de EXPECTATIVA de direitos, estando sob condição o nascimento com vida para adquirir personalidade jurídica.


Sobre a inconstitucionalidade do projeto

Reitero: a análise não se trata de ser contra ou a favor do aborto, mas, levantar questionamentos omissivos do projeto e o que faz dele ser um projeto inconstitucional.

É translúcido os motivos que ensejam a inconstitucionalidade do projeto, pois, em sua natureza, viola a Constituição Federal por não proteger e garantir o direito à saúde, sobretudo às mulheres vítimas de estupro, por promover uma igualdade assimétrica, afetar a honra das vítimas e a segurança das mesmas.

Como abordado em tópico anterior, a pena imposta pelo projeto à mulher vítima de estupro ser duas vezes maior que a pena atribuída ao estuprador, também viola o princípio da proporcionalidade que deve reger o direito penal.

Veja-se que em nenhum momento foi pensado sobre a possibilidade do descobrimento tardio da gravidez, sequer sobre os casos de gravidez silenciosa. Acrescento a hipótese da criança estuprada, sofrendo ameaças, não se dê conta de que está gerando um feto. Parece-me, inclusive, que os responsáveis pela elaboração do projeto estão considerando que as vítimas de estupro, ainda que detectem o período gestacional antes das 22 semanas, terão acesso imediato à assistência médica.

Em fala cirurgica durante a sessão do Conselho da OAB, Silvia Virginia Silva de Souza, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos argumenta que são “75 mil estupros por ano, com 58 mil desses estupros contra meninas de até 13 anos, 56% negras. O retrato das vítimas deste projeto de lei, se aprovado, são meninas pobres e negras que têm voz aqui, sim, nesse plenário. Eu vim desse lugar”.

O parecer em questão aborda que "no Brasil, o abortamento seguro está restrito a poucos estabelecimentos e concentrada em grandes centros urbanos. A dificuldade em reconhecer os sinais da gravidez entre as crianças, ao desconhecimento sobre as previsões legais do aborto, à descoberta de diagnósticos de malformações que geralmente são realizados após primeira metade da gravidez, bem como à imposição de barreiras pelo próprio sistema de saúde (objeção de consciência, exigência de boletim de ocorrência ou autorização judicial, dentre outros) constituem as principais razões para a procura pelo aborto após a 20ª semana de gravidez”.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos aborda que as restrições aos direitos reprodutivos das mulheres precisam ser interpretadas respeitando sua dignidade, autonomia e saúde, conforme entendimento da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Impor penalidades rígidas e não proporcionais para o aborto praticado após 22 semanas, vai em desencontro com os princípios constitucionais e dos tratados internacionais de direitos humanos em que o Brasil faz parte.


REFERÊNCIAS

[1]Cf.: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2226954

[2]Cf.:https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2425262&filename=PL%201904/2024

[3] “Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos”.

[4] “Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”.

[5] “Art. 213, §1º. Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos”.

[6] “Art. 213, §2º. Se da conduta resulta morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

[7] “Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

[8] BARBOSA, Diego Idelgardo Arraes. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica: breve estudo de sua aplicabilidade na justiça federal de pernambuco à luz do código de processo civil. Revista Jurídica, v. 1, n. 12, 2019.

[9] “Art. 542. A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal”.

[10] “Art. 1609, parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes”.

[11] “Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar”

[12] “Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão”.

[13] “Art. 7° Sempre que na sentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade, nela se fixarão os alimentos provisionais ou definitivos do reconhecido que deles necessite.”

[14] FIÚZA, C. Direito civil: curso completo. 12 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. 

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Sobre a autora
Joana Beatriz dos Santos

Escritora. Pesquisadora na área de processo e arbitragem. Colunista. Monitora acadêmica em Dir. Civil, Dir. Constitucional, Dir. Penal e Teoria Geral do Processo. Estagiária da Procuradoria Geral da União - PRU5.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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