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Estética insegura?

14/07/2024 às 17:23
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Quais são os limites da atuação de um esteticista ou outro profissional? Quando os procedimentos ofertados ao mercado de consumidores começam a invadir atos privativos de médico?

Recentemente, os noticiários foram invadidos pela triste e perturbadora notícia do falecimento precoce de um jovem empresário, de apenas 27 (vinte) sete anos, após a realização de um procedimento de finalidade estética denominado peeling de fenol. As causas da morte e suas responsabilidades estão ainda sob apuração, mas é fato incontroverso que a substância foi aplicada por uma profissional que se autoproclamava como esteticista, malgrado ainda haja dúvida quanto a sua capacitação.

A notícia, além de comover a sociedade, acabou por gerar um debate a respeito dos limites para a atuação de profissionais de estética realizarem procedimentos desprovidos de regulamentação.

De um lado, a comunidade médica, notadamente a dermatológica1, passou a advogar publicamente que, procedimentos como a aplicação como o chamado peeling de fenol, somente poderiam ser realizados por médicos devidamente habilitados, inclusive em ambiente hospitalar com monitoração cardíaca (dado o caráter cardiotóxico que o chamado fenol exibe).

Disse a nota da Sociedade Brasileira de Dermatologia que ‘’ devido ao uso de um composto tóxico absorvido pela pele e, consequentemente, pela corrente sanguínea, o procedimento exige precauções rigorosas. É possível que ocorram complicações, como dor intensa, cicatrizes, alterações na coloração da pele, infecções e até mesmo problemas cardíacos imprevisíveis, independentemente da concentração, do método de aplicação e da profundidade atingida na pele’’.

De outro norte, os esteticistas defendem que a causa do óbito foi a utilização de técnicas inadequadas de aplicação, diante da falta de credenciamento da profissional.

Logo na sequência da divulgação do ocorrido, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA publicou a Resolução nº 2.384, de 24/6/20242, proibindo ‘’a importação, fabricação, manipulação, comercialização, propaganda e uso de produtos a base de fenol em procedimentos de saúde em geral ou estéticos, exceto os produtos devidamente regularizados junto à Anvisa nas exatas condições de registro e produtos de uso em laboratórios analíticos ou de análises clínicas’’. Paralelamente a isso, tramitam em Assembleias Legislativas de vários Estados (São Paulo, Minas Gerais, Paraná) buscando regulamentar a aplicação do chamado peeling de fenol.

Tais movimentos da agência reguladora e do Poder Legislativo, porém, chamam a atenção para uma questão que precede o episódio e assombra o exercício de profissões como de esteticista e tantas outras que se debruçam sobre a realização de procedimentos estéticos: a insegurança jurídica.

Afinal, quais são os limites da atuação de um esteticista ou outro profissional? Quando os procedimentos ofertados ao mercado de consumidores começam a invadir atos privativos de médico?

Sem se aprofundar na questão envolvendo a capacitação da responsável pelo procedimento no caso específico, a insegurança jurídica dessa matéria, seguramente, parece ter contribuído, de forma significativa, para o desenrolar dos fatos, notoriamente pela dificuldade gerada para sua própria fiscalização.

Sabe-se que, como direito fundamental, é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, nos termos do art. 5º, inc. XIII, da Constituição Federal.

Na clássica e amplamente conhecida classificação de José Afonso da Silva, trata-se de uma norma constitucional de eficácia contida, permitindo sua conformação e restrição pelo legislador infraconstitucional.

Nesse sentido, lecionam Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco3 que ‘’sem dúvida, o estabelecimento de reservas legais impede a multiplicação de conflitos entre direitos de titularidades diversas. Não se deve olvidar, por outro lado, que a técnica que exige expressa autorização constitucional para intervenção legislativa no âmbito da proteção dos direitos fundamentais traduz, também, uma preocupação de segurança jurídica que impede o estabelecimento de restrições arbitrárias ou aleatórias’’.

Nesse enfoque, regra é a liberdade do exercício das profissões. Somente quando houver um potencial nocivo na atividade é necessário se inscrever em um conselho de supervisão profissional, conforme orientação pacífica do Supremo Tribunal Federal4.

Disciplinando especificamente a profissão de medicina, cuja necessidade de regulamentação é evidente, a Lei nº 12.842/2013 indica as atividades privativas de médicos habilitados, com destaque para função de ‘’indicação da execução e execução de procedimentos invasivos’’ (art. 4º, inc. III).

O mesmo dispositivo busca elencar o conceito de ato médico (art. 4º, §4º, inc. III), esclarecendo que se considera invasivo a ‘’invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos’’, ressalvando a possibilidade de realização de ‘’procedimentos invasivos por outros profissionais, que não da área médica, quando feitos por orifícios naturais em estruturas anatômicas visando à recuperação físico-funcional e não comprometendo a estrutura celular e tecidual (art. 4º, § 5º, inc. IX).

Note-se, porém, que a referida legislação, embora tenha despendido um considerável esforço para densificar o conceito de procedimentos invasivos, ainda remanesce uma larga margem de indeterminação quanto ao alcance da restrição e de um conceito a respeito do ato de privativo de médico.

Em linha de desdobramento, o Conselho Federal de Medicina, no exercício de suas atribuições, edita sucessivos atos normativos, ditando o que compreende ser ou não condutas privativas de médicos. Considerando, porém, que seus atos encontram fundamento na própria lei, é sabido que não é dado ao Conselho Profissional ampliar o conceito de ato médico além do que a legislação permite, sob pena de instaurar uma crise de legalidade.

Nesse sentido, recorrendo às lições de José Afonso da Silva, o mestre pondera que é, pois, à lei, e não ao regulamento, que compete indicar condições de aquisição ou restrição de direito. Ao regulamento só pode assistir, à vista das condições preestabelecidas, a especificação delas. (...) Deveras, disciplinar certa matéria não é conferir a outrem o poder de discipliná-la. Fora isto possível, e a segurança de que ‘ninguém poderá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’, deixaria de se constituir em proteção constitucional.5

Além dessa restrição constitucional, dada a natureza infralegal dos atos que são emitidos pelo Conselho Profissional de Medicina, não raro, o conteúdo veiculado esbarra e colide com outros atos normativos editadas por outros Conselhos Profissionais, os quais, sabidamente, gozam de igual hierarquia e possuem idêntica capacidade de regulamentação que o próprio CFM.

Ilustrando esse conflito regulamentar, por exemplo, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, deu provimento ao recurso de apelação que julgou improcedente ação civil pública, proposta pelo Conselho Federal de Medicina, a qual tinha por objeto declarar a ilegalidade da Resolução nº 573/2013, editada pelo Conselho Federal de Farmácia – CFF, a qual permitia a realização de procedimentos estéticos por farmacêuticos.

A Corte Regional compreendeu que ‘conforme documentos colacionados aos autos, que os procedimentos estéticos, tais como o botox, peelings, preenchimentos, laserterapia, bichectomias e outros, rompem as barreiras naturais do corpo, no caso, a pele, com o uso de instrumentos cirúrgicos e aplicação de anestésicos, obviamente, não podem ser considerados "não invasivos". Além disso, tais procedimentos estéticos podem resultar em lesões de difícil reparação, deformidades e óbito do paciente. 6. Vale registrar, ainda, as seguintes passagens do voto condutor do acórdão:

Atualmente, existem pelo menos 13 profissões relacionadas à área da saúde, em que o campo de atuação é delimitado pela lei, acima de quaisquer interesses e objetivos das respectivas categorias profissionais, primando-se o interesse público. Diversos Conselhos profissionais (Odontologia, Biomedicina e Enfermagem) tem editado resoluções para habilitar seus profissionais à execução de procedimentos estéticos invasivos, originando demandas judiciais com o Conselho Federal de Medicina. 

Ressalte-se, que os profissionais não-médicos da área de saúde estão impedidos de praticar atos médicos, em procedimentos estéticos tidos como invasivos em maior ou menor grau, porquanto não há respaldo legal em simples regulamentações emitidas pelos Conselhos, pois o normativo infralegal não tem o condão de restringir ou ampliar o exercício profissional. Ou seja, a lei dispõe sobre os limites do campo de atuação profissional, considerando a jurisdição dos respectivos órgãos de fiscalização profissional, nos termos do inciso XIII, artigo 5º da Constituição Federal.

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Porém, é de se ver que alguns dos procedimentos estéticos citados pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, mais notadamente a aplicação da toxina botulínica, são atualmente aplicados por profissionais dos mais diversos ramos e amplamente divulgados ao público.

Estariam todos esses profissionais invadindo atos privativos de médicos, nos termos do art. 4º, inc. III, da Lei nº 12.842/2013?

Situação similar pode ser verificada no âmbito da Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que discutiu, ainda que em caráter incidental, o teor Resolução n.º 241/2014 do Conselho Federal de Biomedicina (CFBM), que teria permitido a profissionais sem habilitação técnica a realização de procedimentos estéticos invasivos, notadamente a aplicação da toxina botulínica.

Essas decisões, as quais são apenas uma amostragem da discussão, demonstram que a regulamentação dos procedimentos estéticos ainda é precária no Brasil, situando-se em um terreno de incerteza em relação às competências e atribuições específicas que tocam a cada profissão.

Por certo, esse quadro nebuloso não afeta apenas os Conselhos e os profissionais, mas se alarga para atingir os próprios consumidores e os órgãos de fiscalização, os quais, diante desse emaranhado de normas infralegais conflitantes, não são capazes de obter um grau de certeza quanto à habilitação e capacitação profissional para cada procedimento que é disponibilizado ao público.

A aplicação do peeling de fenol, portanto, soma-se a tantos outros procedimentos estéticos que possuem uma regulamentação fragmentada e imprecisa.

Nesse contexto, somente uma lei em sentido formal é capaz de garantir um mínimo de segurança jurídica para todo ramo dos procedimentos estéticos. Parece necessário que o Congresso Nacional reconheça esse estado de coisas gerado pela vagueza dos conceitos imprimidos na Lei nº 12.842/2013, viabilizando o estabelecimento de regras claras sobre o desenvolvimento dos procedimentos estéticos.

Afinal, uma regulamentação mais precisa certamente contribuirá na prevenção de tragédias como a recém verificada no Estado de São Paulo, já que permitirá que os próprios consumidores acessem informações precisas a respeito das qualificações necessárias para a realização do procedimento que pretendam realizar, assegurando o próprio direito básico assegurado pelo art. 6º, inc. III7, do Código de Defesa do Consumidor.

Certamente trará, também, mais segurança para o exercício do poder de polícia pelos órgãos fiscalizadores, em especial os próprios Conselhos Profissionais, os quais não necessitarão ingressar no Judiciário para desconstituir permissões alheias que entendam indevidas.


  1. https://www.sbd.org.br/peeling-de-fenol-nota-tecnica-da-sociedade-brasileira-de-dermatologia/

  2. https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2024/anvisa-proibe-venda-e-uso-de-produtos-a-base-de-fenol-em-procedimentos-de-saude-em-geral-ou-esteticos

  3. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. 10ª edição. rev. e atual. Saõ Paulo. Saraiva, 2015, p. 202.

  4. (RE 414.426, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, j. 01.08.2011, DJe-194, Divulgação 07.10.2011, Público. 10.10.2011, Menu vol02604-01, p. 76).

  5. MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 317.

  6. TRF-1 - AC: 00617558820134013400, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL ÂNGELA CATÃO, Data de Julgamento: 10/04/2018, SÉTIMA TURMA, Data de Publicação: 20/04/2018.

  7. Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...)  III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;            (Redação dada pela Lei nº 12.741, de 2012)   Vigência

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Sobre o autor
Pablo Kipper Aguilar

Graduado em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Assessor do Ministério Público Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUILAR, Pablo Kipper. Estética insegura?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7683, 14 jul. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110105. Acesso em: 7 set. 2024.

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