1. Considerações gerais sobre o direito fundamental à liberdade de locomoção
O direito à liberdade, definido por Jean Rivero como "o poder de autodeterminação, em virtude do qual o homem escolhe por si mesmo seu comportamento pessoal" [01], surgiu como reação aos arbítrios e às violações das monarquias absolutistas, despontando, formalmente, no mundo moderno, com a Magna Carta de 1215. Desde então, vem sendo reconhecido na generalidade das Constituições dos Estados Democráticos de Direito, a exemplo da Carta Constitucional brasileira.
Em seu contorno jurídico atual, o direito fundamental à liberdade comporta diversas outras liberdades, como a liberdade de locomoção, de pensamento, de opinião, de religião, de consciência e artística. Quanto à primeira delas – a liberdade de locomoção -, é cediço que representa o direito do indivíduo de ir, vir, ficar, permanecer, bem como de circular pelas vias públicas [02].
Com seu indubitável caráter de direito fundamental, a liberdade de locomoção encontra-se consagrada, no ordenamento jurídico brasileiro, no art. 5º, XV, da Constituição, que assim dispõe: "É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens". Afora esse dispositivo, há outros artigos constitucionais que a tutelam, também, ainda que indiretamente, a exemplo do art. 5º, LXI, que veda a prisão ilegal [03].
Como direito fundamental, a liberdade de locomoção possui as características típicas dessa natureza de direito, tais como: a universalidade [04], a indivisibilidade [05], a complementaridade [06], a interdependência [07] e a imprescritibilidade [08]. Apresenta, de igual modo, força normativa que atinge tanto o Estado, informando suas atividades políticas, administrativas, judiciais e legislativas [09], como os particulares, através da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Drittwirkung).
Por outro lado, assim como todos os direitos, o direito fundamental à liberdade de locomoção não é um direito ilimitado, sendo passível de restrições, de limitações. Com efeito, em certas circunstâncias, a própria Constituição autoriza a restrição ao direito de liberdade de locomoção, quer de forma imediata (restrições previstas diretamente no corpo constitucional), quer de forma mediata (restrições realizadas através de autorização expressa ou tácita [10] da Constituição ao legislador ordinário) [11], independentemente de haver ou não tempo de guerra [12].
Nesse contexto, é certo que as leis restritivas do direito à liberdade de locomoção, bem como as que venham restringir qualquer outro direito fundamental, devem respeitar o "limite dos limites", que é a observância ao princípio da não-retroatividade [13], da generalidade [14], da abstração e da proporcionalidade, em seu triplo aspecto (adequação, necessidade e razoabilidade). Outrossim, tais leis devem sempre resguardar o núcleo ou conteúdo essencial do direito fundamental a que se refere, que consiste, na definição de Peter Häbeler [15], naquele âmbito dentro do qual não há nenhum outro bem jurídico, de igual ou superior importância, que seja legitimamente limitador do direito fundamental [16].
Por fim, convém registrar que a liberdade de locomoção pode colidir com outro direito ou valor constitucionalmente protegido. Nesse caso, haverá um conflito a ser resolvido através do uso do princípio da harmonização ou da concordância prática, que, por meio de um juízo de ponderação [17], irá "coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição de princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas", como ensina Alexandre de Moraes [18]. Na impossibilidade de uma coordenação, o princípio em pauta indicará o interesse de maior peso que deverá prevalecer em determinada situação de fato, no âmbito de uma relação denominada de relação de precedência condicionada, haja vista que, como leciona Robert Alexy, a precedência de um interesse sobre o outro se condiciona às circunstâncias do caso concreto, que, se alteradas, poderão ocasionar uma solução de precedência inversa [19].
2. O direito à liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes
Na qualidade de sujeitos de direitos, as crianças e os adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana [20], dentre os quais se encontra o direito à liberdade, que lhes é assegurado, expressamente, pelo art. 227, caput, da Constituição Federal brasileira de 1988 [21].
Regulamentando o citado dispositivo constitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 15, estabelece: "A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis" [22]. Logo em seguida, em seu art. 16, dispõe sobre vários aspectos do direito à liberdade infanto-juvenil, sendo o primeiro deles referente à liberdade de locomoção, ou seja, à liberdade de "ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais".
Embora titulares da liberdade de locomoção desde o nascimento (capacidade de direito) [23], as crianças e os adolescentes não podem exercitá-la livremente (capacidade de exercício), enquanto não atinjam o necessário grau de maturidade biopsicossocial. A própria lei retira a autonomia, ou a autonomia absoluta, dos menores de determinada idade e assim o faz em caráter protetivo, à vista da maior suscetibilidade e fragilidade desses frente aos perigos da vida.
As restrições legais à liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes podem decorrer do normal exercício do poder familiar ou das próprias funções do Estado. De uma forma ou de outra, é inegável que possuem, no ordenamento jurídico brasileiro, um denominador comum: o art. 227 da Constituição, que consagra a proteção integral da criança e do adolescente a cargo da família, do Estado e da sociedade.
É certo ainda que, em algumas hipóteses, tais restrições possuem fins adicionais (além da proteção das crianças e dos adolescentes), como a defesa da ordem pública e dos direitos alheios, conforme se verá adiante. Em todo caso, deverão observar os já explanados "limites dos limites" dos direitos fundamentais: devem resultar de leis não-retroativas, genéricas, abstratas e proporcionais, que preservem o núcleo essencial da liberdade da criança e do adolescente, sob pena de interposição do remédio constitucional do habeas corpus, utilizável sempre que alguém sofrer, ou seja ameaçado de sofrer, violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder [24].
3. As restrições à liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes decorrentes do poder familiar
A família, seja ela biológica ou substituta, é co-responsável, nos termos do art. 227, caput, da Constituição, juntamente com o Estado e a sociedade, pela garantia dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. A obrigação constitucional se estende a todo o núcleo familiar, composto pelos ascendentes, bem como pelos colaterais próximos. Todavia, não há como negar que os responsáveis imediatos por tal obrigação são os titulares do poder familiar [25], isto é, os titulares do conjunto de poderes-deveres [26] irrenunciáveis, inalienáveis e originários, mediante os quais os genitores, biológicos ou adotivos [27], assumem a responsabilidade pelos seus filhos menores [28].
O Estatuto da Criança e do Adolescente, a esse respeito, em seu art. 22, preceitua que são deveres dos pais para com os filhos menores os de sustento, de guarda e de educação, bem como o de fazer cumprir as determinações judiciais no interesse da criança e do adolescente.
A obrigação de sustento compreende a assistência material em todos os seus aspectos. Por seu turno, o dever de educação objetiva a formação moral, intelectual e espiritual do menor. Já a incumbência de guarda, como leciona Tânia da Silva Pereira, consiste na efetiva custódia e vigilância que os pais devem ter no direcionamento das ações da criança e do adolescente, como forma de protegê-los das influências nocivas à sua formação [29].
Observa-se, claramente, da leitura dessas definições, que do dever de educação e do dever de guarda, decorre o poder - dever dos pais de restringir a liberdade de locomoção dos filhos menores, como forma de resguardá-los e de lhes garantir um sadio desenvolvimento biopsicossocial. Podem assim, nesse esteio, proibir que os filhos menores freqüentem determinados lugares ou que circulem nas ruas em horários avançados ou ainda desacompanhados ou em má companhia, respeitando, sempre, a gradativa maturidade dos filhos. Isso porque, nas palavras de Rosa Cândido Martins, "a função protectora dos pais deve ser inversamente proporcional ao desenvolvimento físico, intelectual, moral e emocional dos filhos" [30].
Assim, dentro dos limites do razoável, compete aos pais decidir sobre a medida da liberdade a ser concedida aos seus filhos, sem que haja, nesse aspecto, interferência do Estado [31]. No entanto, em casos de abusos ou omissões, torna-se necessária a intervenção estatal, para fazer valer, em nome da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a liberdade de locomoção dos filhos [32]. Para tanto, há a previsão de tipos penais [33] (como o de abandono intelectual [34] e o de cárcere privado de descendente [35], previstos no Código Penal brasileiro) e de medidas cíveis (como as medidas de perda e de suspensão do poder familiar, estabelecidas, respectivamente, nos arts. 1.637 e 1.638, do Código Civil brasileiro [36]), que punem o uso irregular, desproporcional do poder em questão [37]. A propósito, Carla Fonseca destaca que a família não se beneficia de maior tolerância relativamente a qualquer abuso, uma vez que, justamente em seu seio, deve ser o espaço de maior segurança, do maior afeto, da melhor compreensão dos filhos menores [38].
Outrossim, no nosso entender, o Estado também poderá intervir contra os abusos e omissões do poder familiar sobre a liberdade de locomoção do filho criança ou adolescente através da apreciação de habeas corpus [39]. Nesse diapasão, Alexandre de Moraes salienta: "Na maior parte das vezes, a ameaça ou coação à liberdade de locomoção por parte do particular constituíra crime previsto na legislação penal, bastando a intervenção policial para fazê-la cessar. Isso, porém, não impede a impetração do habeas corpus, mesmo porque existirão casos em que será difícil ou impossível a intervenção da polícia para fazer cessar a coação ilegal" [40].
Por derradeiro, merece registro que os próprios titulares do poder familiar podem recorrer ao Estado quando divergirem entre si sobre as restrições da liberdade de locomoção dos filhos, tal como prevê o art. 1.631, parágrafo único, do Código Civil brasileiro [41].
4. As restrições à liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes decorrentes do poder estatal
O Estado tem o dever de restringir a liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes com o intento de garantir sua efetiva proteção integral. Por outro lado, possui, de igual modo, a obrigação de restringir a liberdade de qualquer pessoa, sempre que necessário para assegurar a ordem pública e os direitos fundamentais alheios [42].
Em face dessa diversidade de fins (exclusivamente protetivos ou não), classificamos as restrições estatais à liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes em: restrições estatais de natureza puramente protetiva e restrições estatais de natureza mista [43], que são as denominadas medidas sócio-educativas, conforme passaremos a analisar.
4.2 Restrições estatais de natureza puramente protetiva
Ao longo do texto do Estatuto da Criança e do Adolescente, encontramos várias medidas restritivas da liberdade de locomoção infanto-juvenil de cunho estritamente protetivo.
Destacamos, primeiramente, a medida prevista no art. 83 do Estatuto, que proíbe que a criança viaje para fora da comarca onde reside desacompanhada dos pais ou responsável ou sem expressa autorização judicial [44]. Já nos dois artigos subseqüentes, há o impedimento de que criança ou adolescente viaje para o exterior desacompanhado de ambos os pais ou na companhia de um deles, mas sem a autorização expressa do outro (através de documento com firma reconhecida) ou, ainda, sem autorização judicial. A outra proibição é a de que qualquer criança ou adolescente nascido no território nacional não pode sair do país, sem prévia e expressa autorização judicial, na companhia de estrangeiro residente ou domiciliado no exterior. Há, nesses casos, restrições diretas ao preceito contido no art. 5º, XV, da Constituição de 1988, que prevê a livre locomoção no território nacional. Porém, todas elas buscam proteger a criança e o adolescente contra perigos rotineiros, a exemplo do tráfico interestadual e internacional de menores para alimentar a prostituição infanto-juvenil e do mercado criminoso de venda de órgãos.
O art. 75 do Estatuto, por sua vez, determina que todas as crianças e todos os adolescentes só terão acesso às diversões e espetáculos públicos, quando classificados como adequados à sua faixa etária, vedando-se a entrada de menores de 10 anos, caso não estejam acompanhados dos pais ou responsável. De forma semelhante, o art. 80 proíbe a presença de crianças e adolescentes em estabelecimentos que explorem comercialmente bilhar, sinuca ou jogos de aposta.
Em seu art. 149, o Estatuto veio conferir ao juiz competente pela Justiça da Infância e da Juventude o poder de disciplinar, através de portarias, ou autorizar, através de alvarás, sempre de forma fundamentada e casuística, a entrada e a permanência de criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, em determinados locais, bem como a sua participação em certos eventos [45]. Tem-se, aqui, as denominadas intervenções restritivas, que consistem, na lição de J. J. Gomes Canotilho, em atos ou atuações das autoridades públicas restritivamente incidentes, de modo concreto e imediato, sobre um direito [46].
Poder-se-ia indagar, nesse contexto, se o juiz da infância e da juventude tem poder para baixar portaria, restringindo a liberdade de locomoção da criança e do adolescente, fora dos casos previstos no aludido art. 149, do Estatuto. No nosso entender, a resposta é positiva [47], desde que a intervenção judicial restritiva seja estritamente necessária, adequada e razoável para resguardar outros direitos fundamentais infanto-juvenis [48]. Tal portaria, por conseguinte, encontraria seu fundamento não no artigo estatutário em comento, mas diretamente no art. 227, caput, da Constituição, que conclama a co-responsabilidade do Estado (inclusive Estado-juiz) pela proteção integral da criança e do adolescente. Assim, a título de exemplo, afirmamos ser legítima uma portaria da Justiça da Infância e da Juventude, que, sobre os auspícios da proteção integral, venha coibir a permanência de menores de idade, em determinados horários, em locais públicos onde notoriamente se pratique prostituição ou se comercialize substâncias entorpecentes, mesmo que haja autorização do titular do poder familiar em sentido contrário [49].
Outra forma de restrição estatal de natureza puramente protetiva é a de acolhimento em abrigos [50] de criança ou de adolescente em situação de risco social [51], que ocorre nas hipóteses previstas no art. 98, do Estatuto: violação ou ameaça de violação aos direitos da criança ou adolescente pela falta ou omissão do Estado ou da sociedade; pela falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; ou ainda em razão da sua própria conduta.
Quanto ao assunto, é questionável se a colocação de crianças e adolescentes em abrigo pode dar ensejo à impetração de habeas corpus, quando se pretenda discutir a legalidade da medida. Enfrentando questão similar, o Tribunal Constitucional Espanhol decidiu que a medida de acolhimento de menor em centro assistencial não é medida privativa de liberdade, não comportando, desde modo, habeas corpus [52].
Em sentido contrário, entendemos que a medida protetiva de abrigo pode ser questionada via habeas corpus. Isso por que vislumbramos que ela incide diretamente sobre a liberdade de locomoção da criança e do adolescente, restringindo-a, limitando-a. Possui, conseqüentemente, inegável caráter de restrição de liberdade, que tem por fim exclusivo a proteção do menor de idade. Por outro lado, o habeas corpus é o remédio jurídico cabível sempre que a restrição ou ameaça de restrição à liberdade de locomoção seja ilegal ou abusiva, independentemente do fim que persiga. Portanto, em um silogismo lógico, havendo ilegalidade ou abuso, poder-se-á, perfeitamente, interpor habeas corpus contra medida protetiva de acolhimento de criança ou de adolescente em abrigo.
Já no que diz respeito à colocação em abrigos de crianças e adolescentes abandonados - os conhecidos "meninos de rua" –, a doutrina diverge sobre a possibilidade ou não de aplicação compulsória da medida. Dentre os posicionamentos favoráveis, destacamos o de Luciana de Oliveira Leal. No entender da autora, o Estado tem o dever de abrigar crianças e adolescentes abandonados [53], mesmo contra a vontade desses, haja vista que, conforme argumenta, se tais menores de idade estivessem sobre o regular poder familiar, também teriam sua liberdade de locomoção restringida.
Concordando em parte com o referido posicionamento, sustentamos que o Estado possui a irrefutável obrigação de substituir os pais, quando ausentes, nos deveres de guarda, de educação e de sustento da criança e do adolescente, posto que é co-responsável da obrigação solidária de proteção integral (art. 227, caput, da Constituição) [54]. Nesse norte, não pode permitir que crianças e adolescentes façam das ruas as suas moradas, expondo-se a todos os tipos de perigo. Não há dúvida de que a omissão do poder estatal dá espaço a tragédias, como a da Candelária, no Estado do Rio de Janeiro, em que oito crianças foram mortas por "justiceiros" durante o sono [55]. A propósito, enfatiza Luciana de Oliveira Leal que há o direito de liberdade de locomoção da criança e do adolescente, mas há também, principalmente, o direito à vida, à dignidade, à proteção integral devida pela família, pela sociedade e pelo Estado [56], que autorizam as restrições daquela liberdade. No mesmo sentido, afirma Peter Häbeler, parafraseando Peters, que "forma parte de la esencia misma de la libertad el que ésta venga delimitada en relación a fines más altos" [57].
Ocorre que, a pretexto de proteger a criança e o adolescente, não pode o Estado trancafiá-los entre grades e cercas, cerceando, por completo, a sua liberdade de locomoção, assim como não poderia fazer o titular do poder familiar, sob pena de cometimento de crime de cárcere privado. De fato, tratar um menor abandonado como menor infrator é retroagir ao antigo cenário do Código de Menores de 1979 e da ultrapassada doutrina da situação irregular, impondo-lhe castigo pelo simples fato de já ser pela vida castigado.
Entendemos, portanto, que a melhor solução reside no dever do Estado de oferecer abrigos, mas abrigos de portas abertas, em que a permanência da criança e do adolescente seja garantida pelo tratamento que lhes é dispensado, pelas alternativas que lhes são ofertadas e não pelos ferros dos portões.
4.3 Restrições estatais de natureza mista
Como visto, o Estado pode impor medidas restritivas da liberdade de locomoção da criança e do adolescente, visando resguardar, paralelamente, a ordem pública e os direitos fundamentais alheios, violados ou ameaçados de violação, em face de conduta do próprio menor, que tenha contrariado os preceitos da lei penal [58].
É verdade que a inimputabilidade penal dos menores de 18 anos, consagrada pela Constituição, não afasta a responsabilidade pela prática de fatos típicos, antijurídicos e culpáveis [59]. O menor, embora inimputável, é sujeito à responsabilização juvenil, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente [60], que ressalva, apenas, a irresponsabilidade absoluta das crianças (menores de 12 anos), às quais se aplicam, tão-somente, as medidas protetivas enumeradas no seu art. 101 [61].
Assim, se um adolescente praticar conduta equivalente a crime ou a contravenção penal, será por isso responsabilizado, podendo sofrer, inclusive, restrição da sua liberdade de locomoção. Isso acontece através das medidas sócio-educativas de internamento ou de semi-liberdade, previstas ao lado das medidas sócio-educativas de advertência, de reparação do dano, de prestação de serviços à comunidade, de liberdade assistida e das denominadas medidas sócio-educativas impróprias, que são as medidas de proteção aplicadas ao autor de ato infracional [62].
As medidas sócio-educativas privativas de liberdade, bem como as demais medidas aludidas, possuem evidente caráter de sanção, embora apresentem prevalente conteúdo pedagógico [63]. À vista disto, devem se pautar nos ditames do princípio da proporcionalidade: necessitam ser adequadas para a proteção e a reeducação do adolescente e para a preservação da ordem pública e dos direitos alheios; devem ser estritamente necessárias, representando uma "ultima ratio", somente aplicáveis diante da ineficácia das demais espécies de medidas; e ainda precisam ser proporcionais em sentido estrito, para repreender na justa medida da gravidade do fato e da lesão jurídica produzida, atendendo às necessidades de educação e de proteção do adolescente.
À luz do princípio da proteção integral, as medidas sócio-educativas restritivas de liberdade só podem ser aplicadas pelo Estado quando observadas todas as garantias constitucionais e processuais asseguradas aos imputáveis. Nesse sentido, enfatiza João Batista Costa Saraiva: "Não pode o adolescente infrator, dependendo da natureza do ato infracional que se venha a atribuir, receber de parte da Justiça Especial da Infância e da Juventude tratamento mais rigoroso do que aquele que é direcionado ao adulto (maior de 18 anos) pela Corte Penal, sob pena de estarmos a subverter um sistema e negar vigência à Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança, na medida em que se nega ao adolescente a quem se atribui a prática de um ato infracional um direito que se reconhece a um adulto pelo mesmo fato" [64]. Logo, são reconhecidas aos adolescentes, dentre outras, as seguintes garantias: garantia do devido processo legal; do contraditório; da ampla defesa; da presunção de inocência; do juízo natural; da proibição de provas ilícitas; da proibição de apreensão sem que haja flagrante delito ou ordem judicial escrita e fundamentada [65]; do respeito ao princípio da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade [66]; e do princípio in dubio pro libertate [67]. Por outro lado, deverão ainda ser respeitadas as garantias especificamente reconhecidas ao adolescente infrator pelo art. 227, § 3°, da Constituição: garantia do pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional; de igualdade na relação processual; de defesa técnica por profissional habilitado; e da observância aos princípios da brevidade, da excepcionalidade e do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quanto às medidas de privação de liberdade [68].
O Estatuto da Criança e do Adolescente, regulamentando o princípio constitucional da excepcionalidade das medidas sócio-educativas restritivas de liberdade, estabelece, em seu art.122, que só se aplicará a medida de internação nas seguintes hipóteses: a) Tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência contra pessoa: aqui, a lei foi taxativa, pelo que não é cabível a internação pela prática de atos infracionais em que não haja ameaça ou violência contra pessoa, mesmo que sejam graves, a exemplo do correspondente ao tipo de tráfico de drogas, como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça [69]; b) Por reiteração no cometimento de outras infrações graves: a reiteração não se confunde com a reincidência. A propósito, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que só se justifica a aplicação da internação quando houver reiteração por, no mínimo, três vezes [70]. No entanto, discordamos deste posicionamento, por compreender que esta interpretação objetiva pode dar margem a perigosos sentimentos de impunidade e de injustiça. Nesse sentido, salienta Emílio Garcia Mendez: "Contribuir com a criação de qualquer tipo de imagem que associe a adolescência com impunidade (de fato ou de direito) é um desserviço que se faz ao adolescente, assim como, objetivamente, uma contribuição irresponsável às múltiplas formas de justiça com as próprias mãos, com as quais o Brasil desgraçadamente possui uma ampla experiência" [71]; c) Por descumprimento reiterado e injustificável de medida anteriormente imposta: é a denominada "internação sanção", aplicada pelo prazo máximo de 03 meses, com a devida observância do princípio do contraditório e da ampla defesa [72]. Nesta hipótese, não importa se a medida anterior descumprida tenha sido estabelecida em sede de sentença, que julgou a ação sócio-educativa ou em sede de decisão homologatória ou concessiva de remissão [73].
Outrossim, o Estatuto ainda prevê a possibilidade de decretação, mediante ordem fundamentada, de medida cautelar de internação provisória do adolescente pelo prazo máximo e improrrogável de 45 dias [74], bem como de sua apreensão em flagrante de ato infracional [75]. Em ambos os casos, exigem-se os pressupostos da gravidade do fato, da repercussão social, da garantia da ordem pública e da garantia da segurança do adolescente, previstos no art. 174, do referido diploma legal [76]. Analisando tais pressupostos, afirma Antônio Fernando do Amaral e Silva, que a gravidade do fato se dá quando o ato infracional praticado equivale a crime punido com reclusão; a repercussão social é a que causa alarma, revolta, provocada pelas circunstâncias e conseqüências do ato; a garantia da ordem pública se reportar à necessidade de se evitar que o adolescente cometa outras infrações; e a garantia da segurança pessoal do adolescente se refere à possibilidade de ameaça de vindita popular, do ofendido, ou de sua família, contra o menor [77].
Finalmente, devemos registrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente assegura, em seu art. 124, vários direitos ao adolescente privado de liberdade, que constituem, nas palavras de Emílio Garcia Mendez,"uma ‘Revolução Francesa’, com mais de 200 anos de atraso, no mundo dos adolescentes privados de sua liberdade" [78]. Dentre esses direitos, destacamos os seguintes: a) direito de ser tratado com respeito e dignidade; b) de ser internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável (decorre do direito fundamental à convivência familiar); c) de receber escolarização e profissionalização; d) de receber assistência religiosa; e) de realizar atividades externas, salvo expressa determinação judicial em contrário [79]; f) de reavaliação periódica, no máximo a cada 06 meses, sobre a necessidade de manutenção da medida; g) de não ser interno por período superior a 03 anos, contado separadamente para cada medida imposta, segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça [80]; h) de liberação compulsória, com o implemento da idade de 21 anos [81]; i) de cumprir a medida em entidades exclusivas para adolescentes [82]; j) de entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério Público; l) de peticionar diretamente a qualquer autoridade; m) de avistar-se reservadamente com o seu defensor. Em suma, o adolescente autor de ato infracional possui todos os direitos e prerrogativas do adulto, bem como aqueles exigidos pela sua peculiar condição de pessoa em fase de desenvolvimento biopsicossocial.