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A aplicação da Lei Maria da Penha em mulheres trans

04/08/2024 às 22:06

Resumo:


  • A Lei Maria da Penha deve ser aplicada às mulheres trans para garantir sua proteção contra a violência doméstica, considerando a igualdade e dignidade previstas na Constituição de 1988.

  • É crucial uma abordagem sensível e específica para as mulheres trans, considerando as discriminações enfrentadas e promovendo uma cultura de respeito à diversidade de gênero.

  • A evolução da jurisprudência em reconhecer a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans é um avanço, porém, é necessário um esforço contínuo para garantir uma proteção integral e equitativa para todas as mulheres.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A análise da efetividade da Lei Maria da Penha para mulheres trans requer uma abordagem holística, considerando não apenas os aspectos punitivos, mas também medidas preventivas e educativas.

RESUMO: O presente projeto surge da necessidade de discutir a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans. Este projeto sustenta a necessidade de garantir a essas mulheres as proteções previstas por essa legislação. Vale ressaltar que a aplicação da lei é crucial, uma vez que essas mulheres estão ainda mais sujeitas à violência no âmbito doméstico. Além disso, considerando que a Constituição de 1988 estabeleceu como fundamento a igualdade irrestrita para todos, é imperativo que a lei assegure os direitos dessas mulheres.

Ainda no escopo da proteção legal, é crucial considerar a dimensão das discriminações enfrentadas pelas mulheres trans, não apenas no âmbito doméstico, mas em diversas esferas da sociedade. A marginalização social e a falta de compreensão acerca das identidades de gênero podem intensificar a vulnerabilidade dessas mulheres, destacando a importância de uma legislação específica e sensível a essas realidades.

Além disso, a análise da efetividade da Lei Maria da Penha para mulheres trans requer uma abordagem holística, considerando não apenas os aspectos punitivos, mas também medidas preventivas e educativas. É fundamental fomentar uma cultura que promova o respeito à diversidade de gênero e a conscientização sobre as particularidades das mulheres trans, contribuindo assim para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Nesse sentido, o presente projeto visa não apenas abordar as lacunas na legislação, mas também propor reflexões sobre práticas que possam fortalecer a proteção integral dessas mulheres em conformidade com os princípios constitucionais de igualdade e dignidade.

PALAVRAS CHAVE: Direitos Constitucional. Mulheres Trans. Igualdade. Lei Maria da Penha (11.340/06). Constituição Federal. Princípios Constitucionais. Proteção.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho emerge da necessidade incontestável de debater a aplicação da Lei Maria da Penha no contexto das mulheres trans. Embora nossa legislação reconheça a igualdade para todos, é evidente que, na prática, enfrentamos diversas situações de desigualdade. No âmbito doméstico, não é raro testemunhar a violação dos direitos das mulheres, seja por meio de violência física, patrimonial ou psicológica.

Além disso, o mercado de trabalho contribui para agravar essa disparidade, com mulheres frequentemente submetidas a salários significativamente inferiores aos dos homens, mesmo desempenhando muitas vezes jornadas de trabalho mais extensas. As mulheres trans enfrentam uma situação ainda mais desafiadora. Diante desse cenário, a Lei Maria da Penha se apresenta como uma resposta necessária para as mulheres.

Neste contexto, é incontestável que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada às mulheres trans. Afinal, a Constituição Federal não faz distinções entre indivíduos. Ao longo deste trabalho, defenderemos a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans em todos os seus aspectos, buscando não apenas garantir a efetivação dessa aplicação, mas também promover uma análise mais aprofundada e abrangente da legislação de proteção ao sexo feminino. A Lei não apenas merece ser estendida às mulheres trans, mas também requer uma apreciação mais minuciosa e sensível.

A desigualdade de gênero, lamentavelmente, reflete-se de maneira aguda no cotidiano das mulheres, transpondo barreiras que vão além do ambiente doméstico e profissional. A interseccionalidade das discriminações enfrentadas pelas mulheres trans agrava essa realidade, impactando não apenas sua inserção no mercado de trabalho, mas também sua vulnerabilidade diante da violência.

Contudo, ao abordarmos a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans, é imprescindível considerar não apenas a extensão da proteção legal, mas também a eficácia dessas medidas na prática. Nesse sentido, é fundamental analisar criticamente o sistema jurídico, propondo não apenas a inclusão formal, mas também a implementação de políticas e práticas que assegurem uma proteção verdadeiramente igualitária para todas as mulheres, independentemente de sua identidade de gênero.

Assim, ao debatermos a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans, não apenas reconhecemos a urgência dessa inclusão, mas também assumimos o compromisso de buscar soluções práticas que transformem o papel da legislação de proteção feminina em uma realidade efetiva e justa para todas as mulheres, independentemente de sua identidade de gênero.

CONTEXTO HISTÓRICO DA CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA E SEUS MECANISMOS DE PROTEÇÃO

A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, representa um marco histórico na legislação brasileira destinada à proteção da mulher contra a violência doméstica e familiar. Seu nome homenageia Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica que, após anos de luta, viu sua história transformada em um símbolo de resistência e busca por justiça. A criação dessa legislação reflete a necessidade de enfrentar um problema persistente e grave no Brasil, reconhecendo a urgência de medidas específicas para proteger as mulheres em situações de violência.

A Lei Maria da Penha apresenta diversos instrumentos para a efetivação da proteção da mulher. Dentre eles, destaca-se a criação de medidas protetivas, que incluem o afastamento do agressor do lar, a proibição de contato com a vítima e o monitoramento por meio de tornozeleira eletrônica. Além disso, a lei estabelece mecanismos para a assistência integral às vítimas, como o acesso a serviços de saúde, sociais e psicológicos, consolidando uma abordagem multidisciplinar.

No entanto, ao analisarmos a Lei Maria da Penha no contexto das mulheres trans, observamos desafios particulares que demandam uma reflexão mais profunda sobre a eficácia e inclusividade dessa legislação. As mulheres trans enfrentam não apenas a violência de gênero, mas também a interseção com a transfobia, o que intensifica sua vulnerabilidade. É imperativo, portanto, considerar como a Lei Maria da Penha pode ser adaptada e expandida para abranger as especificidades das experiências das mulheres trans, garantindo uma proteção abrangente e equitativa para todas as mulheres. Essa análise crítica busca não apenas reconhecer a importância da legislação existente, mas também propor ajustes que assegurem a efetiva proteção e inclusão de todas as mulheres, independentemente de sua identidade de gênero.

A EVOLUÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA NO AMBITO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES DE JUSTIÇA E SUA REPERCUSSÃO SOBRE A VIDA DA MULHER TRANS

A aplicação da Lei Maria da Penha nos tribunais brasileiros tem sido pauta de intensos debates jurídicos, refletindo uma evolução significativa na compreensão e enfrentamento da

violência contra a mulher. Inúmeras jurisprudências consolidaram a interpretação ampliativa do alcance da lei, abrangendo não apenas a violência física, mas também formas de violência psicológica e patrimonial.

A exemplo, traz-se a baila um julgamento realizado perante o Superior Tribunal de Justiça, no qual foi reconhecida a implicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans. Vejamos:

EMENTA: RECURSO1 ESPECIAL. MULHER TRANS. VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. APLICAÇÃO DA LEI N. 11.340/2006, LEI MARIA DA PENHA. CRITÉRIO EXCLUSIVAMENTE BIOLÓGICO. AFASTAMENTO. DISTINÇÃO ENTRE SEXO E GÊNERO. IDENTIDADE. VIOLÊNCIA NO AMBIENTE DOMÉSTICO. RELAÇÃO DE PODER E MODUS OPERANDI. ALCANCE TELEOLÓGICO DA LEI. MEDIDAS PROTETIVAS. NECESSIDADE. RECURSO PROVIDO.

RELATOR: MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ. RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO RECORRIDO : L A DA S F. ADVOGADOS: ARILDO PEREIRA DE JESUS - P136588 DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO

Ainda, outro marco para a questão foi o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer a constitucionalidade da aplicação da Lei Maria da Penha em casos de violência doméstica ocorridos em relações homoafetivas. Essa decisão estabeleceu um precedente importante, estendendo a proteção legal a casais do mesmo sexo e consolidando a interpretação de que a lei visa a proteção de todas as mulheres, independentemente de orientação sexual.

Contudo, quando observamos a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans, constatamos uma lacuna significativa. Os tribunais, em sua maioria, têm se deparado com desafios na interpretação e adequação da lei às especificidades das mulheres trans. A ausência de uma definição clara na lei quanto à identidade de gênero tem gerado divergências, levando alguns tribunais a hesitações na aplicação da lei nesses casos.

Há, entretanto, decisões progressistas em alguns estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, que reconheceram a aplicação da Lei Maria da Penha a mulheres trans. Estas jurisprudências inovadoras fundamentam-se na ideia de que a proteção legal contra a violência de gênero não pode excluir as mulheres trans, considerando a amplitude do princípio da igualdade consagrado na Constituição Federal.

Em contrapartida, é preciso reconhecer a necessidade de uma abordagem uniforme e esclarecedora por parte do Poder Judiciário. A construção de precedentes claros e unificados é essencial para proporcionar segurança jurídica e garantir a efetividade da Lei Maria da Penha para todas as mulheres, independentemente de sua identidade de gênero. Essa discussão demonstra a importância de uma constante revisão e atualização do ordenamento jurídico para atender às demandas e nuances da sociedade contemporânea, garantindo a proteção integral das mulheres em situações de vulnerabilidade.

A RELEVÂNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS INCULPIDOS NA CARTA POLÍTICA DE 1998, A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SOCIEDADE MAIS JUSTA, FRATERNA E IGUALITÁRIA EM PERPESCTIVA DE GENÊRO

A Constituição Federal de 1988, conhecida como a "Constituição Cidadã", consagra os direitos fundamentais como pilares fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro. Neste contexto, juristas renomados têm desempenhado um papel crucial na exploração desses direitos, ressaltando a importância de sua proteção e promoção na sociedade contemporânea, especialmente no que diz respeito à perspectiva de gênero.

José Afonso da Silva2, em sua obra "Curso de Direito Constitucional Positivo", destaca a posição proeminente dos direitos fundamentais, enfatizando que eles não são meras formalidades, mas instrumentos vitais para a efetivação da dignidade da pessoa humana, princípio basilar da Constituição. Nessa perspectiva, a igualdade de gênero emerge como um elemento intrínseco, reforçando a ideia de que os direitos fundamentais são cruciais para a proteção das mulheres contra discriminações e violências baseadas em gênero.

Canotilho3, outro notável doutrinador, contribui de maneira significativa para a compreensão dos direitos fundamentais ao enfatizar sua dimensão objetiva. Ao considerarmos a perspectiva de gênero, essa abordagem amplia a análise, destacando que os direitos fundamentais não apenas resguardam os indivíduos contra arbitrariedades estatais, mas também desempenham um papel central na promoção da igualdade de gênero e na construção de uma sociedade justa e solidária.

Assim, ao explorarmos as contribuições desses doutrinadores, reconhecemos que os direitos fundamentais não são apenas garantias formais, mas princípios norteadores que moldam as relações sociais e contribuem para a desconstrução de desigualdades de gênero. Esses direitos, ao protegerem os indivíduos contra discriminações de gênero e violações de seus direitos, também são ferramentas essenciais para a promoção da igualdade substancial entre homens e mulheres.

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Dessa forma, este artigo propõe-se a aprofundar a análise sobre a relevância dos direitos fundamentais na Constituição Federal brasileira, considerando as valiosas contribuições dos doutrinadores mencionados, sobretudo no contexto da perspectiva de gênero. Explorar essa interseção é crucial para compreender não apenas a estrutura normativa desses direitos, mas também seu papel transformador na promoção da igualdade de gênero e na construção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva e justa.

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA APLICAÇÃO AO CENÁRIO VIVIDO PELAS MULHERES TRANS

O princípio ou o valor inerente à dignidade da pessoa humana, é observado como um alicerce no que tange a própria ascensão do que denominamos de direitos fundamentais, pode- se dizer que ele antecede e sustenta toda essa estrutura, define-se a dignidade da pessoa humana, como aquele grupo de direitos onde na sua ausência o ser humano não consegue sequer se determinar como pessoa, trata-se de uma questão de autoafirmação e freios ao poder do Estado diante do administrado, assim, cabe salientar segundo a filosofia de Kant em metafísica dos costumes, o indivíduo deve ser encarado como um fim em si mesmo, não podendo jamais ser visto como meio para obtenção de algo, esta é a regra do imperativo categórico, normas universais e impositivas de trato, condições que elevam a própria ideia de vida humana.

Mister dizer que o direito à intimidade, à moral e a igualdade são ramificações do supramencionado princípio. Assim, havendo atitude capaz de violar estes direitos, indiretamente se estará afetando esse valor universal. Logo, compreende-se que a

inaplicabilidade da proteção conferida pela lei Maria da Penha às mulheres trans, não pode ser levada a efeito, pois diferencia, cria-se uma casta de mulheres as quais gozamd e maior proteção estatal em prol de outras não tão valorizadas.

Isso em verdade, atinge de sobremaneira os supracitados princípios, reduzindo a condição humana, transformando oa mulher trans em pessoa não merecedora de maior proteção estatal.

Segundo ensina em seu livro o Brilhante Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes:

Não 4obstante a inevitável subjetividade envolvida nas tentativas de discernir a nota de fundamentalidade em um direito, e embora haja direitos formalmente incluídos na classe dos direitos fundamentais que não apresentam ligação direta e imediata com o princípio da dignidade humana, é esse princípio que inspira os típicos direitos fundamentais, atendendo à exigência do respeito à vida, à liberdade, à integridade física e íntima de cada ser humano, ao postulado da igualdade em dignidade de todosos homens e à segurança. É o princípio da dignidade humana que demanda fórmulas de limitação do poder, prevenindo o arbítrio e a injustiça. Nessa medida, há de se convir em que “os direitos fundamentais, ao menos de forma geral, podem ser considerados concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana.13

O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E PROTEÇÃO DAS MULHERES TRANS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

O princípio da igualdade, consagrado no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, constitui um pilar essencial do ordenamento jurídico brasileiro. Este princípio estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assegurando a isonomia e protegendo contra tratamentos discriminatórios.

No âmbito jurídico, a igualdade busca garantir que todas as pessoas, independentemente de suas características pessoais, tenham acesso aos mesmos direitos e oportunidades. Trata-se de um valor fundamental que permeia todas as esferas do Direito, influenciando a interpretação de normas e decisões judiciais.

A jurisprudência brasileira tem avançado na aplicação do princípio da igualdade em diversos contextos, porém, no que concerne às mulheres trans, desafios específicos se apresentam. A ausência de uma definição clara na legislação sobre identidade de gênero gera incertezas, levando alguns tribunais a hesitações na aplicação plena do princípio da igualdade a essa parcela da população.

Apesar desses desafios, decisões progressistas têm reconhecido a aplicação do princípio da igualdade às mulheres trans. Essas jurisprudências inovadoras fundamentam-se na premissa de que a proteção legal contra a violência de gênero não pode excluir as mulheres trans, considerando a amplitude do princípio da igualdade consagrado na Constituição Federal.

Ainda, Dentro do campo da doutrina jurídica, existe uma corrente que advoga pela igualdade de tratamento entre mulheres cis e trans, visto que, em última instância, ambas são mulheres. Esse ponto é enfatizado pela destacada desembargadora e doutrinadora Maria Berenice Dias:

Lésbicas,5 transexuais, travestis e transgêneros, quem tenham identidade social com o sexo feminino estão ao abrigo da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência doméstica. Ainda que parte da doutrina encontre dificuldade em conceder-lhes o abrigo da Lei, descabe deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher. Felizmente, assim já vem entendendo a jurisprudência.

Nesse contexto, a comunidade jurídica tem o desafio e a responsabilidade de continuar aprimorando a interpretação e aplicação do princípio da igualdade, especialmente no que tange às mulheres trans. Essa busca constante por uma justiça mais inclusiva contribui para a construção de uma sociedade que respeite a dignidade de todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero.

A LEI MARIA DA PENHA E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A EFETIVIDADE DE DIREITOS DAS MULHERES TRANS – AVANÇOS, PERCALÇOS E FUTURO

A Lei Maria da Penha, identificada como Lei nº 11.340/2006, representa um avanço significativo no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil. Sua efetividade é evidente na promoção de mecanismos legais mais robustos para coibir a violência de gênero, proporcionando amparo jurídico e respostas mais eficazes diante desse cenário.

No entanto, ao aplicarmos a Lei Maria da Penha ao contexto das mulheres trans, identificamos desafios específicos que ressaltam a necessidade de uma abordagem mais inclusiva. Mulheres trans frequentemente enfrentam discriminação de gênero e transfobia, o que as coloca em uma posição de vulnerabilidade única. A aplicação da lei a esse grupo exige uma compreensão mais ampla das complexidades envolvidas, garantindo que sua proteção não apenas ocorra no papel, mas se manifeste de maneira prática e significativa.

Para as mulheres trans, é crucial considerar adaptações na implementação da Lei Maria da Penha, reconhecendo e abordando as múltiplas formas de violência a que estão sujeitas. Isso inclui não apenas a violência física, mas também a violência psicológica, patrimonial e moral. A sensibilização dos profissionais da justiça é essencial para assegurar que as mulheres trans se sintam protegidas e tenham confiança no sistema legal.

Apesar dos desafios, é fundamental enaltecer a Lei Maria da Penha por seu papel central na defesa dos direitos das mulheres. A lei não apenas simboliza um compromisso do Estado com a erradicação da violência de gênero, mas também representa um avanço significativo na conscientização social. Reconhecendo a condição de mulher trans como parte integrante dessa discussão, a Lei Maria da Penha abre caminho para uma abordagem mais inclusiva, promovendo a justiça e a equidade para todas as mulheres, independentemente de sua identidade de gênero.

Por fim, traz ao presente trabalho o voto proferido pelo Eminente Ministro da 6º Turma do STJ, Rogério Schietti quando do julgamento emblemático no qual foi compreendida a necessidade de proteção das mulheres trans por meio da Lei Maria da Penha (11.340/06), in verbis:

A aplicação da 6Lei Maria da Penha não reclama considerações sobre a motivação da conduta do agressor, mas tão somente que a vítima seja mulher e que a violência seja cometida em ambiente doméstico, familiar ou em relação de intimidade ou afeto entre agressor e agredida. 2. É descabida a preponderância, tal qual se deu no acórdão impugnado, de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha, cujo arcabouço protetivo se volta a julgar autores de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres. Efetivamente, conquanto o acórdão recorrido reconheça diversos direitos relativos à própria existência de pessoas trans, limita à condição de mulher biológica o direito à proteção conferida pela Lei Maria da Penha. 3. A vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em argumentos simplistas e reducionistas. 4. Para alicerçar a discussão referente à aplicação do art. 5º da Lei Maria da Penha à espécie, necessária é a diferenciação entre os conceitos de gênero e sexo, assim como breves noções de termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a compreensão voltada para a inclusão dessas categorias no abrigo da Lei em comento, tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher. 5. A balizada doutrina sobre o tema leva à conclusão de que as relações de gênero podem ser estudadas com base nas identidades feminina e masculina. Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas dinâmicas. O feminismo vai além, ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça no contexto do patriarcado. Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento, de modo que, no meu entender, o conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero. Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é. 6. Na espécie, não apenas a agressão se deu em ambiente doméstico, mas também familiar e afetivo, entre pai e filha, eliminando qualquer dúvida quanto à incidência do subsistema da Lei n. 11.340/2006, inclusive no que diz respeito ao órgão jurisdicional competente – especializado – para processar e julgar a ação penal. 7. As condutas descritas nos autos são tipicamente influenciadas pela relação patriarcal e misógina que o pai estabeleceu com a filha. O modus operandi das agressões – segurar pelos pulsos, causando lesões visíveis, arremessar diversas vezes contra a parede, tentar agredir com pedaço de pau e perseguir a vítima – são elementos próprios da estrutura de violência contra pessoas do sexo feminino. Isso significa que o modo de agir do agressor revela o caráter especialíssimo do delito e a necessidade de imposição de medidas protetivas.

O voto proferido naquela corte e brilhantemente defendido e explanado pelo Excelentíssimo Ministro Relator à epoca, soa como uma sinfônia aos ouvidos das mulheres trans, pois defende aquilo que está inculpido na Constituição Federal no artigo 5, caput, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais7 perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (BRASIL, 1988)

Assim, percebe-se que a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans, nada mais é do que cumprir com o permissivo legal. E além, de proteger essas mulheres alvo da tanta discriminação e preconceito, promove a igualdade naquela exata medida dosada no texto constitucional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente projeto destacou a urgência e importância da aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans, reconhecendo que a violência de gênero e a discriminação enfrentadas por essas mulheres demandam medidas específicas de proteção. A legislação brasileira, fundamentada na Constituição de 1988, que preconiza a igualdade irrestrita para todos, deve ser interpretada de maneira inclusiva, garantindo que as mulheres trans tenham acesso às mesmas proteções legais destinadas às mulheres cis.

A análise da efetividade da Lei Maria da Penha para mulheres trans não deve se restringir apenas aos aspectos punitivos, mas deve abranger medidas preventivas, educativas e uma abordagem holística. É fundamental criar uma cultura que promova o respeito à diversidade de gênero e aumente a conscientização sobre as realidades das mulheres trans, contribuindo para uma sociedade mais justa e inclusiva.

A evolução da jurisprudência, exemplificada por decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), reconhecendo a aplicação da Lei Maria da Penha a mulheres trans, é um passo importante. No entanto, a falta de uma abordagem uniforme destaca a necessidade de uma revisão constante do sistema jurídico para garantir a proteção integral dessas mulheres.

Os princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana e o da igualdade, são fundamentais na defesa dos direitos das mulheres trans. A aplicação da Lei Maria da Penha a esse grupo não é apenas uma questão de cumprir o permissivo legal, mas também de promover uma sociedade mais igualitária e justa.

Em suma, ao reconhecer a importância da legislação existente, este projeto assume o compromisso de continuar buscando soluções práticas que transformem o papel da Lei Maria da Penha em uma realidade efetiva e justa para todas as mulheres, independentemente de sua identidade de gênero. A proteção legal deve ser estendida de maneira inclusiva, considerando as particularidades das mulheres trans, e a sociedade como um todo deve se empenhar na construção de um ambiente mais respeitoso e igualitário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5 ed. Coimbra: Almedina, 2002.

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008

KANT. Emmanuel, Metafísica dos Costumes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005 [Trad. de José Lamego].

LOPES JUNIOR. Aury, Direito processual penal / Aury Lopes Junior. – 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.

MENDES. Gilmar Ferreira, Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 12. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2017. – (Série IDP)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.2&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa

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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 42 São Paulo: Malheiros, 2019,


1 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1473961621

2 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 42 São Paulo: Malheiros, 2019,

3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5 ed. Coimbra: Almedina, 2002.

4 MENDES. Gilmar Ferreira, Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, PauloGustavo Gonet Branco. – 12. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2017. – (Série IDP)

5 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008

6 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.2&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri ca&num_registro=202103918110

7 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUNDIO, Marcella Harue Alves. A aplicação da Lei Maria da Penha em mulheres trans. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7704, 4 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110265. Acesso em: 22 dez. 2024.

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