O DIREITO DO INTERSEXUAL À IDENTIDADE DE GÊNERO E AO REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO.
José Eulálio Figueiredo de Almeida
Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Juiz de Direito do TJMA, Titular da 8.ª Vara Cível em São Luís-MA. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Coordenador do Curso de Especialização em Direito Notarial e Registral da UFMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.
Sumário: 1. Introdução. – 2. Do desconhecimento científico e indefinições sociais identitárias sobre a pessoa intersexo. 3. Histórico. - 4. O intersexo e sua definição sexual. – 5. A criança intersexo: entre o masculino e o feminino. - 6. Como registrar o nascimento da pessoa intersexo? – 7. Conclusão.
Summary: 1. Introduction. - 2. Scientific ignorance and social identity uncertainty about intersex people. 3 - Historic. - 4. The intersex and its sexual definition. – 5. The intersex child: between male and female. - 6. How to register the birth of an intersex person? - 7. Conclusion.
Resumo: O presente estudo tem o objetivo de demonstrar que a pessoa intersexo, não obstante haver nascido com genitália ambígua, que expõe, por óbvio, sua diferenciação sexual, tem direito ao registro público de seu nascimento, onde devem constar seu nome, sexo, cor, filiação, naturalidade, e outras informações pertinentes, porque, ainda que seu corpo não exponha a certeza sexual heteronormativa, revela, sem disfarces, a forma humana que lhe confere direito a uma identificação sexual provisória para o exercício de sua cidadania, personalidade e identidade civil, como fundamento básico da dignidade humana, até que a puberdade ou a idade adulta lhe assegure a garantia de optar em permanecer com o gênero sexual que nasceu ou com o que sua identidade psicológica autodeterminar posteriormente.
Palavras chaves: Intersexual – Intersexo – Intersexofobia - Identidade Civil – Gênero – Binarismo Sexual – Ignorado – Indefinido – Masculino – Feminino - Dignidade Humana – Nome Social - Registro Público – Direito Constitucional – Direito Civil.
Abstract: The present study aims to demonstrate that the intersex person, despite being born with ambiguous genitalia, that obviously, exposes their sexual differentiation, has the right to the public record of his birth, where his name, sex, color, affiliation, naturalness, and other pertinent information must be included, although, his body does not expose heteronormative sexual certainty, reveals without disguise the human form that gives him the right to a provisional sexual identification for the exercise of his citizenship, personality and civil identity as the basic foundation of human dignity, until puberty or adulthood assures you the assurance of choosing to remain with the sexual gender that your psychological identity self-determine.
Key words: Intersexual - Intersex – Intersexophobia - Civil Identity - Genre – Sexual Binarism – Ignored – Undefined – Masculine – Feminine - Human Dignity – Social Name - Public Registry - Constitutional Law – Civil Law.
1. Introdução
Todo ser humano ao nascer precisa ser identificado com um nome1, conforme determina o art. 16 do Código Civil2. Além disso, deve ser identificado também com o sexo3, a cor, a naturalidade, a filiação, e outras informações pertinentes. Pelo menos, em tese, isso é o que deve constar dos espaços em branco do documento oficial que conhecemos com o nome de certidão de nascimento.
Esse documento essencial, que confere cidadania ao indivíduo, não deve impor barreiras que fomentem o desprezo pela diversidade sexual, principalmente numa sociedade plural onde cada vez mais se reivindica o respeito à dignidade humana. A ideia aqui suscitada visa fomentar a inclusão da pessoa intersexo, segregada em face do padrão sexual heteronormativo adotado pelo legislador que a coloca num estado de anonimato e de invisibilidade por uma culpa que não pode ser atribuída a ela, muito menos a seus pais.
Não pode o Estado legislador, muito menos a sociedade preconceituosa, negar a pessoa intersexo o direito à cidadania e à socialização. Caso não seja reconhecido como tal, o indivíduo intersexual fica restrito no seio familiar pela omissão do Estado e vigiado pela comunidade como um prisioneiro, submetido às rígidas leis do cárcere e à difícil definição da identidade de gênero sexual no plano social, haja vista correr o risco de viver como alguém condenado a uma perpétua obscuridade e reclusão no ambiente estritamente doméstico.
Obter o registro de seu nascimento com todas as garantias peculiares à sua condição de pessoa intersexo é um direito sagrado, natural, universal, autoevidente, imprescritível e inalienável, que não pode ser olvidado em tempo e lugar algum, considerando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama, em seu art. 1.º, que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.”
Na mesma linha de raciocínio, a referida declaração obtempera, em seu art. 2.º, a ubiquidade desse direito natural universal, ao afirmar que “Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.”
No Brasil, o Código Civil assegura a toda pessoa o direito a um nome, dispondo, em seu art. 16, o seguinte:“Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.” Essa regra contempla direito da personalidade protegido pelo princípio constitucional da dignidade humana. Acrescente-se que o nome civil, além de atributo da personalidade, deve ser também designativo do sexo da pessoa, tal como se autorreconhece, devendo, por isso, o ordenamento jurídico assegurar-lhe o efetivo merecimento da autonomia da vontade para manter indene sua personalidade físico-psíquica ou social.
Destarte, por se tratar a dignidade humana de direito da personalidade (art. 2.º, Código Civil), intransmissível e irrenunciável, que cria possibilidades e acessos para obtenção da almejada tutela jurídica, nem sempre ela resulta do ordenamento jurídico ou do Direito, mas de uma característica intrínseca do homem, traduzida por uma espécie de lei moral4, presente na própria essência humana, que está acima de todas as normas legais, exatamente porque as precede em tudo.
Por essa razão, o princípio da imutabilidade do prenome civil não é absoluto, porquanto ele deve expressar a individualização e a correta identificação da pessoa autodeclarada em suas relações sociais. Esse autorreconhecimento, portanto, de natureza estritamente pessoal, decorre da autodeterminação do indivíduo e justifica a sobreposição do interesse individual sobre o interesse público e a segurança jurídica concernente a imutabilidade do prenome.
Registre-se, por ser necessário, que a pessoa intersexo, quando adota a identidade de gênero feminina, também deve ter acesso às medidas protetivas da Lei Maria da Penha, independentemente de suas orientações afetivas.
2. Do desconhecimento científico e indefinições sociais identitárias sobre a pessoa intersexo
Durante muito tempo a pessoa intersexual foi vista como um ser hermafrodita, como um indivíduo andrógino, homossexual, bissexual, transexual ou assexuado. Era comum até dizer-se que a pessoa com tais características constituía uma aberração sexual, posto ser portadora de dois órgãos sexuais (masculino e feminino) externos por conta da deformação congênita de sua genitália. Para o bem da ciência e felicidade dos intersexuais esses termos estão ultrapassados, caíram em desuso; são, em uma só palavra, anacrônicos.
A ausência de conhecimentos da comunidade científica de outrora a respeito da correta identidade sexual do indivíduo portador de genitália ambígua, ao incipiente exame dos órgãos sexuais externos, permitia inferir, de afogadilho, quando do seu nascimento, que era do sexo masculino ou feminino; nunca intersexo. Esse equivocado diagnóstico criava barreiras para a inclusão da pessoa intersexo no lugar de merecimento perante a sociedade.
Essa identificação sexual, feita açodadamente por médicos na maternidade ou por parteira leiga, nos tugúrios mais longínquos de nosso imenso país, também propiciava equívocos no registro civil de nascimento que somente mais tarde, quando a pessoa atingia a idade púbere ou núbil, após exame criterioso de profissional médico e entrevista do indivíduo intersexo, podia ser efetivamente determinada.
Outro entrave para a identificação de gênero no registro civil do intersexo, que ainda persistia, era a própria Lei dos Registros Públicos, que não permitia o registro de sexo dúbio ou incerto. Por isso, diferentemente dos transexuais, a pessoa intersexo enfrentava barreiras nos cartórios para obter a redesignação de gênero, motivo que a levava obrigatoriamente a postular a mudança de sexo e de nome em processo judicial.
Mas atualmente, com o avanço dos estudos interdisciplinares, é possível compreender e aceitar a condição biopsicológica da pessoa intersexual, pela multiplicidade de casos já solucionados no campo das ciências médicas, jurídicas e sociais.
A equivocidade do diagnóstico médico permitia a menção da palavra ignorado5, no registro de nascimento originário da criança intersexo, para identificar a referida diversidade sexual até que a idade adulta possibilitasse, a critério da pessoa interessada, definir o sexo predominante. Observado esse juízo hipotético, deveria constar definitivamente no campo específico de sua certidão de nascimento o gênero que escolhesse, posteriormente, em face de sua identidade psíquica.
O termo ignorado lançado no registro civil, após o nascimento do bebê intersexo, como sugestão do Ministério da Saúde do Brasil e do CFM, era – e continua sendo - completamente desrespeitoso. Quando ignoramos esse estado pessoal do neonato em referência estamos invisibilizando uma identidade humana, negando sua existência e toda uma situação complexa. Impõe-se, por assim dizer, a negação de um corpo humano apenas por ser diversificado e situar-se fora do padrão heteronormativo.
Essa nomenclatura me preocupava bastante, porque não refletia o que o intersexo é realmente. O Ministério da Saúde elaborou o manual de instruções para preenchimento da Declaração de Nascido Vivo, onde consta, numa atitude equivocada, a recomendação de preencher como “ignorado” sempre que constatado, pelo profissional médico, caso de nascituro com “genitália indefinida ou hermafroditismo”, porque certamente é tratado como uma anomalia congênita6 incorrigível.
Ocorre que a saída encontrada não dissipava a dúvida existente. Ao contrário, eliminava a característica identitária do intersexo, porque dizer “ignorado” era não definir o que já estava presumível ou provável. Era condenar ao ostracismo e à proscrição o intersexo, relegando, para o futuro, em face de procedimento médico-cirúrgico, a correção da decantada deformidade sexual para ajustá-la ao padrão sexual que a heteronormatividade impõe: masculino ou feminino.
Entretanto, os direitos tão sonhados pelas pessoas intersexo soavam como um surdo anseio ao parlamento brasileiro, levando todo o corpo legislativo a fazer ouvidos moucos às justas reivindicações do enorme contingente de indivíduos que era encarado simplesmente como uma inferioridade numérica7. Os debates sobre os direitos incitavam essas presumidas minorias a falar por si mesmas e a exigir, em nobilitante pervigília, reconhecimento social equivalente aos demais gêneros sexuais, pleito que foi deferido pelo Poder Judiciário no âmbito do CNJ, ao definir o que é a pessoa intersexo, para suprir a omissão do órgão legiferante.
De fato, a indiferença que havia outrora entre direito e sentimento, decorrente da ausência de regra legislativa, que protegesse pessoas intersexo, cujos significados ou qualificativos de identificação não estavam contidos no texto legal, inviabilizava a obtenção de reconhecimento e direitos concernentes à identidade de gênero aos que sempre carregavam as caracterísiticas de intersexual, posto que, embora necessitassem de segurança jurídica em suas relações sociais, não gozavam do mesmo status jurídico que é dado aos transgêneros.
Na verdade, a pessoa intersexo, nesse ínterim, ficava encoberto pelos véus indevassáveis das metáforas, considerando que utilizava-se o adjetivo “ignorado” para designá-la, cujo significado não correspondia a identidade de gênero que o vocábulo pretendia designar. O intersexual era visto, pelos burocratas do moralismo estatal, com os olhos estrábicos e ferrenhos de quem o enxergava como alguém que precisava, inicialmente, livrar-se da anomalia que aprisionava o seu corpo ingênito para, posteriormente, encaixar-se em uma norma jurídica que respaldasse sua existência como homem ou como mulher; jamais como ambos, ou seja, nunca como homem/mulher, ao mesmo tempo, num só corpo.
Aqui residia um claro exemplo de violência institucional contra a pessoa intersexo, haja vista que a sua aparente “deformidade sexual” era considerada incompatível com a desigualdade de gênero que já vinha conquistando status de normalidade e se ajustando, embora artificialmente, aos novos conceitos sobre diversidade de gênero e à consciência social quanto a necessidade de eliminar o olhar discriminatório sobre os corpos das inúmeras vítimas da transfobia.
O intersexo, que é humano, precisa obter esse status jurídico para ser reconhecido, em sociedade, como pessoa. Daí porque deve ter garantido o impostergável direito ao registro civil de nascimento, com essa denominação, porque a insígnia de “ignorado” jamais permitirá que o mesmo conviva e se relacione, em condições de liberdade, igualdade e dignidade, com os outros seres humanos.
Confesso que, muito embora ainda seja um jejuno a respeito do tema proposto, pretendo demonstrar, neste estudo, a análise que procedia em meus julgamentos, como Juiz titular de uma das Varas de Registros Públicos da Comarca de São Luís do Maranhão, onde tinha a oportunidade de examinar pedidos referentes à mudança de sexo e de nome, bem como à transgenitalização e redesignação de gênero, diante da multifacetária diversidade sexual das pessoas que postulavam em juízo a modificação do status quo ante.
Este estudo que desenvolvi, a partir de um caso verídico que julguei (PJe n.º 0818846-49.2018.8.10.0001), no dia 26 de abril de 2019, como magistrado titular da 8.ª Vara Cível da Comarca de São Luís, levou-me a determinar, à ausência de previsão legal, o registro civil da parte autora como intersexo.
Em face desse julgamento pioneiro, concedi uma longa entrevista à ANOREG-SP8, publicada na Revista n.º 21, página 100, dessa associação, em 20/03/2020, onde reforcei a defesa da necessidade de inclusão do nome “Intersexo” no registro civil de nascimento do recém-nascido e publiquei um artigo no site e na Revista do IBDFAM n.º 52 e também no site do Jusnavigandi sobre o assunto.
Posteriormente, o Conselho Nacional de Justiça, em boa hora, editou a Resolução n.º 348, de 13/10/2020, em cujo art. 3.º, inciso II, define a pessoa intersexo e permite seu registro, com essa identidade de gênero, na certidão de nascimento.
A Resolução do CNJ supracitada, afirma, ainda, dentre outras coisas, que “pessoas intersexo podem ter qualquer orientação sexual e identidade de gênero” (art. 3.º, inciso II, alínea “b”), bem assim que “a orientação sexual não está relacionada à identidade de gênero ou às características sexuais” da pessoa (art. 3.º, inciso II, alínea “d”).
A propósito, no enfrentamento do tema, lembro aqui da peça teatral “O Patinho Torto”, escrita em 1917, com irreprochável maestria e refinado estilo literário, pelo grande romancista maranhense Coelho Neto, considerado o “príncipe dos prosadores brasileiros”, em pesquisa realizada pela revista “O Malho” com vários intelectuais brasileiros de sua época. Nela esse notável dramaturgo retrata, de forma bem-humorada, hipótese de binarismo sexual presente na personagem Eufêmia que fora educada e registrada como mulher, mas depois de adulta, após uma consulta médica, retorna para a casa dos pais, rompe o noivado com o pretendente, passa a fumar e a vestir-se como homem, a falar com voz de barítono, a puxar navalha pelo rosto e a adotar nome masculino.
Eufêmia, conforme apressada inspeção ocular do esculápio, Dr. Patubera, era um hermafrodita por hipospadia. O próprio nome da personagem central da peça teatral “Eufêmia” carrega a ideia do eufemismo, figura de linguagem que suaviza a informação sobre alguma característica da pessoa de maneira agradável, permitindo a compreensão da sua diversidade, orientação e identidade sexual, rompendo as algemas que o tradicional conceito biológico do binarismo sexual (masculino/feminino) impõe à sociedade.
3. Histórico
A versão antiga de que o homem é que estabelece o paradigma masculino, como ordem hierárquica sobre os demais gêneros, sempre prevaleceu como verdade inquestionável no relato de religiosos, de governantes, de historiadores, de filósofos, de psiquiatras, de psicanalistas, de escritores e de pensadores, que pregavam a identidade de gênero como resultante do sexo biológico masculino.
Muito embora isso prevalecesse outrora, informa Viveiros de Castro9 que, no Antigo Egito, “considerava-se Astartea, deusa da lua, como sendo ao mesmo tempo macho e fêmea”, encontrando-se “nos poetas antigos”, conforme esse renomado criminalista maranhense, “allusões a essa legenda.”
Segundo a mitologia, Hermafrodito (Hermaphroditos) ou Hermafrodita, era uma pessoa metamórfica, construída pela Antiguidade Grega, isto é, um ser humano híbrido que tinha, ao mesmo tempo, traços corporais híbridos de seus progenitores, Hermes e Vênus Afrodite.
O fundamento geralmente utilizado para a existência do hermafrodita na Antiguidade Grega é o das Metamorfoses, que nos legou Ovídio, o célebre poeta romano. Essa versão, considerada a mais autêntica e detalhada, que chegou até a contemporaneidade, conta que Hermafrodito era um rapaz muito belo. Porém, ao banhar-se num lago, tem o corpo fundido com o de uma ninfa chamada Salmacis que, seduzida pela beleza incomparável de Hermafrodito, pediu aos deuses para que a unisse a ele, indissoluvelmente, a fim de torná-los um só indivíduo intersexo.
Após a fusão dos corpos e, tornando-se uma criatura enfraquecida e revoltada, sem identidade de gênero definida, Hermafrodita, vítima dessa transformação divina incompleta e anômala, sob o ponto de vista sexual, revolta-se e amaldiçoa o lago, profetizando mal agouro a todo aquele que ali banhasse, mediante o castigo de ser transmutado em um ser intersexual.
Para Anchyses Jobim Lopes10:
“A soma do masculino e do feminino seria dotada do simbolismo da fertilidade e seria o dom de deuses. Pela classificação acima descrita, Hermafrodita não seria um transexual, mas intersexual. E na versão de Ovídio a transformação foi uma violência imposta de modo que ficaria fora de ambas as classificações: trans e intersexualidade. Entretanto, a análise de vestígios mais arcaicos do mito revela atributos que podem fornecer dados valiosos para a compreensão psicanalítica da transexualidade.”
Existem outras versões para retratar a história do aparecimento dos sexos e suas diferenças, dentre as quais a criada por Platão em “O Banquete”, sobre o mito do andrógino, descrito por Aristófanes de forma hilariante.
O civilista Antônio Chaves11 enfatiza que:
“Cada um dos seres gregos criados por Aristófanes tinha a forma de uma esfera, com quatro braços e pernas além de duas caras numa mesma cabeça, voltadas em direções opostas, o que lhes conferia poderes excepcionais. Eles disparavam corridas girando como uma bola, cambalhotando sucessivamente nos oito membros disponíveis.
No dia em que se atrevem a rolar Olimpo acima para destronar os deuses, Zeus usou literalmente a tática de dividir o inimigo: com a ajuda de Apolo, cortou todos pelo meio reduzindo-os à forma dos humanos, com apenas dois braços e pernas. Da separação do andrógino original, apareceram homem e mulher, condenados a perseguir, pela existência, a metade perdida.”
Para afastar qualquer confusão teórica ou científica sobre o assunto, é de fundamental importância esclarecer que o intersexo não é um transexual. O intersexo é a pessoa que apresenta genitália biológica congênita ambígua disforme; enquanto que o transexual é o indivíduo que se autoidentifica com um sexo diverso do seu sexo biológico. Melhor explicando, é a pessoa que se reconhece com um sexo diferente do qual nasceu e passa a adotar outra identidade de gênero, contudo nem sempre se desfaz da conformação conata do sexo biológico original e responde aos estímulos psicológicos de outro.
4. O intersexo e sua definição sexual
A capacidade expansiva da globalização tornou-se responsável pela mudança de paradigma em diversos setores da sociedade, levando conceitos e comportamentos que eram considerados indecentes, e que definhavam em recônditas ideias preconceituosas, a obterem hegemonia, simpatia e aceitação social.
Tais ideias, outrora censuradas como tabu, conquistam, atualmente, as manchetes dos diversos meios de comunicação e das redes sociais, vencendo obstáculos que se lhe antepunham determinados setores da sociedade, ultrapassando fronteiras geográficas e até mesmo soberanias nacionais.
A coragem de seus defensores em exigir a inclusão, na pauta de discussão mundial, de direitos à diversidade de gênero que a lacuna legislativa não garantia a inúmeras pessoas, bem como o asseguramento da identidade civil básica com os traços característicos ao gênero que se identifica, a indivíduos que existiam e exigiam visibilidade como seres humanos, vem crescendo de maneira irrefreável e surpreendente, forçando o legislador a preencher a omissão legiferante que lhes negava direitos sociais.
Do mesmo modo, quando o dever imposto ao legislador originário não é cumprido, setores descontentes da sociedade batem à porta do Judiciário, requerendo o pronunciamento dos magistrados para suprir a omissão legislativa ou preencher os interstícios legais que postergam a conquista dos direitos reivindicados.
O vazio legislativo apontado pela população LGBTQIAP+ favorecia a despersonalização das pessoas que assim se reconheciam. Desse modo, foi preenchido, paulatinamente, pelos movimentos e mídias sociais, bem como - e principalmente - pelo ativismo e vanguardismo dos magistrados brasileiros, que compõem o primeiro grau de jurisdição do Poder Judiciário, os quais passaram a decidir contra o obsoletismo da legislação reinante. Havia – como ainda há – o interesse em tratar as pessoas transgêneros com a mesma igualdade e dignidade que homens e mulheres heterosssexuais são tratados em relação aos direitos e obrigações sociais.
Esse movimento vanguardista serviu de combustível e mola propulsora para o encorajamento de várias pessoas que viviam discriminadas ou na clandestinidade, em face de sua diversidade sexual, liderarem movimentos para o reconhecimento de seus direitos como intersexo. Não suportavam mais experimentar todo tipo de preconceito, discriminação e exclusão social, decorrente de uma herança cultural alicerçada no patriarcalismo colonial e imperial brasileiros, que sempre privilegiava a soberania e o moralismo atrabiliário do Estado como forma de repressão e banimento da comunidade LGBTQIAP+ do ambiente comunitário.
É que nossa sociedade foi construída a partir do mito do machismo e da crença na heterossexualidade como norma de conduta lícita entre as pessoas. Nada parecia mais longe de nossa racionalidade e realidade, se atentarmos para o fato de que, embora sob o manto do menor vestígio da timidez e da mais límpida pudicícia, um arsenal heteróclito da desfaçatez humana mostrava sua outra face, revelando o que o imaginário coletivo testemunhava, para tornar inútil e vã a tentativa de vetar o avanço da diversidade de gênero que, atualmente, prolifera.
O discurso sobre a definição da sexualidade humana tem sempre um viés moralista. Dificilmente alguém, em conversa informal ou mesmo convencional, discute a questão sob o ponto de vista da aceitação das orientações sexuais diferentes do padrão genético e social instituído pelo binômio homem-mulher.
Por essa razão, algumas categorias sexuais, a exemplo dos intersexuais, vivem como pessoas invisíveis, condenadas a um exílio compungitivo, numa espécie de retiro social que impõem a si mesmo, por vergonha ou por medo de assumirem a identidade biopsicossocial que carregam e de serem alvos do estigma que os levaram ao isolamento social e à invisibilidade, que nada mais é do que um injusto castigo aplicado pelo senso comum contra quem não tem culpa de nascer com o sexo que os caracteres da anatomia genital humana não identificou.
Mas não deve ser assim, porque o intersexo tem vida, tem rosto, sentimento, fala, desejos, paixões, emoções e necessita, essencialmente, ter um nome que o identifique com o sexo que a natureza concebeu. É como se o seu corpo gritasse a todos “quero ser como a natureza me fez”, cabendo, portanto, somente à pessoa intersexo ser feliz como se autorreconhece, sem perquirir-se sobre eventual erro cometido pela natureza. Essa é a razão pela qual num Estado de Direito as pessoas devem ser protegidas pelo ordenamento jurídico para evitar o ódio entre iguais e, principalmente, a intersexofobia.
O formato binário da genitália, no caso, não pode ser encarado simplesmente como uma exceção natural lançada num papel timbrado, selado e carimbado pelo notário público, muito menos como fundamento do registro de nascimento, mas como algo resultante da própria confirmação da pessoa intersexo a respeito de sua identidade sexual ou da conclusão do laudo médico em caso de recém-nascido.
O direito brasileiro tem o dever de tutelar tal situação, competindo ao Juiz, no caso de omissão legislativa, suprir a lacuna procedendo a uma interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, inclusive para, se for o caso, espanar as poeiras de eventual lei vetusta, para ajustá-la ao caso em julgamento, notadamente quando a matéria envolver direito de família ou da personalidade humana. Neste caso, como em outros semelhantes, a venda da deusa da Justiça não pode causar cegueira a algo que está ao alcance da visão de todos os cidadãos. Deve prevalecer a harmonização social para o tratamento paritário da pessoa intersexo em relação aos demais indivíduos, devendo o Juiz agir com cautela, prudência, cuidado e precaução na análise da hipótese submetida a julgamento.
O correto, portanto, é primar pela inclusão social, banindo a possibilidade de incidência da discriminação afetiva, do discurso de ódio, da vitimização, do bullying, da intersexofobia, porque o mesmo poder que confere ao Juiz a prerrogativa de dizer a intenção da lei a ser aplicada, também lhe confere autoridade institucional para outorgar valor jurídico-sentimental ao direito reivindicado pela pessoa intersexo, independente da constatação de eventuais emoções que a questão possa suscitar. Afinal, como afirma Michael Stolleis “a Justiça é, em primeiro lugar, a virtude da atenção em direção às circunstâncias dos fatos.”
Na minha atividade jurisdicional tenho tive a oportunidade de julgar casos envolvendo pedidos de transgenitalização, mudanças de sexo, de nome e de prenome por pessoas de orientação sexual diversa da que consta em seus registros de nascimento. Nenhuma perplexidade quanto a isso, até que, de forma inusitada para mim, deparei-me com um pedido envolvendo a intersexualidade de uma pessoa que fora registrada ao nascer com nome e sexo masculino, quando, na verdade, desde a idade infantojuvenil, sempre se identificou com o sexo feminino.
Na petição inicial, o interessado alegou ter nascido em 09/03/1993, ter sido registrado por seus pais com nome e sexo fisiológico masculino, e que na adolescência passou por período de confusão de transformação, já que percebia mudanças no seu corpo, tanto de ordem masculina (crescimento dos pelos) quanto de ordem feminina (crescimento das mamas), independentemente de fazer uso de hormônios.
Justificou que, apesar da ambiguidade sexual, passou a identificar-se como mulher, mudando suas vestimentas, seus gestos, o estilo e comprimento do cabelo e o comportamento, chegando até a se relacionar com pessoas do sexo masculino, inclusive tendo vida sexual desenvolvida de forma normal com seus parceiros, sendo hoje aceita e respeitada como mulher. Tem, atualmente, namorado e adota nome social compatível com sua anatomia feminina, acrescido dos apelidos de família.
Relatou também que se enquadra na modalidade de gênero denominada “intersexual”, pois nasceu com variações congênitas anatômicas desse gênero sexual, e muito embora tenha sido registrado como do sexo masculino, pelo fato de possuir genital semelhante a um pênis e indicação médica, ao tempo de seu nascimento, seu gênero sexual não condiz com a forma pela qual está identificado em seu registro civil.
Revela não ter feito uso de hormônios e que não se considera um transexual, já que possui genitália ambígua, porém não deseja manter os dois órgãos sexuais aparentes, mas somente o feminino.
Finalizou afirmando que a realidade fática de ser uma mulher com nome masculino lhe causa grande conflito existencial e incompreensão intrapsíquica, causando-lhe ainda constrangimento e invasão de privacidade, e que a mudança de prenome e de gênero será de suma importância para o seu reconhecimento pleno na sociedade como mulher.
Os fatos foram confirmados na audiência de justificação pelo depoimento pessoal do interessado, pelos depoimentos de testemunhas e pelo relatório médico de cirurgia de retificação de sexo, onde foi constatada a amputação do genital masculino.
Reforçando sua tese, a parte juntou ainda pareceres consistentes em Estudo Social e Relatório Psicológico, ambos emitidos pelo Núcleo Psicossocial da Defensoria Pública do Estado, atestando sua identidade social feminina.
No julgamento que proferi (novidadeiro para mim), nos autos do processo judicial eletrônico n.º 0818846-49.2018, aduzi que a ação de redesignação sexual com retificação de nome civil objetiva a alteração do prenome e do gênero, em razão da parte interessada ostentar designação que não mais corresponde à identidade psicológica que adquiriu e incorporou pela sua visível orientação sexual.
A hipótese que examinei nos autos aponta inequivocamente ao intersexualismo, inicialmente com características congênitas de ambos os sexos, embora com prevalência maior do sexo feminino, na aparência física, no timbre de voz e na personalidade individual da parte interessada, sendo a retificação do seu registro civil uma das etapas de conformação com o seu sexo psicológico.
Com efeito, há de se garantir ao intersexo o direito ao autorreconhecimento que fuja das categorias limitadoras que vinculam a identificação humana ao binarismo sexual homem ou mulher imposto pela moral social.
A Lei dos Registros Públicos, em seu art. 58, permite a alteração do prenome, uma vez que se constate ser este capaz de submeter seu titular a situações vexatórias. Tal previsão, portanto, se amolda aos intersexuais, visto que no dia-a-dia dessas pessoas fica evidente a exposição a eventuais discriminações, preconceitos, rejeições e exclusões, acaso seus pleitos de reconhecimento e aceitação social não sejam concedidos, violando-se claramente sua dignidade como pessoa humana.
O direito à identidade sexual deve ser protegido pelo Estado. A Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama em seu art. 12 que: “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. No exercício deste direito e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão as limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”.
É importante registrar que o CNJ, com a edição da Resolução n.º 348, de 13/10/2020, em seu art. 3.º, inciso II, considerou intersexo as “pessoas que nascem com características sexuais físicas ou biológicas, como a anatomia sexual, os órgãos reprodutivos, os padrões hormonais e/ou cromossômicos que não se encaixam nas definições típicas de masculino e feminino.”
Resta salientar que, nada obstante os prenomes das pessoas físicas conformarem-se com os princípios da imutabilidade e da indisponibilidade, tal interpretação vem sendo relativizada, tendo em vista a busca pela concretização de outros interesses sociais mais relevantes, como no caso em comento, em que a requerente visa a adequação do seu nome à sua identidade sexual atual, pois se o Estado permite a possibilidade de realizar-se cirurgia de transgenitalização deve também prover os meios necessários para que o indivíduo intersexo tenha uma vida digna e, por conseguinte, seja identificado jurídica e civilmente tal como se apresenta perante a sociedade e como se autorreconhece psicologicamente.
Essa ideia tem como pressuposto o princípio do tratamento da pessoa como um fim em si mesma, o que implica no dever do Estado implementar políticas públicas que visem a integração dos indivíduos no meio social em que vivem ou circulam, isto é, na obrigação estatal de favorecer a felicidade da pessoa livre, dotada de vontade, como sujeito de direitos, no fastígio de suas garantias individuais.
É preciso compreender e aceitar essa realidade axiológica, posto que ela é o componente que permite a identificação do indivíduo como pessoa humana, portadora de qualidade moral, com a sua própria essência, enquanto ser livre e consciente que se desprende da força e dominação que a sociedade impõe às vítimas da violência de gênero. Nada mais justo, porque cada um de nós possui uma identidade singular, inconfundível, indivisível, intransferível, inobscurecível, que nos impede de experimentar a vida do outro ou de sermos qualificado ou identificado com as características de outrem.
Desse modo é imperioso concluir que não é saudável, física e psicologicamente, ao ser humano intersexo conviver com essa crise existencial e de consciência. O caráter único e insubstituível de cada ser humano, titular de um valor próprio, o leva a não permitir que sua personalidade, em contínua evolução e transformação, como uma realidade a ser completada, resvale para o "Eu" que é questionado o tempo todo e, por essa razão, susceptível a mudanças.
É necessário ao indivíduo intersexual livrar-se de um dos seres que o aprisiona. Lutar contra isso o dia inteiro não é fazer apologia a um permanente polimento de si mesmo, nem ancorar-se exclusivamente num cartesianismo racional, mas adotar como solução paradigmática o axioma forjado na filosofia existencialista de Ortega y Gasset: ”Yo soy yo y mi circunstancia."
Destarte, não é justo, nem correto a sociedade impor ao indivíduo intersexo um sofrimento que os cidadãos que se dizem honrados não possuem a capacidade de sentir, nem de compartilhar a dor do outro. Esse apelo antagônico de moralistas e de conservadores fortalece cada vez mais a população LGBTQIAP+, em especial os indivíduos transgêneros a continuarem suas lutas, pelo fato de o acolhimento de seus interesses estar cada vez mais assegurado no ordenamento jurídico vigente, que os tratam como pessoas, dotadas de personalidade, cidadania e dignidade humana.
A biologia contemporânea tem demonstrado que a rigidez do modelo binário XX/XY perdeu a credibilidade perante a moderna genética e não mais atende aos questionamentos das mutações sexuais do cotidiano, muito menos às indagações da diversidade sexual ou de gênero. É que a natureza humana do intersexual, pelo dualismo genital que ostenta, não é suficiente para determinar quem ele é como "indivíduo" na medida em que essa expressão seja empregada como sinônima de indivisível.
5. A criança intersexo: entre o masculino e o feminino.
Toda vez que uma mulher revela seu estado de gravidez, sua família, parentes, vizinhos e amigos criam uma expectativa enorme quanto ao sexo da criança. Então, perguntam, reiteradamente: É menino ou menina? Consequentemente, com base no modelo heteronormativo, a resposta mais lógica e aguardada, em princípio, seria: homem ou mulher, para facilitar a tradicional maneira de organizar o enxoval e o chá de bebê do neonato, ignorando-se qualquer possibilidade da variabilidade genital biológica do corpo do nascituro.
Em tempos passados, principalmente nas cidades pequenas, chegava-se ao absurdo de encaminhar a mulher, na condição de penitente, à igreja católica para confessar ao padre da paróquia sobre quem seria o provável pai do nascituro, como se lhe competisse o exercício de jurisdição pastoral, ética, moral, social e sancionatória sobre a coletividade de pessoas da comunidade.
Atualmente, a resposta definitiva, sobre o sexo do recém-nascido, quando convém aos pais, somente é informada após a realização do exame de ultrassonografia para constatar, de fato, qual o sexo da criança e eliminar a incessante curiosidade dos especuladores.
Sendo assim, o resultado do exame de ultrassom nem sempre é informado para os indagadores, visto que pode causar grande decepção e enorme constrangimento aos pais e à família da criança, acaso o laudo médico declarar que trata-se de intersexo, uma vez que a surpresa dessa constatação levará, obrigatoriamente, o núcleo familiar a esconder essa anomalia orgânica congênita para proteger o ente querido e impedir inevitável discriminação pelo corpo monstruoso e maldição que outrora acreditava-se que o hermafrodita carregava.
Porém, a maior dificuldade que a família enfrentava, e ainda hoje enfrenta, em face da incerteza sexual, após o nascimento da criança intersexo, é livrar-se do equivocado diagnóstico médico a respeito da configuração sexual do portador das chamadas Anomalias do Distúrbio Sexual (ADS) ou dos Distúrbios do Desenvolvimento Sexual (DDS), conforme definição prevista no art. 1.º da Resolução n.º 1.664/2003, do Conselho Federal de Medicina. É que, segundo a referida Resolução (art. 2.º), a “diferenciação sexual” deve“ter assegurada uma conduta de investigação precoce com vistas a uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil.”
Sucede que o mencionado “tempo hábil” para correção da “anomalia” diagnosticada, salvante os casos de disfunção ou que possam afetar a micturição, não pode ser interpretado como sinônimo de urgência ou de emergência, pois a hipotética crença na ulterior satisfação do bem-estar psicossocial da criança intersexo não pode ser fator de relevância ou de prevalência, ainda que sob o ponto de vista médico, para ignorar-se o autorreconhecimento, na idade adulta, da verdadeira identidade psicológica sexual de gênero, pela própria pessoa com indicação a submissão à cirurgia corretiva.
É que o conceito de gênero e de identidade de gênero, cada vez mais amplo, complexo e polissêmico denota muito cuidado do utente, porque vai além da definição que juristas, médicos, psicólogos, filósofos e outros estudiosos do tema possam imaginar. Como visto, não há um consenso ou unanimidade conceitual. A maior prova desta assertiva é a própria sigla LGBTQIAP+, que estende ao infinito as inúmeráveis possibilidades de autorreconhecimento12 da identidade sexual psicológica.
Atenta a essa realidade inconfundível, Elisângela Padilha13 explica que:
“No que condiz a uma sociedade heterossexista, o gênero é compreendido a partir da heterossexualidade e a intersexualidade está intimamente ligada com a experiência de um corpo vigiado, punido, controlado e construído pelos saberes médicos em salas cirúrgicas, discurso esse que contou sempre com a instituição família. Sendo assim, o intersexo é aquele que tem cicatrizes sociais criadas em salas cirúrgicas, visando socializá-lo, atribuindo-lhe o papel de homem ou mulher no modelo hetenormativo ”
O intersexo precisa de um nome que o individualize como pessoa humana, portadora de uma identidade civil, de um perfil psicológico, de um traço característico que o torne visível e o inclua dentre os demais seres humanos e que o deixe fora das discussões sobre o sagrado e o profano; necessita também de legislação que proteja sua escolha genética para corrigir falha da natureza que não pode ser imputada a ele, nem a seus familiares.
No imenso código da lei natural, cheio de normas não escritas, não lidas, nem interpretadas, mas perceptíveis, se encontra o direito do intersexo ao registro civil de acordo com a sua gênese sexual. A função do Juiz, neste caso, não é inventar um Direito novo, mas ajustar o direito preexistente às situações novas, à semelhança de uma suposta lei natural que, por ser justa e coerente, pode e deve ser aplicada aos neonatos que não apresentem o modelo binário definido no padrão aceito pela sociedade. Nisto não haverá perigo de criar-se regalias ou privilégios. Ao contrário, será evitado a incidência de discriminações que o binarismo sexual heteronormativo impõe, permitindo-se a inclusão da pessoa intersexo e a paridade de gênero, conforme intelecção do art. 5,º, inciso I, da Constituição Federal.
A ideia é incluir o intersexo, dando-lhe existência cidadã, com base numa certeza ou numa verdade racional que está acima do costume e da própria lei. Com isto, assegura-se ao intersexo o exercício de direitos constitucionais essenciais, tais como cidadania, personalidade e dignidade humana.
Sintetizando o raciocínio, podemos dizer que o homem que não se identifica com a sua natureza humana é reduzido a um sujeito que não tem condições de agir por si só, conforme agem os demais homens, porque se enxergará sempre, perto do espelho ou longe dele, como uma aberração da natureza. É que, independentemente de ser pessoa, sempre se reconhecerá sem identidade e sem valor moral, como conceitos correlativos de dignidade humana.
Como preleciona Fernanda Carvalho Leão Barreto na apresentação ao livro INTERSEXO (Ed. Revista dos Tribunais, 2018), por ela organizado:
"O intersexo é a própria diversidade encarnada, é a prova inconteste de que o binarismo de gênero não é um destino incontornável imposto pela biologia, mas uma construção cultural que alicerça a heteronormatividade, o patriarcalismo e o machismo."
A jurista e professora Maria Berenice Dias, coordenadora da obra supracitada, em seus prolegômenos, também enfatiza que:
"É necessário assegurar aos intersexuais o direito de eles próprios definirem como se identificam, como se reconhecem, livres da intervenção coacta do Estado de eleger, de forma coacta, sua identidade sexual. Certamente não há afronta maior a quem merece ter sua dignidade, sua integridade física e psíquica respeitada."
No que tange à alteração do gênero, a jurisprudência é pacífica no sentido de permiti-la, pois é direito fundamental subjetivo do indivíduo, não se exigindo, para tanto, nada além da sua manifestação de vontade. Tal pretensão pode, inclusive, ser exercida tanto na via judicial, como diretamente na instância administrativa, conforme recente decisão do STF, quando do julgamento da ADIN n.º 4.275/2018, haja vista estar vinculada exclusivamente à autodeterminação da pessoa.
Nesse precedente, a Corte Suprema julgou procedente a ação, dando interpretação conforme a Constituição e ao Pacto de São José da Costa Rica, bem como ao art. 58 da Lei n.º 6.015/73, reconhecendo, por conseguinte, aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transversalização ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil para afirmação de sua identidade de gênero e personalidade sexual.
Nada mais justo do que permitir também ao intersexo a aplicação da mesma regra de direito, quer por ato cartorial administrativo, quer por decisão judicial fundamentada – ubi eadem ratio, ibi ius idem esse debet.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, também confirmou o entendimento aplicado na ADIN supracitada, conforme julgamento manifestado no Recurso Especial n.º 1.631.644- MT (2016/0267667-4), da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, garantindo dentre outras coisas:
“Sob essa ótica, devem ser resguardados os direitos fundamentais das pessoas transexuais não operadas à identidade (tratamento social de acordo com sua identidade de gênero), à liberdade de desenvolvimento e de expressão da personalidade humana (sem indevida intromissão estatal), ao reconhecimento perante a lei (independentemente da realização de procedimentos médicos), à intimidade e à privacidade (proteção das escolhas de vida), à igualdade e à não discriminação (eliminação de desigualdades fáticas que venham a colocá-los em situação de inferioridade), à saúde (garantia do bem-estar biopsicofísico) e à felicidade (bem-estar geral).”
Em outra passagem bastante elucidativa, o venerando acórdão exaure o tema ao questionar a imutabilidade registral. Destarte, aduz categoricamente:
“Ademais, o chamado sexo jurídico (aquele constante no registro civil de nascimento, atribuído, na primeira infância, com base no aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico) não pode olvidar o aspecto psicossocial defluente da identidade de gênero autodefinido por cada indivíduo, o qual, tendo em vista a ratio essendi dos registros públicos, é o critério que deve, na hipótese, reger as relações do indivíduo perante a sociedade. Exegese contrária revela-se incoerente diante da consagração jurisprudencial do direito de retificação do sexo registral conferido aos transexuais operados, que, nada obstante, continuam vinculados ao sexo biológico/cromossômico repudiado. Ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito.”
A intersexualidade versada na ação judicial que deu margem ao presente estudo, diferentemente da transexualidade, se particulariza pelo fato de o autor ter nascido com genitália ambígua, ou seja, com uma variação nas características sexuais externas que identificam cada sexo e que os antigos, desde a mitologia grega, chamavam hermafroditismo ou androginia. As diferenças podem ser encontradas nos genitais, cromossomos, gônadas ou hormônios, que não coincidem com o entendimento binário dos corpos (nem o masculino, tampouco o feminino).
São inúmeros os conceitos para definir o que seja intersexual. Por essa razão, embora saiba que toda definição é reducionista, transcrevo, dentre todos, para compreensão dessa expressão, o conceito fornecido por Rodrigo da Cunha Pereira, ipsis verbis:
"Intersexual é a pessoa que nasceu fisicamente entre (inter) o sexo masculino e o feminino, tendo parcial ou completamente desenvolvidos ambos os órgãos sexuais, ou um predominando sobre o outro. Popularmente era conhecido como hermafrodita. (...) Os sujeitos intersexuais, que não são poucos, são os mais invisíveis de todas as categorias sexuais. Provavelmente porque é a que mais desafia o binarismo sexual." (Do livro Intersexo, p. 39 e 47, ed. RT, 2018).
Abro aqui um parêntesis para dizer que não se pode confundir a expressão intersexual com orientação sexual, pois como preleciona Fernanda Carvalho Leão Barreto (Op. Cit., p. 50):
“A intersexualidade não se confunde, pois, com orientação sexual, que diz respeito às inclinações afetivas e sexuais da pessoa, à expressão do desejo. Nesse sentido, um intersexual pode ser, por exemplo, homossexual, heterossexual, bissexual ou assexual.”
Na mesma linha de raciocínio é o luminoso vaticínio de Luiz Guilherme Loureiro14, segundo o qual:
“O diagnóstico do hermafroditismo exclui o do transexualismo, pois o indivíduo transexual possui genitália perfeitamente formada, adequada às suas informações genéticas e aos seus órgãos internos. O fenótipo corresponde ao genótipo, não havendo má formação embrionária, não houve má formação genética, restando o distúrbio apenas na inadequação da identidade sexual.”
No caso dos autos em estudo, o autor, maior de idade, inferiu que seu gênero é feminino e que sua identidade pessoal psicológica se encaixa em certos padrões de beleza e orientação sexual tipicamente de mulher. Por essa razão, submeteu-se espontaneamente a procedimento cirúrgico denominado penectomia, optando, com tal atitude, pela manutenção da genitália feminina e amputação da masculina, posto que o psiquismo sexual sempre lhe inclinou a se enxergar como mulher.
Atitude racionalmente correta porque o corpo do intersexo tem características variantes que devem ser respeitadas e não podem ficar à mercê do esculápio no momento de seu nascimento. Portanto, entregar ao médico o corpo de um bebê intersexo para decidir se o mesmo é masculino ou feminino é chancelar uma atrocidade e legitimar que a medicina realize intervenções irreversíveis num corpo que não fala por si ainda. Quando não respeitamos sua condição natural, violamos e torturamos esse corpo com procedimentos médicos violentos consistentes em mutilações genitais precoces e perenes, além da aplicação de medicamentos que alteram toda uma estrutura corporal.
Livre das amarras do binarismo sexual, a pessoa poderá sentir-se como realmente se autorreconhece e sair da invisibilidade que a ética hipócrita impõe ao indivíduo intersexo, sob o pálio ultrajante do que supõe-se ser a moral sexual. Dito de outro modo, seria o rompimento da etiqueta do preconceito e a exigência do inalienável dever de respeito por todos às diferenças individuais, como epifenômeno dos direitos da personalidade humana.
Além disso, poderá, liberto dos recalques que a imperfeição congênita lhe causava, enfrentar as vicissitudes da vida sem o receio de sofrer complexos ou de repelir opiniões estereotipadas a respeito da pretérita intersexualidade. Não terá mais vergonha do seu corpo, nem medo de amar e de ser amado; nem dificuldades em escolher quem amará e por quem quer ser amado; nem preocupações de como aproveitará a vida, após renascer com a identidade sexual do gênero que sempre adotou, livre do estigma social que oprime, humilha e perverte o indivíduo.
Ninguém. Nem o juiz, nem o médico, nem o psicólogo podem dizer a identidade sexual do intersexo. Somente ele possui a inteira capacidade e percepção para autodeclarar o que realmente é ante as tendências sexuais opostas que o seu corpo exibe. Por essa razão, a Resolução n.º 348 de 13/10/2020 do CNJ, em seu art. 5.º, caput, reconhece, como válida, a autodeclaração da pessoa como intersexo.
Sendo assim, com fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana, além do direito a identidade pessoal de gênero, torna-se medida necessária, à ausência de regência da lei, a autorização judicial para que o intersexo passe a adotar o nome (masculino ou feminino) que escolher, acrescido do matronímico/patronímico, uma vez que não pode permanecer com um prenome que está em total desacordo com sua personalidade e suas características fisicopsíquicas.
Ademais, no caso em estudo, não há riscos às relações jurídicas nem prejuízos a terceiros, visto que a retificação pleiteada consiste na simples alteração do prenome, não prejudicando os apelidos de família que devem permanecer inalterados. Também não haverá prejuízo quanto a mudança de gênero, até mesmo porque, em que pese o autor já ter tido as duas genitálias (masculina e feminina), submeteu-se a procedimento cirúrgico com amputação da genitália masculina, não havendo mais dúvidas de que o seu sexo agora é somente o feminino.
6. Como registrar o nascimento da pessoa intersexo?
A vida humana deve ser, necessariamente, marcada pela convivência social. Portanto, a existência de toda pessoa deve ser compartilhada com os demais membros da família e da sociedade, seja qual for a sua origem, raça, cor, condição social, grau de instrução ou identidade sexual. Mas para isso, é indispensável que seja individualizada com caracteres identitários que permitam sua identificação como ser humano.
No plano da existência humana, quer sob o ponto de vista da religião, quer sob a ótica da biologia, a pessoa intersexo não pode ser vista como um arquétipo do fora da lei. Pensar diferente é negar ao intersexo o amor ao próximo e o legítimo direito que toda pessoa tem, por natureza, de conquistar as aspirações que a vida reserva ao gênero humano, tal como retratado no aforismo cartesiano cogito, ergo sum.
Não defendemos aqui apenas um tratamento racionalista para a construção jurisprudente da hipótese estudada, mas também (e de forma simultânea, reconhecendo a invencível fugacidade da vida humana), uma espécie de primazia das emoções, empregada como fundamento jurídico para permitir a célere intervenção do magistrado no sentido de declarar a vulnerabilidade da pessoa intersexo, ainda na condição de nascituro.
Esse motivo de grande alcance e relevância social, justifica o uso de toda forma de hermenêutica jurídica para a prolação da decisão consciente que permite o registro de nascimento do neonato como intersexo, considerando o fato de que atenderá, ipso facto, a uma coletividade de pessoas, interessadas na confirmação da identidade de gênero autorreconhecida, que enfrenta resistência da sociedade cada vez mais complexa e multifacetada.
Antigamente, muitas pessoas existiam sem um prenome ou nome designativo; sequer tinham o documento básico chamado registro civil de nascimento. A maioria das pessoas era conhecida apenas por apelido, por alcunha ou por algum hipocorístico familiar. Aquelas que recebiam o sacramento do batismo, na crença católica, possuíam o batistério. Outros, nem esse documento eclesiástico tinham. Muitas vezes, o primeiro registro civil era feito quando a pessoa ía para a escola ou pelo fato de contrair núpcias.
Resta claro, portanto, que a impersonalidade não é atributo do ser humano. É preciso que a pessoa personalizada possa distinguir-se dos demais membros da sociedade em que convive. Mas para isso, é indispensável, antes de tudo, revelar-se socialmente para expressar, em que medida, precisa também ser, essencialmente, vista com sua verdadeira identidade de gênero sexual.
O jusfilósofo espanhol Luiz Legaz y Lacambra15 destacou em magnífica monografia, com palavras de rara beleza, que:
“En toda y cualquier sociedad humana tienen que estar presentes la amistad y la justicia. Allí donde, por hipótesis inverificable, sólo existiesen la radical y absoluta injusticia y la universal e integral enemistad entre los hombres, no podría decirse que se da una verdadera sociedad entre ellos.”
O intersexo é um ser humano. Por essa razão, não pode levar uma vida impessoal ou impersonalizar-se. A lei precisa assegurar o que a pessoa intersexo é realmente, de preferência pela própria autodeclaração ou autorreconhecimento dela. O legislador precisa antecipar-se à população intersexo, que já vem se mobilizando, de forma organizada, para obtenção de seus direitos. Se isso não ocorrer, a doutrina o fará pelo conjunto dos princípios que germinam na natureza, criando o Direito que o Judiciário haverá de aplicar por uma questão de justiça a favor da pessoa intersexo, cuja sexualidade revela sua personalidade e que não pode viver sem uma existência legal.
A Constituição Federal Brasileira prega, em seu preâmbulo, dentre outros princípios, a fraternidade como valor supremo da sociedade, ao assegurar aos cidadãos “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.”
Esta ideia carrega em si, não apenas conteúdo normativo, mas também religioso, considerando que a bíblia traz o dever de todo homem amar ao próximo mais que a si mesmo, porque todos são criaturas divinas e, portanto, devem amar-se entre si como amam a Deus, por toda a eternidade.
Por outro lado, o Código Civil estabelece que toda pessoa tem o direito a um nome, dispondo, em seu art. 16, o seguinte:“Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.” Essa regra incorpora o que, atualmente, se entende como a constitucionalização de princípios que se irradiam, com predominante força normativa, para todo o ordenamento jurídico, neste caso específico para o Direito Civil, conferindo ao Juiz, como seu exegeta, o salvo-conduto para a aplicação direta e simultânea do próprio Direito Constitucional na esfera cível, buscando sempre a proteção de valores consagrados em nossa Carta Magna, tais como: cidadania, personalidade, liberdade, igualdade, fraternidade, dignidade humana, justiça e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação .
Ora, se isso é verdade, deve haver um compromisso geral para o atendimento das necessidades de todas as pessoas que precisam de reconhecimento social para usufruir dos direitos de cidadania que são outorgados, indistintamente, aos seres humanos, independentemente da predisposição de setores sociais que, por alguma forma de preconceito legislativo ou não, tentam inviabilizar essa garantia constitucional básica. Esta concepção deve ser entendida com o caráter de urgência e de emergência para evitar, no caso em estudo, a intersexofobia.
Embora a Lei de Registros Públicos não contemple a possibilidade do registro civil de nascimento do intersexo, com essa denominação, a Resolução n.º 348 do CNJ, de 13/10/2020, em seu art. 3.º, inciso II, define como intersexo as “pessoas que nascem com características sexuais físicas ou biológicas, como a anatomia sexual, os órgãos reprodutivos, os padrões hormonais e/ou cromossômicos que não se encaixam nas definições típicas de masculino e feminino.”
Definir o que se entende por pessoa intersexo, sob a ótica do CNJ, foi um passo importante, porém não definitivo, posto que a Resolução n.º 348 não enfrentou o ponto nevrálgico da questão, que consiste em saber se o recém-nascido, que apresentar genitália dupla ou ambígua, deve ser registrado como intersexo.
Entendo que a ausência dessa previsão na mencionada norma administrativa não impede o registro de nascimento pelo notário ou mediante a prolação de decisão judicial, autorizando o registro do neonato como intersexo, obviamente, desde que apresentado juntamente com o requerimento perante a serventia extrajudicial, ou com a judicialização do pedido, laudo chancelado por médico credenciado, confirmando o diagnóstico da anatomia intersexual.
Com efeito, a Resolução supracitada, em seu art. 5.º, caput, reconhece, como válida, a autodeclaração da pessoa como intersexo, garantindo-lhes “o direito de utilizar vestimentas e o acesso controlado a utensílios que preservem sua identidade de gênero autorreconhecida” (art. 11, inciso IV, alínea “c”), considerando que “pessoas intersexo podem ter qualquer orientação sexual e identidade de gênero” (art. 3.º, inciso II, alínea “”b”).
Tanto a Constituição Federal, quanto a Resolução n.º 348/2020 do CNJ, são diplomas legais que se encontram em patamar hierárquico superior à Lei dos Registros Públicos. O primeiro diploma legal antecitado, sendo nossa Carta Magna, estabelece, como princípios fundamentais da República, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, incisos II e III), assim como “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outras formas de discriminação (art. 3.º, inciso IV). O segundo, embora sendo Resolução, possui status de norma constitucional, porque de acordo com o § 5.º, do art. 102, do Regimento Interno do CNJ “as Resoluções e Enunciados Administrativos terão força vinculante, após sua publicação no Diário da Justiça e no sítio eletrônico do CNJ”, o que equivale dizer que não podem ser questionadas por atos normativos de menor hierarquia.
Sendo assim, a Lei dos Registros Públicos por ser omissa e letra morta adormecida no tempo desusado, não pode impedir o cumprimento do preceito normativo constante da Resolução 348/2020 do CNJ, sob pena de estagnar garantias e negar o exercício de direito inalienável à pessoa intersexo, qual seja o seu registro civil de nascimento com a indicação da identidade de gênero que sua genitália apresentar ao nascer ou a autorreconhecida, quando atingir a autopercepção de sua identidade sexual psicológica.
Mas ainda que não existisse no ordenamento jurídico brasileiro lei ou norma administrativa que regulasse a matéria, o registro da pessoa intersexo poderia ser realizado por ordem judicial, porquanto o Poder Judiciário tem a prerrogativa e o dever de aplicar não apenas a lei, mas também o Direito (ainda que não escrito) às situações concretas sobre as quais é provocado a decidir. O lecionamento do professor Marcílio Franca, citado por Nevita Luna16, abaixo transcrito, dilucida essa questão:
“A totalidade do Direito não está contida na lei, porque a lei, simplesmente, não comporta todo o Direito. Há um direito que ultrapassa a letra da lei, e é possível encontrar o Direito fora (aquém ou além) dos limites da norma jurídica positiva.”
Cabe ao Juiz legisperito, como primeiro e último intérprete isento da lei, trazer à tona esse Direito latente que, aparentemente, está fora-da-lei, contudo presente em inúmeras situações sociais do gênero humano, para aplicá-lo aos casos análogos e prestar juscivilisticamente a pleiteada tutela jurisdicional, considerando que o Poder Judiciário é o abrigo dos injustiçados e a instância estatal onde, no dizer de Rui Barbosa17, “a esperança nos Juízes é a última esperança.”
7. Conclusão
A primeira vez que nos propomos a discorrer sobre um tema que ainda não dominamos completamente e que ainda não existe uma certa compreensão do destinatário do texto sobre o sentido de nossas ideias, vem-nos a inevitável sensação de estarmos inovando sobre o assunto e ingressando num mundo novo, onde tudo é estranho, polêmico, contraditório, ousado, sombrio, diferente e assustador.
Passa também a impressão de que o que foi dito antes não pode mais ser modificado, porque faz parte de uma verdade inquestionável. Mas a dialética, entendida como processo de diálogo para a busca da verdade, se estabelece, em qualquer tempo e lugar, entre o homem e o meio social em que está inserido, sempre voltada para o progresso da ciência e o bem da humanidade.
Se a experiência científica não permite afirmar, no momento do nascimento do intersexual, qual o seu verdadeiro sexo, deve prevalecer a coerência como pedra de toque da diversidade genésica, consignando-se por escrito no registro desse indivíduo neonato o gênero provisório de intersexo até que sua maturidade psicológica permita que o mesmo autodeclare espontaneamente a sua identidade sexual.
Aqui o formalismo legislativo hipotético cede lugar à equidade para corrigir a antinomia e o paradoxo que a abstração legiferante não contemplou. Cabe à justiça, nesse caso, suprir a deficiência diante da realidade concreta da vida para atender aos anseios do gênero humano, acaso não exista norma legislativa estatal ou administrativa do Judiciário que regule a situação enfrentada por conta da configuração anatômica do órgão sexual do nascituro.
A vetusta formalidade legislativa, a que nos referimos, atravancava a realidade da natureza humana do intersexo e a velocidade das decisões legiferantes. Daí a insegurança jurídica em relação ao direito caduco e a busca de soluções urgentes e eficazes, mediante adaptação supletiva da legislação vigente às situações supervenientes pelo Estado-Juiz.
Tal situação letárgica favorecia o alheamento do Estado ante as mutações sociais e o distanciamento do papel de garantidor das necessidades e legítimos interesses de grupos que vivem à margem dos modelos aceitos como padrão de normalidade, ao mesmo tempo em que também favorecia a formação de extratos sociais parasitários, que tinham como origem a indeferença ou incompreensão de quem possui atribuição institucional para evitá-los.
A natureza, como sabemos, não é homogênea. Nela habita uma infinidade de seres que não são homogêneos. Não há só uma raça, só uma cor, só uma matéria, só um idioma, só um canto, só uma ideia a respeito das coisas. O mundo é heterogêneo; o ser humano também. A partir dessa heterogeneidade material é possível explicar a diversidade sexual que tanto assusta atualmente a humanidade pela multiplicidade de pessoas que jamais poderão ser tratadas dentro de um padrão homogênico.
Isto deixa claro que se a natureza é um universo inacabado, os seres humanos, como parte integrante desse contexto, também carregam enormes imperfeições e diferenças entre si, que lhes permitem ser ou viver como melhor lhes convêm.
O homem é o resultado da sua interindividualização. Essa é a razão pela qual o médium Chico Xavier, num momento de rara inspiração, sintetizou toda a essência da individualidade humana, ao vaticinar “Eu permito a todos serem como quiserem, e a mim como devo ser.”
Consequentemente, devemos concordar que numa sociedade plúrima, como a brasileira, a laicidade nos inclina a raciocinar a partir de inúmeras possibilidades, dentre as quais como e onde encontrar a felicidade humana. Sabemos que somente cada pessoa, conhecendo a si própria, pode encontrá-la e descobrir onde ela está.
É que esse estado de bem-estar espiritual satisfaz o equilíbrio psicofísico e emocional do indivíduo, conferindo-lhe liberdade ilimitada para sonhar, falar, pensar, agir, decidir, vestir-se e comportar-se dentro do modelo de existência humana que escolheu de acordo com sua autonomia e a escala de valores éticos e morais socialmente aceitos ou não.
Por isso, não é equivocado afirmar que o ser humano, guardadas as devidas desigualdades, deve ser tratado de modo a obter a condição essencial e legal de existir como pessoa da maneira como reconhece sua identidade sexual, o que somente será possível quando, sob essa perspectiva, for aceito socialmente e tratado com igualdade perante todos de acordo com a autonomia da vontade e identidade de gênero psicossocial.
Esse entendimento vem sendo construído paulatinamente por diversos ramos do conhecimento humano. O Judiciário, como órgão regulador das tensões sociais, é obrigado a pronunciar-se diante das hipóteses ventiladas, ainda que não se enquadrem nas categorias jurídicas já reguladas. O Juiz não julga pessoas, mas os fatos a elas atribuídos, vale dizer a conduta. Ele encarna o direito vivo e, por isso, deve inspirar-se no exemplo do pretor romano para quem o direito era ars boni et aequi.
A função imparcial do Juiz, neste caso, não é inventar um Direito novo. Mas ajustar o Direito preexistente, que se encontra na lei, e que se mostra inerte, letárgico, omisso, anacrônico e impotente, além de legalista e puramente formal, às situações novas, à semelhança de uma suposta lei natural que, por ser justa e coerente, pode e deve ser aplicada a todos, sem o perigo de criar regalias ou distinções, com base numa certeza ou verdade racional que está acima do costume e da própria lei. Trata-se do Direito existente fora da lei, impregnado na natureza humana, tal como amplamente demonstrado pelo comediógrafo grego Sófocles na trágica peça de sua autoria, denominada Antígona.
O Direito também pode ser encontrado fora da lei ou do positivismo jurídico. A vida do Direito não pode ignorar a vida das pessoas, pois são exatamente as manifestações sociais que desmumificam, frequentemente, a imobilidade e vitalidade dos códigos e das leis para reconhecer direitos ignorados por esses diplomas legais, cuja frieza não é capaz de desvendar a história complexa de cada indivíduo, nem reconhecer a individualidade e diferenças entre os seres humanos.
Isto é possível, porque não é correto o Direito positivo contrariar o Direito natural, visto que é contra a lógica e a razoabilidade. Uma sociedade plural, democrática e laica deve respeitar todo tipo de identidade da pessoa humana, tal como ela se autorreconhece na sua identidade de gênero. Os preceitos morais implicam a suposição de garantias e exercício de liberdades individuais e coletivas. Não se pode tratar o oprimido com a tirania do opressor, nem permitir a mudança de posição entre ambos. Os direitos da pessoa intersexo são atributos de sua condição humana e não objeto da miopia ou do estrabismo da lei.
Se a lei brasileira ainda não reconhece ao intersexo o direito ao registro de nascimento, tal como veio ao mundo, ou como se autorreconhece18, haveremos de buscá-lo no jusnaturalismo. No imenso código da lei natural, cheio de normas não escritas, não lidas, nem interpretadas, mas perceptíveis, se encontra o direito do neonato intersexo ao registro civil de acordo com a sua gênese sexual, cabendo ao mesmo, ao atingir a puberdade ou a idade adulta, decidir qual será sua identidade sexual psicológica e, por conseguinte, atribuir-se um nome compatível com o seu gênero.
É certo data maxima venia que não podemos esperar essa iniciativa dos tribunais que, quase sempre conservadores, não inovam a maneira de interpretar a lei, nem atualizam frequentemente a jurisprudência, a qual, engessada por súmulas e precedentes antiguíssimos, impedem a caminhada pari passu do Direito com a velocidade galopante das novas concepções humanas sobre a identidade de gênero sexual.
Os juízes das instâncias monocráticas, sempre vanguardistas e dispostos a corrigir essas miopias legislativas, sem fugir ao espírito da lei e do Direto vigentes, enxergam e compreendem essas situações consideradas anômalas com inquestionável precisão, pois o contato imediato com as partes e com o conflito a solucionar, lhes confere a capacidade de perscrutar o caráter lícito do fato para inferir que toda norma de conduta ética ou moral tem como tendência transformar-se em norma jurídica para a construção da paz social.
Nessa medida, o Juiz torna-se o elo entre o conflito de interesses e a comunhão social, cabendo-lhe, como intérprete dos fatos submetidos ao seu conhecimento, dizer o direito fundamental aplicável à espécie, ainda que baseado em princípios imutáveis, os quais, por serem abstratos, ubíquos e universais, levam uma grande vantagem sobre a lei.
É desse fenômeno que o Juiz retira argumentos para exercer sua capacidade interpretativa, como também para prestar a almejada tutela juscivilista e acudir situações que o Direito escrito ignorou, bem assim para determinar, como no caso das pessoas intersexo, o reconhecimento civil da identidade psicológica de gênero autorreconhecida, a elas profligada pelo ordenamento jurídico.
Com esse sentimento jurisdicional, revelado na própria etimologia da palavra sentença, derivada do latim sententia, o Juiz garante, na justa medida, o cumprimento dos princípios que fazem prevalecer constitucional e juscivilmente o respeito a dignidade do Direito e da pessoa humana.
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