Resumo: O presente estudo tem o objetivo de demonstrar que a pessoa intersexo, não obstante haver nascido com genitália ambígua, que expõe, por óbvio, sua diferenciação sexual, tem direito ao registro público de seu nascimento, onde devem constar seu nome, sexo, cor, filiação, naturalidade, e outras informações pertinentes, porque, ainda que seu corpo não exponha a certeza sexual heteronormativa, revela, sem disfarces, a forma humana que lhe confere direito a uma identificação sexual provisória para o exercício de sua cidadania, personalidade e identidade civil, como fundamento básico da dignidade humana, até que a puberdade ou a idade adulta lhe assegure a garantia de optar em permanecer com o gênero sexual que nasceu ou com o que sua identidade psicológica autodeterminar posteriormente.
Palavras-chave: Intersexual – Intersexo – Intersexofobia - Identidade Civil – Gênero – Binarismo Sexual – Ignorado – Indefinido – Masculino – Feminino - Dignidade Humana – Nome Social - Registro Público – Direito Constitucional – Direito Civil.
Sumário: 1. Introdução. 2. Do desconhecimento científico e indefinições sociais identitárias sobre a pessoa intersexo. 3. Histórico. 4. O intersexo e sua definição sexual. 5. A criança intersexo: entre o masculino e o feminino. 6. Como registrar o nascimento da pessoa intersexo? 7. Conclusão.
1. Introdução
Todo ser humano ao nascer precisa ser identificado com um nome1, conforme determina o art. 16. do Código Civil2. Além disso, deve ser identificado também com o sexo3, a cor, a naturalidade, a filiação, e outras informações pertinentes. Pelo menos, em tese, isso é o que deve constar dos espaços em branco do documento oficial que conhecemos com o nome de certidão de nascimento.
Esse documento essencial, que confere cidadania ao indivíduo, não deve impor barreiras que fomentem o desprezo pela diversidade sexual, principalmente numa sociedade plural onde cada vez mais se reivindica o respeito à dignidade humana. A ideia aqui suscitada visa fomentar a inclusão da pessoa intersexo, segregada em face do padrão sexual heteronormativo adotado pelo legislador que a coloca num estado de anonimato e de invisibilidade por uma culpa que não pode ser atribuída a ela, muito menos a seus pais.
Não pode o Estado legislador, muito menos a sociedade preconceituosa, negar a pessoa intersexo o direito à cidadania e à socialização. Caso não seja reconhecido como tal, o indivíduo intersexual fica restrito no seio familiar pela omissão do Estado e vigiado pela comunidade como um prisioneiro, submetido às rígidas leis do cárcere e à difícil definição da identidade de gênero sexual no plano social, haja vista correr o risco de viver como alguém condenado a uma perpétua obscuridade e reclusão no ambiente estritamente doméstico.
Obter o registro de seu nascimento com todas as garantias peculiares à sua condição de pessoa intersexo é um direito sagrado, natural, universal, autoevidente, imprescritível e inalienável, que não pode ser olvidado em tempo e lugar algum, considerando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama, em seu art. 1.º, que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.”
Na mesma linha de raciocínio, a referida declaração obtempera, em seu art. 2.º, a ubiquidade desse direito natural universal, ao afirmar que “Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo , língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.”
No Brasil, o Código Civil assegura a toda pessoa o direito a um nome, dispondo, em seu art. 16, o seguinte:“Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.” Essa regra contempla direito da personalidade protegido pelo princípio constitucional da dignidade humana. Acrescente-se que o nome civil, além de atributo da personalidade, deve ser também designativo do sexo da pessoa, tal como se autorreconhece, devendo, por isso, o ordenamento jurídico assegurar-lhe o efetivo merecimento da autonomia da vontade para manter indene sua personalidade físico-psíquica ou social.
Destarte, por se tratar a dignidade humana de direito da personalidade (art. 2.º, Código Civil), intransmissível e irrenunciável, que cria possibilidades e acessos para obtenção da almejada tutela jurídica, nem sempre ela resulta do ordenamento jurídico ou do Direito, mas de uma característica intrínseca do homem, traduzida por uma espécie de lei moral4, presente na própria essência humana, que está acima de todas as normas legais, exatamente porque as precede em tudo.
Por essa razão, o princípio da imutabilidade do prenome civil não é absoluto, porquanto ele deve expressar a individualização e a correta identificação da pessoa autodeclarada em suas relações sociais. Esse autorreconhecimento, portanto, de natureza estritamente pessoal, decorre da autodeterminação do indivíduo e justifica a sobreposição do interesse individual sobre o interesse público e a segurança jurídica concernente a imutabilidade do prenome.
Registre-se, por ser necessário, que a pessoa intersexo, quando adota a identidade de gênero feminina, também deve ter acesso às medidas protetivas da Lei Maria da Penha, independentemente de suas orientações afetivas.
2. Do desconhecimento científico e indefinições sociais identitárias sobre a pessoa intersexo
Durante muito tempo a pessoa intersexual foi vista como um ser hermafrodita, como um indivíduo andrógino, homossexual, bissexual, transexual ou assexuado. Era comum até dizer-se que a pessoa com tais características constituía uma aberração sexual, posto ser portadora de dois órgãos sexuais (masculino e feminino) externos por conta da deformação congênita de sua genitália. Para o bem da ciência e felicidade dos intersexuais esses termos estão ultrapassados, caíram em desuso; são, em uma só palavra, anacrônicos.
A ausência de conhecimentos da comunidade científica de outrora a respeito da correta identidade sexual do indivíduo portador de genitália ambígua, ao incipiente exame dos órgãos sexuais externos, permitia inferir, de afogadilho, quando do seu nascimento, que era do sexo masculino ou feminino; nunca intersexo. Esse equivocado diagnóstico criava barreiras para a inclusão da pessoa intersexo no lugar de merecimento perante a sociedade.
Essa identificação sexual, feita açodadamente por médicos na maternidade ou por parteira leiga, nos tugúrios mais longínquos de nosso imenso país, também propiciava equívocos no registro civil de nascimento que somente mais tarde, quando a pessoa atingia a idade púbere ou núbil, após exame criterioso de profissional médico e entrevista do indivíduo intersexo, podia ser efetivamente determinada.
Outro entrave para a identificação de gênero no registro civil do intersexo, que ainda persistia, era a própria Lei dos Registros Públicos, que não permitia o registro de sexo dúbio ou incerto. Por isso, diferentemente dos transexuais, a pessoa intersexo enfrentava barreiras nos cartórios para obter a redesignação de gênero, motivo que a levava obrigatoriamente a postular a mudança de sexo e de nome em processo judicial.
Mas atualmente, com o avanço dos estudos interdisciplinares, é possível compreender e aceitar a condição biopsicológica da pessoa intersexual, pela multiplicidade de casos já solucionados no campo das ciências médicas, jurídicas e sociais.
A equivocidade do diagnóstico médico permitia a menção da palavra ignorado5, no registro de nascimento originário da criança intersexo, para identificar a referida diversidade sexual até que a idade adulta possibilitasse, a critério da pessoa interessada, definir o sexo predominante. Observado esse juízo hipotético, deveria constar definitivamente no campo específico de sua certidão de nascimento o gênero que escolhesse, posteriormente, em face de sua identidade psíquica.
O termo ignorado lançado no registro civil, após o nascimento do bebê intersexo, como sugestão do Ministério da Saúde do Brasil e do CFM, era – e continua sendo - completamente desrespeitoso. Quando ignoramos esse estado pessoal do neonato em referência estamos invisibilizando uma identidade humana, negando sua existência e toda uma situação complexa. Impõe-se, por assim dizer, a negação de um corpo humano apenas por ser diversificado e situar-se fora do padrão heteronormativo.
Essa nomenclatura me preocupava bastante, porque não refletia o que o intersexo é realmente. O Ministério da Saúde elaborou o manual de instruções para preenchimento da Declaração de Nascido Vivo, onde consta, numa atitude equivocada, a recomendação de preencher como “ignorado” sempre que constatado, pelo profissional médico, caso de nascituro com “genitália indefinida ou hermafroditismo”, porque certamente é tratado como uma anomalia congênita6 incorrigível.
Ocorre que a saída encontrada não dissipava a dúvida existente. Ao contrário, eliminava a característica identitária do intersexo, porque dizer “ignorado” era não definir o que já estava presumível ou provável. Era condenar ao ostracismo e à proscrição o intersexo, relegando, para o futuro, em face de procedimento médico-cirúrgico, a correção da decantada deformidade sexual para ajustá-la ao padrão sexual que a heteronormatividade impõe: masculino ou feminino.
Entretanto, os direitos tão sonhados pelas pessoas intersexo soavam como um surdo anseio ao parlamento brasileiro, levando todo o corpo legislativo a fazer ouvidos moucos às justas reivindicações do enorme contingente de indivíduos que era encarado simplesmente como uma inferioridade numérica7. Os debates sobre os direitos incitavam essas presumidas minorias a falar por si mesmas e a exigir, em nobilitante pervigília, reconhecimento social equivalente aos demais gêneros sexuais, pleito que foi deferido pelo Poder Judiciário no âmbito do CNJ, ao definir o que é a pessoa intersexo, para suprir a omissão do órgão legiferante.
De fato, a indiferença que havia outrora entre direito e sentimento, decorrente da ausência de regra legislativa, que protegesse pessoas intersexo, cujos significados ou qualificativos de identificação não estavam contidos no texto legal, inviabilizava a obtenção de reconhecimento e direitos concernentes à identidade de gênero aos que sempre carregavam as caracterísiticas de intersexual, posto que, embora necessitassem de segurança jurídica em suas relações sociais, não gozavam do mesmo status jurídico que é dado aos transgêneros.
Na verdade, a pessoa intersexo, nesse ínterim, ficava encoberto pelos véus indevassáveis das metáforas, considerando que utilizava-se o adjetivo “ignorado” para designá-la, cujo significado não correspondia a identidade de gênero que o vocábulo pretendia designar. O intersexual era visto, pelos burocratas do moralismo estatal, com os olhos estrábicos e ferrenhos de quem o enxergava como alguém que precisava, inicialmente, livrar-se da anomalia que aprisionava o seu corpo ingênito para, posteriormente, encaixar-se em uma norma jurídica que respaldasse sua existência como homem ou como mulher; jamais como ambos, ou seja, nunca como homem/mulher, ao mesmo tempo, num só corpo.
Aqui residia um claro exemplo de violência institucional contra a pessoa intersexo, haja vista que a sua aparente “deformidade sexual” era considerada incompatível com a desigualdade de gênero que já vinha conquistando status de normalidade e se ajustando, embora artificialmente, aos novos conceitos sobre diversidade de gênero e à consciência social quanto a necessidade de eliminar o olhar discriminatório sobre os corpos das inúmeras vítimas da transfobia.
O intersexo, que é humano, precisa obter esse status jurídico para ser reconhecido, em sociedade, como pessoa. Daí porque deve ter garantido o impostergável direito ao registro civil de nascimento, com essa denominação, porque a insígnia de “ignorado” jamais permitirá que o mesmo conviva e se relacione, em condições de liberdade, igualdade e dignidade, com os outros seres humanos.
Confesso que, muito embora ainda seja um jejuno a respeito do tema proposto, pretendo demonstrar, neste estudo, a análise que procedia em meus julgamentos, como Juiz titular de uma das Varas de Registros Públicos da Comarca de São Luís do Maranhão, onde tinha a oportunidade de examinar pedidos referentes à mudança de sexo e de nome, bem como à transgenitalização e redesignação de gênero, diante da multifacetária diversidade sexual das pessoas que postulavam em juízo a modificação do status quo ante.
Este estudo que desenvolvi, a partir de um caso verídico que julguei (PJe n.º 0818846-49.2018.8.10.0001), no dia 26 de abril de 2019, como magistrado titular da 8.ª Vara Cível da Comarca de São Luís, levou-me a determinar, à ausência de previsão legal, o registro civil da parte autora como intersexo.
Em face desse julgamento pioneiro, concedi uma longa entrevista à ANOREG-SP8, publicada na Revista n.º 21, página 100, dessa associação, em 20/03/2020, onde reforcei a defesa da necessidade de inclusão do nome “Intersexo” no registro civil de nascimento do recém-nascido e publiquei um artigo no site e na Revista do IBDFAM n.º 52 e também no site do Jusnavigandi sobre o assunto.
Posteriormente, o Conselho Nacional de Justiça, em boa hora, editou a Resolução n.º 348, de 13/10/2020, em cujo art. 3.º, inciso II, define a pessoa intersexo e permite seu registro, com essa identidade de gênero, na certidão de nascimento.
A Resolução do CNJ supracitada, afirma, ainda, dentre outras coisas, que “pessoas intersexo podem ter qualquer orientação sexual e identidade de gênero” (art. 3.º, inciso II, alínea “b”), bem assim que “a orientação sexual não está relacionada à identidade de gênero ou às características sexuais” da pessoa (art. 3.º, inciso II, alínea “d”).
A propósito, no enfrentamento do tema, lembro aqui da peça teatral “O Patinho Torto”, escrita em 1917, com irreprochável maestria e refinado estilo literário, pelo grande romancista maranhense Coelho Neto, considerado o “príncipe dos prosadores brasileiros”, em pesquisa realizada pela revista “O Malho” com vários intelectuais brasileiros de sua época. Nela esse notável dramaturgo retrata, de forma bem-humorada, hipótese de binarismo sexual presente na personagem Eufêmia que fora educada e registrada como mulher, mas depois de adulta, após uma consulta médica, retorna para a casa dos pais, rompe o noivado com o pretendente, passa a fumar e a vestir-se como homem, a falar com voz de barítono, a puxar navalha pelo rosto e a adotar nome masculino.
Eufêmia, conforme apressada inspeção ocular do esculápio, Dr. Patubera, era um hermafrodita por hipospadia. O próprio nome da personagem central da peça teatral “Eufêmia” carrega a ideia do eufemismo, figura de linguagem que suaviza a informação sobre alguma característica da pessoa de maneira agradável, permitindo a compreensão da sua diversidade, orientação e identidade sexual, rompendo as algemas que o tradicional conceito biológico do binarismo sexual (masculino/feminino) impõe à sociedade.
3. Histórico
A versão antiga de que o homem é que estabelece o paradigma masculino, como ordem hierárquica sobre os demais gêneros, sempre prevaleceu como verdade inquestionável no relato de religiosos, de governantes, de historiadores, de filósofos, de psiquiatras, de psicanalistas, de escritores e de pensadores, que pregavam a identidade de gênero como resultante do sexo biológico masculino.
Muito embora isso prevalecesse outrora, informa Viveiros de Castro9 que, no Antigo Egito, “considerava-se Astartea, deusa da lua, como sendo ao mesmo tempo macho e fêmea”, encontrando-se “nos poetas antigos”, conforme esse renomado criminalista maranhense, “allusões a essa legenda.”
Segundo a mitologia, Hermafrodito (Hermaphroditos) ou Hermafrodita, era uma pessoa metamórfica, construída pela Antiguidade Grega, isto é, um ser humano híbrido que tinha, ao mesmo tempo, traços corporais híbridos de seus progenitores, Hermes e Vênus Afrodite.
O fundamento geralmente utilizado para a existência do hermafrodita na Antiguidade Grega é o das Metamorfoses, que nos legou Ovídio, o célebre poeta romano. Essa versão, considerada a mais autêntica e detalhada, que chegou até a contemporaneidade, conta que Hermafrodito era um rapaz muito belo. Porém, ao banhar-se num lago, tem o corpo fundido com o de uma ninfa chamada Salmacis que, seduzida pela beleza incomparável de Hermafrodito, pediu aos deuses para que a unisse a ele, indissoluvelmente, a fim de torná-los um só indivíduo intersexo.
Após a fusão dos corpos e, tornando-se uma criatura enfraquecida e revoltada, sem identidade de gênero definida, Hermafrodita, vítima dessa transformação divina incompleta e anômala, sob o ponto de vista sexual, revolta-se e amaldiçoa o lago, profetizando mal agouro a todo aquele que ali banhasse, mediante o castigo de ser transmutado em um ser intersexual.
Para Anchyses Jobim Lopes10:
“A soma do masculino e do feminino seria dotada do simbolismo da fertilidade e seria o dom de deuses. Pela classificação acima descrita, Hermafrodita não seria um transexual, mas intersexual. E na versão de Ovídio a transformação foi uma violência imposta de modo que ficaria fora de ambas as classificações: trans e intersexualidade. Entretanto, a análise de vestígios mais arcaicos do mito revela atributos que podem fornecer dados valiosos para a compreensão psicanalítica da transexualidade.”
Existem outras versões para retratar a história do aparecimento dos sexos e suas diferenças, dentre as quais a criada por Platão em “O Banquete”, sobre o mito do andrógino, descrito por Aristófanes de forma hilariante.
O civilista Antônio Chaves11 enfatiza que:
“Cada um dos seres gregos criados por Aristófanes tinha a forma de uma esfera, com quatro braços e pernas além de duas caras numa mesma cabeça, voltadas em direções opostas, o que lhes conferia poderes excepcionais. Eles disparavam corridas girando como uma bola, cambalhotando sucessivamente nos oito membros disponíveis.
No dia em que se atrevem a rolar Olimpo acima para destronar os deuses, Zeus usou literalmente a tática de dividir o inimigo: com a ajuda de Apolo, cortou todos pelo meio reduzindo-os à forma dos humanos, com apenas dois braços e pernas. Da separação do andrógino original, apareceram homem e mulher, condenados a perseguir, pela existência, a metade perdida.”
Para afastar qualquer confusão teórica ou científica sobre o assunto, é de fundamental importância esclarecer que o intersexo não é um transexual. O intersexo é a pessoa que apresenta genitália biológica congênita ambígua disforme; enquanto que o transexual é o indivíduo que se autoidentifica com um sexo diverso do seu sexo biológico. Melhor explicando, é a pessoa que se reconhece com um sexo diferente do qual nasceu e passa a adotar outra identidade de gênero, contudo nem sempre se desfaz da conformação conata do sexo biológico original e responde aos estímulos psicológicos de outro.