4. O intersexo e sua definição sexual
A capacidade expansiva da globalização tornou-se responsável pela mudança de paradigma em diversos setores da sociedade, levando conceitos e comportamentos que eram considerados indecentes, e que definhavam em recônditas ideias preconceituosas, a obterem hegemonia, simpatia e aceitação social.
Tais ideias, outrora censuradas como tabu, conquistam, atualmente, as manchetes dos diversos meios de comunicação e das redes sociais, vencendo obstáculos que se lhe antepunham determinados setores da sociedade, ultrapassando fronteiras geográficas e até mesmo soberanias nacionais.
A coragem de seus defensores em exigir a inclusão, na pauta de discussão mundial, de direitos à diversidade de gênero que a lacuna legislativa não garantia a inúmeras pessoas, bem como o asseguramento da identidade civil básica com os traços característicos ao gênero que se identifica, a indivíduos que existiam e exigiam visibilidade como seres humanos, vem crescendo de maneira irrefreável e surpreendente, forçando o legislador a preencher a omissão legiferante que lhes negava direitos sociais.
Do mesmo modo, quando o dever imposto ao legislador originário não é cumprido, setores descontentes da sociedade batem à porta do Judiciário, requerendo o pronunciamento dos magistrados para suprir a omissão legislativa ou preencher os interstícios legais que postergam a conquista dos direitos reivindicados.
O vazio legislativo apontado pela população LGBTQIAP+ favorecia a despersonalização das pessoas que assim se reconheciam. Desse modo, foi preenchido, paulatinamente, pelos movimentos e mídias sociais, bem como - e principalmente - pelo ativismo e vanguardismo dos magistrados brasileiros, que compõem o primeiro grau de jurisdição do Poder Judiciário, os quais passaram a decidir contra o obsoletismo da legislação reinante. Havia – como ainda há – o interesse em tratar as pessoas transgêneros com a mesma igualdade e dignidade que homens e mulheres heterosssexuais são tratados em relação aos direitos e obrigações sociais.
Esse movimento vanguardista serviu de combustível e mola propulsora para o encorajamento de várias pessoas que viviam discriminadas ou na clandestinidade, em face de sua diversidade sexual, liderarem movimentos para o reconhecimento de seus direitos como intersexo. Não suportavam mais experimentar todo tipo de preconceito, discriminação e exclusão social, decorrente de uma herança cultural alicerçada no patriarcalismo colonial e imperial brasileiros, que sempre privilegiava a soberania e o moralismo atrabiliário do Estado como forma de repressão e banimento da comunidade LGBTQIAP+ do ambiente comunitário.
É que nossa sociedade foi construída a partir do mito do machismo e da crença na heterossexualidade como norma de conduta lícita entre as pessoas. Nada parecia mais longe de nossa racionalidade e realidade, se atentarmos para o fato de que, embora sob o manto do menor vestígio da timidez e da mais límpida pudicícia, um arsenal heteróclito da desfaçatez humana mostrava sua outra face, revelando o que o imaginário coletivo testemunhava, para tornar inútil e vã a tentativa de vetar o avanço da diversidade de gênero que, atualmente, prolifera.
O discurso sobre a definição da sexualidade humana tem sempre um viés moralista. Dificilmente alguém, em conversa informal ou mesmo convencional, discute a questão sob o ponto de vista da aceitação das orientações sexuais diferentes do padrão genético e social instituído pelo binômio homem-mulher.
Por essa razão, algumas categorias sexuais, a exemplo dos intersexuais, vivem como pessoas invisíveis, condenadas a um exílio compungitivo, numa espécie de retiro social que impõem a si mesmo, por vergonha ou por medo de assumirem a identidade biopsicossocial que carregam e de serem alvos do estigma que os levaram ao isolamento social e à invisibilidade, que nada mais é do que um injusto castigo aplicado pelo senso comum contra quem não tem culpa de nascer com o sexo que os caracteres da anatomia genital humana não identificou.
Mas não deve ser assim, porque o intersexo tem vida, tem rosto, sentimento, fala, desejos, paixões, emoções e necessita, essencialmente, ter um nome que o identifique com o sexo que a natureza concebeu. É como se o seu corpo gritasse a todos “quero ser como a natureza me fez”, cabendo, portanto, somente à pessoa intersexo ser feliz como se autorreconhece, sem perquirir-se sobre eventual erro cometido pela natureza. Essa é a razão pela qual num Estado de Direito as pessoas devem ser protegidas pelo ordenamento jurídico para evitar o ódio entre iguais e, principalmente, a intersexofobia.
O formato binário da genitália, no caso, não pode ser encarado simplesmente como uma exceção natural lançada num papel timbrado, selado e carimbado pelo notário público, muito menos como fundamento do registro de nascimento, mas como algo resultante da própria confirmação da pessoa intersexo a respeito de sua identidade sexual ou da conclusão do laudo médico em caso de recém-nascido.
O direito brasileiro tem o dever de tutelar tal situação, competindo ao Juiz, no caso de omissão legislativa, suprir a lacuna procedendo a uma interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, inclusive para, se for o caso, espanar as poeiras de eventual lei vetusta, para ajustá-la ao caso em julgamento, notadamente quando a matéria envolver direito de família ou da personalidade humana. Neste caso, como em outros semelhantes, a venda da deusa da Justiça não pode causar cegueira a algo que está ao alcance da visão de todos os cidadãos. Deve prevalecer a harmonização social para o tratamento paritário da pessoa intersexo em relação aos demais indivíduos, devendo o Juiz agir com cautela, prudência, cuidado e precaução na análise da hipótese submetida a julgamento.
O correto, portanto, é primar pela inclusão social, banindo a possibilidade de incidência da discriminação afetiva, do discurso de ódio, da vitimização, do bullying, da intersexofobia, porque o mesmo poder que confere ao Juiz a prerrogativa de dizer a intenção da lei a ser aplicada, também lhe confere autoridade institucional para outorgar valor jurídico-sentimental ao direito reivindicado pela pessoa intersexo, independente da constatação de eventuais emoções que a questão possa suscitar. Afinal, como afirma Michael Stolleis “a Justiça é, em primeiro lugar, a virtude da atenção em direção às circunstâncias dos fatos.”
Na minha atividade jurisdicional tenho tive a oportunidade de julgar casos envolvendo pedidos de transgenitalização, mudanças de sexo, de nome e de prenome por pessoas de orientação sexual diversa da que consta em seus registros de nascimento. Nenhuma perplexidade quanto a isso, até que, de forma inusitada para mim, deparei-me com um pedido envolvendo a intersexualidade de uma pessoa que fora registrada ao nascer com nome e sexo masculino, quando, na verdade, desde a idade infantojuvenil, sempre se identificou com o sexo feminino.
Na petição inicial, o interessado alegou ter nascido em 09/03/1993, ter sido registrado por seus pais com nome e sexo fisiológico masculino, e que na adolescência passou por período de confusão de transformação, já que percebia mudanças no seu corpo, tanto de ordem masculina (crescimento dos pelos) quanto de ordem feminina (crescimento das mamas), independentemente de fazer uso de hormônios.
Justificou que, apesar da ambiguidade sexual, passou a identificar-se como mulher, mudando suas vestimentas, seus gestos, o estilo e comprimento do cabelo e o comportamento, chegando até a se relacionar com pessoas do sexo masculino, inclusive tendo vida sexual desenvolvida de forma normal com seus parceiros, sendo hoje aceita e respeitada como mulher. Tem, atualmente, namorado e adota nome social compatível com sua anatomia feminina, acrescido dos apelidos de família.
Relatou também que se enquadra na modalidade de gênero denominada “intersexual”, pois nasceu com variações congênitas anatômicas desse gênero sexual, e muito embora tenha sido registrado como do sexo masculino, pelo fato de possuir genital semelhante a um pênis e indicação médica, ao tempo de seu nascimento, seu gênero sexual não condiz com a forma pela qual está identificado em seu registro civil.
Revela não ter feito uso de hormônios e que não se considera um transexual, já que possui genitália ambígua, porém não deseja manter os dois órgãos sexuais aparentes, mas somente o feminino.
Finalizou afirmando que a realidade fática de ser uma mulher com nome masculino lhe causa grande conflito existencial e incompreensão intrapsíquica, causando-lhe ainda constrangimento e invasão de privacidade, e que a mudança de prenome e de gênero será de suma importância para o seu reconhecimento pleno na sociedade como mulher.
Os fatos foram confirmados na audiência de justificação pelo depoimento pessoal do interessado, pelos depoimentos de testemunhas e pelo relatório médico de cirurgia de retificação de sexo, onde foi constatada a amputação do genital masculino.
Reforçando sua tese, a parte juntou ainda pareceres consistentes em Estudo Social e Relatório Psicológico, ambos emitidos pelo Núcleo Psicossocial da Defensoria Pública do Estado, atestando sua identidade social feminina.
No julgamento que proferi (novidadeiro para mim), nos autos do processo judicial eletrônico n.º 0818846-49.2018, aduzi que a ação de redesignação sexual com retificação de nome civil objetiva a alteração do prenome e do gênero, em razão da parte interessada ostentar designação que não mais corresponde à identidade psicológica que adquiriu e incorporou pela sua visível orientação sexual.
A hipótese que examinei nos autos aponta inequivocamente ao intersexualismo, inicialmente com características congênitas de ambos os sexos, embora com prevalência maior do sexo feminino, na aparência física, no timbre de voz e na personalidade individual da parte interessada, sendo a retificação do seu registro civil uma das etapas de conformação com o seu sexo psicológico.
Com efeito, há de se garantir ao intersexo o direito ao autorreconhecimento que fuja das categorias limitadoras que vinculam a identificação humana ao binarismo sexual homem ou mulher imposto pela moral social.
A Lei dos Registros Públicos, em seu art. 58, permite a alteração do prenome, uma vez que se constate ser este capaz de submeter seu titular a situações vexatórias. Tal previsão, portanto, se amolda aos intersexuais, visto que no dia-a-dia dessas pessoas fica evidente a exposição a eventuais discriminações, preconceitos, rejeições e exclusões, acaso seus pleitos de reconhecimento e aceitação social não sejam concedidos, violando-se claramente sua dignidade como pessoa humana.
O direito à identidade sexual deve ser protegido pelo Estado. A Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama em seu art. 12. que: “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. No exercício deste direito e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão as limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”.
É importante registrar que o CNJ, com a edição da Resolução n.º 348, de 13/10/2020, em seu art. 3.º, inciso II, considerou intersexo as “pessoas que nascem com características sexuais físicas ou biológicas, como a anatomia sexual, os órgãos reprodutivos, os padrões hormonais e/ou cromossômicos que não se encaixam nas definições típicas de masculino e feminino.”
Resta salientar que, nada obstante os prenomes das pessoas físicas conformarem-se com os princípios da imutabilidade e da indisponibilidade, tal interpretação vem sendo relativizada, tendo em vista a busca pela concretização de outros interesses sociais mais relevantes, como no caso em comento, em que a requerente visa a adequação do seu nome à sua identidade sexual atual, pois se o Estado permite a possibilidade de realizar-se cirurgia de transgenitalização deve também prover os meios necessários para que o indivíduo intersexo tenha uma vida digna e, por conseguinte, seja identificado jurídica e civilmente tal como se apresenta perante a sociedade e como se autorreconhece psicologicamente.
Essa ideia tem como pressuposto o princípio do tratamento da pessoa como um fim em si mesma, o que implica no dever do Estado implementar políticas públicas que visem a integração dos indivíduos no meio social em que vivem ou circulam, isto é, na obrigação estatal de favorecer a felicidade da pessoa livre, dotada de vontade, como sujeito de direitos, no fastígio de suas garantias individuais.
É preciso compreender e aceitar essa realidade axiológica, posto que ela é o componente que permite a identificação do indivíduo como pessoa humana, portadora de qualidade moral, com a sua própria essência, enquanto ser livre e consciente que se desprende da força e dominação que a sociedade impõe às vítimas da violência de gênero. Nada mais justo, porque cada um de nós possui uma identidade singular, inconfundível, indivisível, intransferível, inobscurecível, que nos impede de experimentar a vida do outro ou de sermos qualificado ou identificado com as características de outrem.
Desse modo é imperioso concluir que não é saudável, física e psicologicamente, ao ser humano intersexo conviver com essa crise existencial e de consciência. O caráter único e insubstituível de cada ser humano, titular de um valor próprio, o leva a não permitir que sua personalidade, em contínua evolução e transformação, como uma realidade a ser completada, resvale para o "Eu" que é questionado o tempo todo e, por essa razão, susceptível a mudanças.
É necessário ao indivíduo intersexual livrar-se de um dos seres que o aprisiona. Lutar contra isso o dia inteiro não é fazer apologia a um permanente polimento de si mesmo, nem ancorar-se exclusivamente num cartesianismo racional, mas adotar como solução paradigmática o axioma forjado na filosofia existencialista de Ortega y Gasset: ”Yo soy yo y mi circunstancia."
Destarte, não é justo, nem correto a sociedade impor ao indivíduo intersexo um sofrimento que os cidadãos que se dizem honrados não possuem a capacidade de sentir, nem de compartilhar a dor do outro. Esse apelo antagônico de moralistas e de conservadores fortalece cada vez mais a população LGBTQIAP+, em especial os indivíduos transgêneros a continuarem suas lutas, pelo fato de o acolhimento de seus interesses estar cada vez mais assegurado no ordenamento jurídico vigente, que os tratam como pessoas, dotadas de personalidade, cidadania e dignidade humana.
A biologia contemporânea tem demonstrado que a rigidez do modelo binário XX/XY perdeu a credibilidade perante a moderna genética e não mais atende aos questionamentos das mutações sexuais do cotidiano, muito menos às indagações da diversidade sexual ou de gênero. É que a natureza humana do intersexual, pelo dualismo genital que ostenta, não é suficiente para determinar quem ele é como "indivíduo" na medida em que essa expressão seja empregada como sinônima de indivisível.