Capa da publicação Genitália ambígua: intersexo tem nome e identidade
Capa: Sora
Artigo Destaque dos editores

O direito do intersexual à identidade de gênero e ao registro civil de nascimento

Exibindo página 3 de 5
Leia nesta página:

5. A criança intersexo: entre o masculino e o feminino.

Toda vez que uma mulher revela seu estado de gravidez, sua família, parentes, vizinhos e amigos criam uma expectativa enorme quanto ao sexo da criança. Então, perguntam, reiteradamente: É menino ou menina? Consequentemente, com base no modelo heteronormativo, a resposta mais lógica e aguardada, em princípio, seria: homem ou mulher, para facilitar a tradicional maneira de organizar o enxoval e o chá de bebê do neonato, ignorando-se qualquer possibilidade da variabilidade genital biológica do corpo do nascituro.

Em tempos passados, principalmente nas cidades pequenas, chegava-se ao absurdo de encaminhar a mulher, na condição de penitente, à igreja católica para confessar ao padre da paróquia sobre quem seria o provável pai do nascituro, como se lhe competisse o exercício de jurisdição pastoral, ética, moral, social e sancionatória sobre a coletividade de pessoas da comunidade.

Atualmente, a resposta definitiva, sobre o sexo do recém-nascido, quando convém aos pais, somente é informada após a realização do exame de ultrassonografia para constatar, de fato, qual o sexo da criança e eliminar a incessante curiosidade dos especuladores.

Sendo assim, o resultado do exame de ultrassom nem sempre é informado para os indagadores, visto que pode causar grande decepção e enorme constrangimento aos pais e à família da criança, acaso o laudo médico declarar que trata-se de intersexo, uma vez que a surpresa dessa constatação levará, obrigatoriamente, o núcleo familiar a esconder essa anomalia orgânica congênita para proteger o ente querido e impedir inevitável discriminação pelo corpo monstruoso e maldição que outrora acreditava-se que o hermafrodita carregava.

Porém, a maior dificuldade que a família enfrentava, e ainda hoje enfrenta, em face da incerteza sexual, após o nascimento da criança intersexo, é livrar-se do equivocado diagnóstico médico a respeito da configuração sexual do portador das chamadas Anomalias do Distúrbio Sexual (ADS) ou dos Distúrbios do Desenvolvimento Sexual (DDS), conforme definição prevista no art. 1.º da Resolução n.º 1.664/2003, do Conselho Federal de Medicina. É que, segundo a referida Resolução (art. 2.º), a “diferenciação sexual” deve“ter assegurada uma conduta de investigação precoce com vistas a uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil.”

Sucede que o mencionado “tempo hábil” para correção da “anomalia” diagnosticada, salvante os casos de disfunção ou que possam afetar a micturição, não pode ser interpretado como sinônimo de urgência ou de emergência, pois a hipotética crença na ulterior satisfação do bem-estar psicossocial da criança intersexo não pode ser fator de relevância ou de prevalência, ainda que sob o ponto de vista médico, para ignorar-se o autorreconhecimento, na idade adulta, da verdadeira identidade psicológica sexual de gênero, pela própria pessoa com indicação a submissão à cirurgia corretiva.

É que o conceito de gênero e de identidade de gênero, cada vez mais amplo, complexo e polissêmico denota muito cuidado do utente, porque vai além da definição que juristas, médicos, psicólogos, filósofos e outros estudiosos do tema possam imaginar. Como visto, não há um consenso ou unanimidade conceitual. A maior prova desta assertiva é a própria sigla LGBTQIAP+, que estende ao infinito as inúmeráveis possibilidades de autorreconhecimento12 da identidade sexual psicológica.

Atenta a essa realidade inconfundível, Elisângela Padilha13 explica que:

“No que condiz a uma sociedade heterossexista, o gênero é compreendido a partir da heterossexualidade e a intersexualidade está intimamente ligada com a experiência de um corpo vigiado, punido, controlado e construído pelos saberes médicos em salas cirúrgicas, discurso esse que contou sempre com a instituição família. Sendo assim, o intersexo é aquele que tem cicatrizes sociais criadas em salas cirúrgicas, visando socializá-lo, atribuindo-lhe o papel de homem ou mulher no modelo hetenormativo ”

O intersexo precisa de um nome que o individualize como pessoa humana, portadora de uma identidade civil, de um perfil psicológico, de um traço característico que o torne visível e o inclua dentre os demais seres humanos e que o deixe fora das discussões sobre o sagrado e o profano; necessita também de legislação que proteja sua escolha genética para corrigir falha da natureza que não pode ser imputada a ele, nem a seus familiares.

No imenso código da lei natural, cheio de normas não escritas, não lidas, nem interpretadas, mas perceptíveis, se encontra o direito do intersexo ao registro civil de acordo com a sua gênese sexual. A função do Juiz, neste caso, não é inventar um Direito novo, mas ajustar o direito preexistente às situações novas, à semelhança de uma suposta lei natural que, por ser justa e coerente, pode e deve ser aplicada aos neonatos que não apresentem o modelo binário definido no padrão aceito pela sociedade. Nisto não haverá perigo de criar-se regalias ou privilégios. Ao contrário, será evitado a incidência de discriminações que o binarismo sexual heteronormativo impõe, permitindo-se a inclusão da pessoa intersexo e a paridade de gênero, conforme intelecção do art. 5,º, inciso I, da Constituição Federal.

A ideia é incluir o intersexo, dando-lhe existência cidadã, com base numa certeza ou numa verdade racional que está acima do costume e da própria lei. Com isto, assegura-se ao intersexo o exercício de direitos constitucionais essenciais, tais como cidadania, personalidade e dignidade humana.

Sintetizando o raciocínio, podemos dizer que o homem que não se identifica com a sua natureza humana é reduzido a um sujeito que não tem condições de agir por si só, conforme agem os demais homens, porque se enxergará sempre, perto do espelho ou longe dele, como uma aberração da natureza. É que, independentemente de ser pessoa, sempre se reconhecerá sem identidade e sem valor moral, como conceitos correlativos de dignidade humana.

Como preleciona Fernanda Carvalho Leão Barreto na apresentação ao livro INTERSEXO (Ed. Revista dos Tribunais, 2018), por ela organizado:

"O intersexo é a própria diversidade encarnada, é a prova inconteste de que o binarismo de gênero não é um destino incontornável imposto pela biologia, mas uma construção cultural que alicerça a heteronormatividade, o patriarcalismo e o machismo."

A jurista e professora Maria Berenice Dias, coordenadora da obra supracitada, em seus prolegômenos, também enfatiza que:

"É necessário assegurar aos intersexuais o direito de eles próprios definirem como se identificam, como se reconhecem, livres da intervenção coacta do Estado de eleger, de forma coacta, sua identidade sexual. Certamente não há afronta maior a quem merece ter sua dignidade, sua integridade física e psíquica respeitada."

No que tange à alteração do gênero, a jurisprudência é pacífica no sentido de permiti-la, pois é direito fundamental subjetivo do indivíduo, não se exigindo, para tanto, nada além da sua manifestação de vontade. Tal pretensão pode, inclusive, ser exercida tanto na via judicial, como diretamente na instância administrativa, conforme recente decisão do STF, quando do julgamento da ADIN n.º 4.275/2018, haja vista estar vinculada exclusivamente à autodeterminação da pessoa.

Nesse precedente, a Corte Suprema julgou procedente a ação, dando interpretação conforme a Constituição e ao Pacto de São José da Costa Rica, bem como ao art. 58. da Lei n.º 6.015/73, reconhecendo, por conseguinte, aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transversalização ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil para afirmação de sua identidade de gênero e personalidade sexual.

Nada mais justo do que permitir também ao intersexo a aplicação da mesma regra de direito, quer por ato cartorial administrativo, quer por decisão judicial fundamentada – ubi eadem ratio, ibi ius idem esse debet.

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, também confirmou o entendimento aplicado na ADIN supracitada, conforme julgamento manifestado no Recurso Especial n.º 1.631.644- MT (2016/0267667-4), da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, garantindo dentre outras coisas:

“Sob essa ótica, devem ser resguardados os direitos fundamentais das pessoas transexuais não operadas à identidade (tratamento social de acordo com sua identidade de gênero), à liberdade de desenvolvimento e de expressão da personalidade humana (sem indevida intromissão estatal), ao reconhecimento perante a lei (independentemente da realização de procedimentos médicos), à intimidade e à privacidade (proteção das escolhas de vida), à igualdade e à não discriminação (eliminação de desigualdades fáticas que venham a colocá-los em situação de inferioridade), à saúde (garantia do bem-estar biopsicofísico) e à felicidade (bem-estar geral).”

Em outra passagem bastante elucidativa, o venerando acórdão exaure o tema ao questionar a imutabilidade registral. Destarte, aduz categoricamente:

“Ademais, o chamado sexo jurídico (aquele constante no registro civil de nascimento, atribuído, na primeira infância, com base no aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico) não pode olvidar o aspecto psicossocial defluente da identidade de gênero autodefinido por cada indivíduo, o qual, tendo em vista a ratio essendi dos registros públicos, é o critério que deve, na hipótese, reger as relações do indivíduo perante a sociedade. Exegese contrária revela-se incoerente diante da consagração jurisprudencial do direito de retificação do sexo registral conferido aos transexuais operados, que, nada obstante, continuam vinculados ao sexo biológico/cromossômico repudiado. Ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito.”

A intersexualidade versada na ação judicial que deu margem ao presente estudo, diferentemente da transexualidade, se particulariza pelo fato de o autor ter nascido com genitália ambígua, ou seja, com uma variação nas características sexuais externas que identificam cada sexo e que os antigos, desde a mitologia grega, chamavam hermafroditismo ou androginia. As diferenças podem ser encontradas nos genitais, cromossomos, gônadas ou hormônios, que não coincidem com o entendimento binário dos corpos (nem o masculino, tampouco o feminino).

São inúmeros os conceitos para definir o que seja intersexual. Por essa razão, embora saiba que toda definição é reducionista, transcrevo, dentre todos, para compreensão dessa expressão, o conceito fornecido por Rodrigo da Cunha Pereira, ipsis verbis:

"Intersexual é a pessoa que nasceu fisicamente entre (inter) o sexo masculino e o feminino, tendo parcial ou completamente desenvolvidos ambos os órgãos sexuais, ou um predominando sobre o outro. Popularmente era conhecido como hermafrodita. (...) Os sujeitos intersexuais, que não são poucos, são os mais invisíveis de todas as categorias sexuais. Provavelmente porque é a que mais desafia o binarismo sexual." (Do livro Intersexo, p. 39. e 47, ed. RT, 2018).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Abro aqui um parêntesis para dizer que não se pode confundir a expressão intersexual com orientação sexual, pois como preleciona Fernanda Carvalho Leão Barreto (Op. Cit., p. 50):

“A intersexualidade não se confunde, pois, com orientação sexual, que diz respeito às inclinações afetivas e sexuais da pessoa, à expressão do desejo. Nesse sentido, um intersexual pode ser, por exemplo, homossexual, heterossexual, bissexual ou assexual.”

Na mesma linha de raciocínio é o luminoso vaticínio de Luiz Guilherme Loureiro14, segundo o qual:

“O diagnóstico do hermafroditismo exclui o do transexualismo, pois o indivíduo transexual possui genitália perfeitamente formada, adequada às suas informações genéticas e aos seus órgãos internos. O fenótipo corresponde ao genótipo, não havendo má formação embrionária, não houve má formação genética, restando o distúrbio apenas na inadequação da identidade sexual.”

No caso dos autos em estudo, o autor, maior de idade, inferiu que seu gênero é feminino e que sua identidade pessoal psicológica se encaixa em certos padrões de beleza e orientação sexual tipicamente de mulher. Por essa razão, submeteu-se espontaneamente a procedimento cirúrgico denominado penectomia, optando, com tal atitude, pela manutenção da genitália feminina e amputação da masculina, posto que o psiquismo sexual sempre lhe inclinou a se enxergar como mulher.

Atitude racionalmente correta porque o corpo do intersexo tem características variantes que devem ser respeitadas e não podem ficar à mercê do esculápio no momento de seu nascimento. Portanto, entregar ao médico o corpo de um bebê intersexo para decidir se o mesmo é masculino ou feminino é chancelar uma atrocidade e legitimar que a medicina realize intervenções irreversíveis num corpo que não fala por si ainda. Quando não respeitamos sua condição natural, violamos e torturamos esse corpo com procedimentos médicos violentos consistentes em mutilações genitais precoces e perenes, além da aplicação de medicamentos que alteram toda uma estrutura corporal.

Livre das amarras do binarismo sexual, a pessoa poderá sentir-se como realmente se autorreconhece e sair da invisibilidade que a ética hipócrita impõe ao indivíduo intersexo, sob o pálio ultrajante do que supõe-se ser a moral sexual. Dito de outro modo, seria o rompimento da etiqueta do preconceito e a exigência do inalienável dever de respeito por todos às diferenças individuais, como epifenômeno dos direitos da personalidade humana.

Além disso, poderá, liberto dos recalques que a imperfeição congênita lhe causava, enfrentar as vicissitudes da vida sem o receio de sofrer complexos ou de repelir opiniões estereotipadas a respeito da pretérita intersexualidade. Não terá mais vergonha do seu corpo, nem medo de amar e de ser amado; nem dificuldades em escolher quem amará e por quem quer ser amado; nem preocupações de como aproveitará a vida, após renascer com a identidade sexual do gênero que sempre adotou, livre do estigma social que oprime, humilha e perverte o indivíduo.

Ninguém. Nem o juiz, nem o médico, nem o psicólogo podem dizer a identidade sexual do intersexo. Somente ele possui a inteira capacidade e percepção para autodeclarar o que realmente é ante as tendências sexuais opostas que o seu corpo exibe. Por essa razão, a Resolução n.º 348 de 13/10/2020 do CNJ, em seu art. 5.º, caput, reconhece, como válida, a autodeclaração da pessoa como intersexo.

Sendo assim, com fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana, além do direito a identidade pessoal de gênero, torna-se medida necessária, à ausência de regência da lei, a autorização judicial para que o intersexo passe a adotar o nome (masculino ou feminino) que escolher, acrescido do matronímico/patronímico, uma vez que não pode permanecer com um prenome que está em total desacordo com sua personalidade e suas características fisicopsíquicas.

Ademais, no caso em estudo, não há riscos às relações jurídicas nem prejuízos a terceiros, visto que a retificação pleiteada consiste na simples alteração do prenome, não prejudicando os apelidos de família que devem permanecer inalterados. Também não haverá prejuízo quanto a mudança de gênero, até mesmo porque, em que pese o autor já ter tido as duas genitálias (masculina e feminina), submeteu-se a procedimento cirúrgico com amputação da genitália masculina, não havendo mais dúvidas de que o seu sexo agora é somente o feminino.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
José Eulálio Figueiredo de Almeida

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Desembargador do TJMA. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo. O direito do intersexual à identidade de gênero e ao registro civil de nascimento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7995, 22 mai. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110285. Acesso em: 5 dez. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos