6. Como registrar o nascimento da pessoa intersexo?
A vida humana deve ser, necessariamente, marcada pela convivência social. Portanto, a existência de toda pessoa deve ser compartilhada com os demais membros da família e da sociedade, seja qual for a sua origem, raça, cor, condição social, grau de instrução ou identidade sexual. Mas para isso, é indispensável que seja individualizada com caracteres identitários que permitam sua identificação como ser humano.
No plano da existência humana, quer sob o ponto de vista da religião, quer sob a ótica da biologia, a pessoa intersexo não pode ser vista como um arquétipo do fora da lei. Pensar diferente é negar ao intersexo o amor ao próximo e o legítimo direito que toda pessoa tem, por natureza, de conquistar as aspirações que a vida reserva ao gênero humano, tal como retratado no aforismo cartesiano cogito, ergo sum.
Não defendemos aqui apenas um tratamento racionalista para a construção jurisprudente da hipótese estudada, mas também (e de forma simultânea, reconhecendo a invencível fugacidade da vida humana), uma espécie de primazia das emoções, empregada como fundamento jurídico para permitir a célere intervenção do magistrado no sentido de declarar a vulnerabilidade da pessoa intersexo, ainda na condição de nascituro.
Esse motivo de grande alcance e relevância social, justifica o uso de toda forma de hermenêutica jurídica para a prolação da decisão consciente que permite o registro de nascimento do neonato como intersexo, considerando o fato de que atenderá, ipso facto, a uma coletividade de pessoas, interessadas na confirmação da identidade de gênero autorreconhecida, que enfrenta resistência da sociedade cada vez mais complexa e multifacetada.
Antigamente, muitas pessoas existiam sem um prenome ou nome designativo; sequer tinham o documento básico chamado registro civil de nascimento. A maioria das pessoas era conhecida apenas por apelido, por alcunha ou por algum hipocorístico familiar. Aquelas que recebiam o sacramento do batismo, na crença católica, possuíam o batistério. Outros, nem esse documento eclesiástico tinham. Muitas vezes, o primeiro registro civil era feito quando a pessoa ía para a escola ou pelo fato de contrair núpcias.
Resta claro, portanto, que a impersonalidade não é atributo do ser humano. É preciso que a pessoa personalizada possa distinguir-se dos demais membros da sociedade em que convive. Mas para isso, é indispensável, antes de tudo, revelar-se socialmente para expressar, em que medida, precisa também ser, essencialmente, vista com sua verdadeira identidade de gênero sexual.
O jusfilósofo espanhol Luiz Legaz y Lacambra15 destacou em magnífica monografia, com palavras de rara beleza, que:
“En toda y cualquier sociedad humana tienen que estar presentes la amistad y la justicia. Allí donde, por hipótesis inverificable, sólo existiesen la radical y absoluta injusticia y la universal e integral enemistad entre los hombres, no podría decirse que se da una verdadera sociedad entre ellos.”
O intersexo é um ser humano. Por essa razão, não pode levar uma vida impessoal ou impersonalizar-se. A lei precisa assegurar o que a pessoa intersexo é realmente, de preferência pela própria autodeclaração ou autorreconhecimento dela. O legislador precisa antecipar-se à população intersexo, que já vem se mobilizando, de forma organizada, para obtenção de seus direitos. Se isso não ocorrer, a doutrina o fará pelo conjunto dos princípios que germinam na natureza, criando o Direito que o Judiciário haverá de aplicar por uma questão de justiça a favor da pessoa intersexo, cuja sexualidade revela sua personalidade e que não pode viver sem uma existência legal.
A Constituição Federal Brasileira prega, em seu preâmbulo, dentre outros princípios, a fraternidade como valor supremo da sociedade, ao assegurar aos cidadãos “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.”
Esta ideia carrega em si, não apenas conteúdo normativo, mas também religioso, considerando que a bíblia traz o dever de todo homem amar ao próximo mais que a si mesmo, porque todos são criaturas divinas e, portanto, devem amar-se entre si como amam a Deus, por toda a eternidade.
Por outro lado, o Código Civil estabelece que toda pessoa tem o direito a um nome, dispondo, em seu art. 16, o seguinte: “Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.” Essa regra incorpora o que, atualmente, se entende como a constitucionalização de princípios que se irradiam, com predominante força normativa, para todo o ordenamento jurídico, neste caso específico para o Direito Civil, conferindo ao Juiz, como seu exegeta, o salvo-conduto para a aplicação direta e simultânea do próprio Direito Constitucional na esfera cível, buscando sempre a proteção de valores consagrados em nossa Carta Magna, tais como: cidadania, personalidade, liberdade, igualdade, fraternidade, dignidade humana, justiça e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação .
Ora, se isso é verdade, deve haver um compromisso geral para o atendimento das necessidades de todas as pessoas que precisam de reconhecimento social para usufruir dos direitos de cidadania que são outorgados, indistintamente, aos seres humanos, independentemente da predisposição de setores sociais que, por alguma forma de preconceito legislativo ou não, tentam inviabilizar essa garantia constitucional básica. Esta concepção deve ser entendida com o caráter de urgência e de emergência para evitar, no caso em estudo, a intersexofobia.
Embora a Lei de Registros Públicos não contemple a possibilidade do registro civil de nascimento do intersexo, com essa denominação, a Resolução n.º 348 do CNJ, de 13/10/2020, em seu art. 3.º, inciso II, define como intersexo as “pessoas que nascem com características sexuais físicas ou biológicas, como a anatomia sexual, os órgãos reprodutivos, os padrões hormonais e/ou cromossômicos que não se encaixam nas definições típicas de masculino e feminino.”
Definir o que se entende por pessoa intersexo, sob a ótica do CNJ, foi um passo importante, porém não definitivo, posto que a Resolução n.º 348 não enfrentou o ponto nevrálgico da questão, que consiste em saber se o recém-nascido, que apresentar genitália dupla ou ambígua, deve ser registrado como intersexo.
Entendo que a ausência dessa previsão na mencionada norma administrativa não impede o registro de nascimento pelo notário ou mediante a prolação de decisão judicial, autorizando o registro do neonato como intersexo, obviamente, desde que apresentado juntamente com o requerimento perante a serventia extrajudicial, ou com a judicialização do pedido, laudo chancelado por médico credenciado, confirmando o diagnóstico da anatomia intersexual.
Com efeito, a Resolução supracitada, em seu art. 5.º, caput, reconhece, como válida, a autodeclaração da pessoa como intersexo, garantindo-lhes “o direito de utilizar vestimentas e o acesso controlado a utensílios que preservem sua identidade de gênero autorreconhecida” (art. 11, inciso IV, alínea “c”), considerando que “pessoas intersexo podem ter qualquer orientação sexual e identidade de gênero” (art. 3.º, inciso II, alínea “”b”).
Tanto a Constituição Federal, quanto a Resolução n.º 348/2020 do CNJ, são diplomas legais que se encontram em patamar hierárquico superior à Lei dos Registros Públicos. O primeiro diploma legal antecitado, sendo nossa Carta Magna, estabelece, como princípios fundamentais da República, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, incisos II e III), assim como “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outras formas de discriminação (art. 3.º, inciso IV). O segundo, embora sendo Resolução, possui status de norma constitucional, porque de acordo com o § 5.º, do art. 102, do Regimento Interno do CNJ “as Resoluções e Enunciados Administrativos terão força vinculante, após sua publicação no Diário da Justiça e no sítio eletrônico do CNJ”, o que equivale dizer que não podem ser questionadas por atos normativos de menor hierarquia.
Sendo assim, a Lei dos Registros Públicos por ser omissa e letra morta adormecida no tempo desusado, não pode impedir o cumprimento do preceito normativo constante da Resolução 348/2020 do CNJ, sob pena de estagnar garantias e negar o exercício de direito inalienável à pessoa intersexo, qual seja o seu registro civil de nascimento com a indicação da identidade de gênero que sua genitália apresentar ao nascer ou a autorreconhecida, quando atingir a autopercepção de sua identidade sexual psicológica.
Mas ainda que não existisse no ordenamento jurídico brasileiro lei ou norma administrativa que regulasse a matéria, o registro da pessoa intersexo poderia ser realizado por ordem judicial, porquanto o Poder Judiciário tem a prerrogativa e o dever de aplicar não apenas a lei, mas também o Direito (ainda que não escrito) às situações concretas sobre as quais é provocado a decidir. O lecionamento do professor Marcílio Franca, citado por Nevita Luna16, abaixo transcrito, dilucida essa questão:
“A totalidade do Direito não está contida na lei, porque a lei, simplesmente, não comporta todo o Direito. Há um direito que ultrapassa a letra da lei, e é possível encontrar o Direito fora (aquém ou além) dos limites da norma jurídica positiva.”
Cabe ao Juiz legisperito, como primeiro e último intérprete isento da lei, trazer à tona esse Direito latente que, aparentemente, está fora-da-lei, contudo presente em inúmeras situações sociais do gênero humano, para aplicá-lo aos casos análogos e prestar juscivilisticamente a pleiteada tutela jurisdicional, considerando que o Poder Judiciário é o abrigo dos injustiçados e a instância estatal onde, no dizer de Rui Barbosa17, “a esperança nos Juízes é a última esperança.”
7. Conclusão
A primeira vez que nos propomos a discorrer sobre um tema que ainda não dominamos completamente e que ainda não existe uma certa compreensão do destinatário do texto sobre o sentido de nossas ideias, vem-nos a inevitável sensação de estarmos inovando sobre o assunto e ingressando num mundo novo, onde tudo é estranho, polêmico, contraditório, ousado, sombrio, diferente e assustador.
Passa também a impressão de que o que foi dito antes não pode mais ser modificado, porque faz parte de uma verdade inquestionável. Mas a dialética, entendida como processo de diálogo para a busca da verdade, se estabelece, em qualquer tempo e lugar, entre o homem e o meio social em que está inserido, sempre voltada para o progresso da ciência e o bem da humanidade.
Se a experiência científica não permite afirmar, no momento do nascimento do intersexual, qual o seu verdadeiro sexo, deve prevalecer a coerência como pedra de toque da diversidade genésica, consignando-se por escrito no registro desse indivíduo neonato o gênero provisório de intersexo até que sua maturidade psicológica permita que o mesmo autodeclare espontaneamente a sua identidade sexual.
Aqui o formalismo legislativo hipotético cede lugar à equidade para corrigir a antinomia e o paradoxo que a abstração legiferante não contemplou. Cabe à justiça, nesse caso, suprir a deficiência diante da realidade concreta da vida para atender aos anseios do gênero humano, acaso não exista norma legislativa estatal ou administrativa do Judiciário que regule a situação enfrentada por conta da configuração anatômica do órgão sexual do nascituro.
A vetusta formalidade legislativa, a que nos referimos, atravancava a realidade da natureza humana do intersexo e a velocidade das decisões legiferantes. Daí a insegurança jurídica em relação ao direito caduco e a busca de soluções urgentes e eficazes, mediante adaptação supletiva da legislação vigente às situações supervenientes pelo Estado-Juiz.
Tal situação letárgica favorecia o alheamento do Estado ante as mutações sociais e o distanciamento do papel de garantidor das necessidades e legítimos interesses de grupos que vivem à margem dos modelos aceitos como padrão de normalidade, ao mesmo tempo em que também favorecia a formação de extratos sociais parasitários, que tinham como origem a indeferença ou incompreensão de quem possui atribuição institucional para evitá-los.
A natureza, como sabemos, não é homogênea. Nela habita uma infinidade de seres que não são homogêneos. Não há só uma raça, só uma cor, só uma matéria, só um idioma, só um canto, só uma ideia a respeito das coisas. O mundo é heterogêneo; o ser humano também. A partir dessa heterogeneidade material é possível explicar a diversidade sexual que tanto assusta atualmente a humanidade pela multiplicidade de pessoas que jamais poderão ser tratadas dentro de um padrão homogênico.
Isto deixa claro que se a natureza é um universo inacabado, os seres humanos, como parte integrante desse contexto, também carregam enormes imperfeições e diferenças entre si, que lhes permitem ser ou viver como melhor lhes convêm.
O homem é o resultado da sua interindividualização. Essa é a razão pela qual o médium Chico Xavier, num momento de rara inspiração, sintetizou toda a essência da individualidade humana, ao vaticinar “Eu permito a todos serem como quiserem, e a mim como devo ser.”
Consequentemente, devemos concordar que numa sociedade plúrima, como a brasileira, a laicidade nos inclina a raciocinar a partir de inúmeras possibilidades, dentre as quais como e onde encontrar a felicidade humana. Sabemos que somente cada pessoa, conhecendo a si própria, pode encontrá-la e descobrir onde ela está.
É que esse estado de bem-estar espiritual satisfaz o equilíbrio psicofísico e emocional do indivíduo, conferindo-lhe liberdade ilimitada para sonhar, falar, pensar, agir, decidir, vestir-se e comportar-se dentro do modelo de existência humana que escolheu de acordo com sua autonomia e a escala de valores éticos e morais socialmente aceitos ou não.
Por isso, não é equivocado afirmar que o ser humano, guardadas as devidas desigualdades, deve ser tratado de modo a obter a condição essencial e legal de existir como pessoa da maneira como reconhece sua identidade sexual, o que somente será possível quando, sob essa perspectiva, for aceito socialmente e tratado com igualdade perante todos de acordo com a autonomia da vontade e identidade de gênero psicossocial.
Esse entendimento vem sendo construído paulatinamente por diversos ramos do conhecimento humano. O Judiciário, como órgão regulador das tensões sociais, é obrigado a pronunciar-se diante das hipóteses ventiladas, ainda que não se enquadrem nas categorias jurídicas já reguladas. O Juiz não julga pessoas, mas os fatos a elas atribuídos, vale dizer a conduta. Ele encarna o direito vivo e, por isso, deve inspirar-se no exemplo do pretor romano para quem o direito era ars boni et aequi.
A função imparcial do Juiz, neste caso, não é inventar um Direito novo. Mas ajustar o Direito preexistente, que se encontra na lei, e que se mostra inerte, letárgico, omisso, anacrônico e impotente, além de legalista e puramente formal, às situações novas, à semelhança de uma suposta lei natural que, por ser justa e coerente, pode e deve ser aplicada a todos, sem o perigo de criar regalias ou distinções, com base numa certeza ou verdade racional que está acima do costume e da própria lei. Trata-se do Direito existente fora da lei, impregnado na natureza humana, tal como amplamente demonstrado pelo comediógrafo grego Sófocles na trágica peça de sua autoria, denominada Antígona.
O Direito também pode ser encontrado fora da lei ou do positivismo jurídico. A vida do Direito não pode ignorar a vida das pessoas, pois são exatamente as manifestações sociais que desmumificam, frequentemente, a imobilidade e vitalidade dos códigos e das leis para reconhecer direitos ignorados por esses diplomas legais, cuja frieza não é capaz de desvendar a história complexa de cada indivíduo, nem reconhecer a individualidade e diferenças entre os seres humanos.
Isto é possível, porque não é correto o Direito positivo contrariar o Direito natural, visto que é contra a lógica e a razoabilidade. Uma sociedade plural, democrática e laica deve respeitar todo tipo de identidade da pessoa humana, tal como ela se autorreconhece na sua identidade de gênero. Os preceitos morais implicam a suposição de garantias e exercício de liberdades individuais e coletivas. Não se pode tratar o oprimido com a tirania do opressor, nem permitir a mudança de posição entre ambos. Os direitos da pessoa intersexo são atributos de sua condição humana e não objeto da miopia ou do estrabismo da lei.
Se a lei brasileira ainda não reconhece ao intersexo o direito ao registro de nascimento, tal como veio ao mundo, ou como se autorreconhece18, haveremos de buscá-lo no jusnaturalismo. No imenso código da lei natural, cheio de normas não escritas, não lidas, nem interpretadas, mas perceptíveis, se encontra o direito do neonato intersexo ao registro civil de acordo com a sua gênese sexual, cabendo ao mesmo, ao atingir a puberdade ou a idade adulta, decidir qual será sua identidade sexual psicológica e, por conseguinte, atribuir-se um nome compatível com o seu gênero.
É certo data maxima venia que não podemos esperar essa iniciativa dos tribunais que, quase sempre conservadores, não inovam a maneira de interpretar a lei, nem atualizam frequentemente a jurisprudência, a qual, engessada por súmulas e precedentes antiguíssimos, impedem a caminhada pari passu do Direito com a velocidade galopante das novas concepções humanas sobre a identidade de gênero sexual.
Os juízes das instâncias monocráticas, sempre vanguardistas e dispostos a corrigir essas miopias legislativas, sem fugir ao espírito da lei e do Direto vigentes, enxergam e compreendem essas situações consideradas anômalas com inquestionável precisão, pois o contato imediato com as partes e com o conflito a solucionar, lhes confere a capacidade de perscrutar o caráter lícito do fato para inferir que toda norma de conduta ética ou moral tem como tendência transformar-se em norma jurídica para a construção da paz social.
Nessa medida, o Juiz torna-se o elo entre o conflito de interesses e a comunhão social, cabendo-lhe, como intérprete dos fatos submetidos ao seu conhecimento, dizer o direito fundamental aplicável à espécie, ainda que baseado em princípios imutáveis, os quais, por serem abstratos, ubíquos e universais, levam uma grande vantagem sobre a lei.
É desse fenômeno que o Juiz retira argumentos para exercer sua capacidade interpretativa, como também para prestar a almejada tutela juscivilista e acudir situações que o Direito escrito ignorou, bem assim para determinar, como no caso das pessoas intersexo, o reconhecimento civil da identidade psicológica de gênero autorreconhecida, a elas profligada pelo ordenamento jurídico.
Com esse sentimento jurisdicional, revelado na própria etimologia da palavra sentença, derivada do latim sententia, o Juiz garante, na justa medida, o cumprimento dos princípios que fazem prevalecer constitucional e juscivilmente o respeito a dignidade do Direito e da pessoa humana.