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A valorização dos bens imateriais: privilégio ou maldição?

07/08/2024 às 10:36
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A inserção de novos padrões de produção e de consumo na economia global, quando são incorporados a saberes e produtos tradicionais locais, podem causar a sua desnaturação, extinção e, ainda, consequentemente, sérios danos ao meio ambiente.

Atualmente, um dos maiores desafios da nossa sociedade é garantir a proteção do meio ambiente, da biodiversidade, bem como uma gestão mais sustentável dos recursos naturais face às mudanças climáticas e ambientais. Como as manifestações do patrimônio cultural imaterial estão intrinsecamente ligadas ao meio ambiente, a sua valorização por meio de proteção e salvaguarda, ao longo dos últimos anos, tem sido vista como um importante recurso estratégico que, além de garantir o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana, desempenha um papel crucial na promoção de práticas tradicionais ambientais sustentáveis, do fortalecimento e da resiliência das comunidades frente aos desafios globais.

Nesse contexto, diversas políticas institucionais relacionadas ao patrimônio imaterial não somente implicam na valorização de identidades sociais, mas em dinâmicas importantes de desenvolvimento dos territórios locais, já que tais práticas tradicionais incluem técnicas de manejo ambiental sustentável, sistemas agrícolas tradicionais, promovem a biodiversidade e a conservação do solo. Isto é, a proteção do patrimônio cultural imaterial não só preserva a diversidade cultural, mas também enseja o desempenho de um papel fundamental na conservação do meio ambiente. Ao reconhecer essas conexões, podemos fortalecer tanto a resiliência cultural quanto a ambiental das comunidades em todo o mundo, promovendo um futuro sustentável e inclusivo para todos.

Tanto é assim que a Unesco, sensibilizada com o tema, adotou, em 2003, uma convenção internacional específica, a “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial” 1, incentivando os estados membros a valorizar o patrimônio cultural imaterial existente em suas respectivas sociedades e, ainda, a integrar a salvaguarda desse patrimônio por meio de programas de planejamento, criando inventários nacionais, arquivos e outros sistemas de documentação, além de medidas legais e administrativas relevantes para identificar, revitalizar e salvaguardar essa herança cultural tradicional 2.

Contudo, dentre os diversos instrumentos de valorização existentes, dos quais a Convenção de 2003 da Unesco é um dos exemplos, assim como as das Indicações Geográficas - mecanismo jurídico de proteção, no âmbito do direito de propriedade intelectual -, observamos que tais procedimentos no tocante ao patrimônio imaterial vêm enfrentando, nos últimos tempos, desafios significativos. Se por um lado, valorizar o patrimônio cultural imaterial pode proteger o meio ambiente físico que o sustenta, minimizando alterações climáticas, desmatamento, poluição e urbanização descontrolada, por outro, fortemente marcada pelas lógicas empreendedora e mercadológica de exploração desse patrimônio, os processos de valorização podem estimular, em alguns processos, por meio de uma produção industrial e da mais-valia, a sua própria destruição e, consequentemente, gerar impactos negativos no meio ambiente em que são desenvolvidos.

Estamos falando da inserção de novos padrões de produção e de consumo da economia global que, quando são incorporados a saberes e produtos tradicionais locais, podem causar a sua desnaturação, extinção e, ainda, consequentemente, sérios danos ao meio ambiente. Caso significativo é o do grana padano, famoso queijo tradicional da região lombarda italiana, que nos últimos anos vem contribuindo significativamente para o alto nível de poluição atmosférica existente em todo o Vale do Pó.

Segundo a tradição, o queijo grana padano tem a sua origem no saber imaterial milenar desenvolvido por volta do ano de 1135, na região do Vale do Pó, por meio de metodologia dos monges da Abadia de Chiaravalle 3. Desde o seu reconhecimento como DOP – Denominação de Origem Protegida 4, em 1998, a sua produção vem crescendo de forma relevante. Tanto é assim que, somente em 2023, registrou-se um aumento de 4,84% em relação à 2022 5, significando um consumo de cerca de 1,3 milhão de litros de leite a mais que ano anterior.

Segundo estudo recém-publicado pela Universidade Bocconi de Milão, Fundação Centro Euro-Mediterrâneo sobre Mudanças Climáticas e ONG Legambiente 6, o aumento da produção de leite, especificamente para a realização do grana padano, está diretamente relacionado ao enorme problema ambiental existente na região da Lombardia. Trata-se de uma área com elevada densidade populacional, industrial, agrícola e, atualmente, com relevantes emissões vindas exclusivamente da pecuária intensiva de gado. Tal estudo esclarece ainda que, por exemplo, as províncias de Brescia, Cremona e Mantova, que são responsáveis por 70% de toda a produção de grana padano na Itália, tem a cidade de Cremona com a pior qualidade do ar de todo o continente europeu.

O patrimônio cultural no caso citado é o saber tradicional que vincula esse produto a um território a partir das práticas coletivas estabelecidas com o tempo, gerando vínculos identitários entre essa prática, a comunidade e o produto. Isto é, trata-se de uma construção social e coletiva tradicional 7 que, com o tempo e a partir da observação da natureza, sabia conviver com os limites ambientais estabelecidos pelo território.

A partir do momento em que se aplica a lógica do mercado - escala, produtividade, lucro, faturamento, linha de produção etc. - pautada apenas em crescimento econômico para exploração de tal produto tradicional, surgem conjunturas difíceis de gerir que, claramente, restam por não respeitar o seu respectivo território e a própria comunidade que gerou os valores simbólicos diferenciais desse produto frente a outros em sua dimensão econômica.

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No caso em questão, por exemplo, antigamente, o leite para produção do grana padano na Lombardia era feito por meio de criação artesanal de vacas típicas da região, que produziam até trinta litros de leite por dia. Hoje, tal prática foi “adaptada” ao mercado e, assim, temos uma criação intensiva, com espécies holandesas, que chegam a produzir até 55 litros de leite por dia e que não se alimentam mais de feno como no passado, mas de uma pasta industrial feita de soja e milho. Isto “significa uma maior necessidade de nutrientes e um aumento na produção de excrementos”, “equivalentes a mais de dez vezes a quantidade de resíduos sólidos urbanos das cidades da Região”, segundo Damiano Di Simine, responsável científico da ONG Legambiente 8.

Como acima mencionado, existe uma transversalidade e uma interdependência entre a proteção e a salvaguarda do patrimônio cultural e o meio ambiente. Nesse sentido, a valorização desses bens é um instituto relevante para a sua perpetuação e um grande privilégio para a natureza que o circunda, mas por vezes pode entrar em conflito com certos projetos de desenvolvimento o transformando em maldição.

A valorização do patrimônio cultural imaterial e suas respectivas instituições são extremamente relevantes para a diversidade cultural, a criatividade humana, a proteção dos territórios, das culturas tradicionais e, consequentemente, para o meio ambiente. Paradoxalmente, essa cultura passa a ser também “objeto” de disputa entre diferentes atores sociais que interagem entre si de maneira bestial no âmbito do capitalismo avançado, não somente destruindo o próprio patrimônio, mas ameaçando a existência do seu território e contaminando a sua própria população. É o que estamos constatando com o grana padano na região do Vale do Pó, o que poderia curar a doença resta por matar o paciente.


Notas

1 https://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/ConvencaoSalvaguarda.pdf.

2 Artigo 13 (d) da Convenção Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003).

3https://www.granapadano.it.

4 Noções básicas sobre as Indicações Geográficas italianas podem ser encontradas no site do Ministério da Agricultura italiano: https://www.politicheagricole.it/flex/cm/pages/ServeBLOB.php/L/IT/IDPagina/2090 e no REGOLAMENTO (CE) N. 510/2006 DEL CONSIGLIO del 20/3/ 2006 relativo a proteção das indicações geográficas, veja em .

5https://www.granapadano.it/it-it/curiosita-ed-eventi/notizie-sala-stampa/bilancio-parziale-del-2023-consumi-totali-in-aumento-del-4-grazie-anche-all-export.

6 J. Lunghi, M. Malpede, L. Aleluia Reis, Exploring the impact of livestock on air quality: A deep dive into Ammonia and particulate matter in Lombardy, Environmental Impact Assessment Review, Volume 105, 2024, 107456, ISSN 0195-9255, https://doi.org/10.1016/j.eiar.2024.107456 e https://www.cmcc.it/it/articolo/qualita-dellaria-in-lombardia-lallevamento-e-responsabile-fino-un-quarto-dellinquinamento.

7 Veja PRATS, Llorenç. Antropología y patrimonio. Barcelona: Ariel, 1997.

8https://altreconomia.it/ecco-perche-il-successo-del-grana-padano-e-un-problema-sanitario.

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Sobre a autora
Anita Mattes

Doutora pela Université Paris-Saclay, Mestre pela Université Panthéon-Sorbone, Professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, Conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), sócia-fundadora do escritório Studio Mattes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTES, Anita. A valorização dos bens imateriais: privilégio ou maldição?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7707, 7 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110440. Acesso em: 21 nov. 2024.

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