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A revelia nos juizados especiais

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O instituto processual da revelia, muito embora de fácil configuração no âmbito da Justiça Comum, ostenta particularidades dignas de nota e atenção quanto à sua efetivação dentro do contexto procedimental adotado nos JECs, de forma a que os feitos em trâmite mantenham-se sempre dentro da regularidade processual devida.

Mas e o que diz a lei especial que rege o procedimento cível no âmbito dos JECs? O artigo 20 da Lei 9099/95 rege a matéria estabelecendo que não comparecendo o demandado à sessão de conciliação ou à audiência de instrução e julgamento, reputar-se-ão verdadeiros os fatos alegados no pedido inicial, salvo se o contrário resultar da convicção do Juiz.

Assim, em que pese a natural tendência de importação da hipótese legal prevista pelo artigo 319 do CPC como ensejadora da revelia também no procedimento sumaríssimo previsto nos JECs, não há amparo legal para tal conclusão, considerando-se o princípio da especialidade que afasta a aplicação da norma geral contraditória com os ditames especiais.

O artigo 319 do CPC prevê que, se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor. Ou seja, porque calcado em procedimento mais formal, a revelia decorre da ausência de contestação, sem qualquer menção à presença física do demandado, sendo esta determinante para a configuração do instituto nos Juizados Especiais, norteado que é pelo critério da oralidade, o qual pressupõe o comparecimento das partes aos atos processuais.

Assim, é que apesar do entendimento esposado pelo ENUNCIADO 11 DO FONAJE – FÓRUM NACIONAL DE JUIZADOS ESPECIAIS, pelo qual, nas causas de valor superior a vinte salários mínimos, a ausência de contestação, escrita ou oral, ainda que presente o réu, implica revelia, considero que tal entendimento não se mostra consoante com o teor expresso da Lei 9099/95, eis que, conforme já salientado acima, a configuração da revelia nos JECs decorre da ausência do demandado a qualquer das audiências designadas no feito.

A jurisprudência tem confirmado este entendimento:

EMENTA: AÇÃO DE COBRANÇA. INDENIZAÇÃO DO SEGURO OBRIGATÓRIO DPVAT. INVALIDEZ PERMANENTE DECORRENTE DE ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. 1. Em sede de Juizado Especial, o que implica em revelia é a ausência do demandado na audiência conciliatória, e não a ausência de contestação. 2. O Juizado Especial é competente para a apreciação da matéria, não havendo necessidade de realização de prova pericial, pois os documentos juntados comprovam que do acidente decorreu a invalidez permanente do autor e é desnecessária a aferição do grau de invalidez. 3. Prescrição inocorrente. Considerando que a invalidez permanente foi constatada em 25/10/2006, sendo este o marco inicial para a contagem do prazo prescricional, verifica-se que na data de propositura da ação, em 13/03/2007, ainda não havia transcorrido o prazo trienal previsto no art. 206, § 3°, IV, do Código Civil vigente. 4. A indenização por invalidez equivale a 40 salários mínimos. Não prevalecem as disposições do CNPS que estipulam teto inferior ao previsto na Lei 6.194/74. 5. É legítima a vinculação da indenização ao salário mínimo, na medida em que não ocorre como fator indexador. 6. Apuração do valor devido corretamente efetuada pela sentença, com base no salário mínimo vigente à época do ajuizamento da ação. 7. Juros legais, de 1% ao mês, e correção monetária, pelos índices do IGP-M, corretamente fixados, respectivamente, a partir da citação e do ajuizamento da ação. 8. Aplicação da Súmula 14, das Turmas Recursais do JEC/RS. RECURSO IMPROVIDO. (Recurso Cível Nº 71001418334, Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Eduardo Kraemer, Julgado em 17/10/2007)

EMENTA: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL. AÇÃO AFORADA NO DOMICÍLIO DO AUTOR. REVELIA. NÃO COMPARECIMENTO DO DEMANDADO À AUDIÊNCIA. JUSTIFICATIVA NÃO ACEITA. RECURSO IMPROVIDO. É competente o Juizado Especial Cível para conhecer e julgar ação de indenização por danos morais, cumulada com pedido de cobrança de honorários advocatícios, aforada no domicílio do autor, porque competente é o foro de seu domicílio para as ações de reparação de dano de qualquer natureza, não se cogitando de competência da Justiça do Trabalho. Não comparecendo o demandado à audiência designada, apresentando justificativa não acolhida pelo magistrado, por inverossímil, impõe-se a confirmação da decisão de procedência da demanda, por seus próprios fundamentos. (Recurso Cível Nº 71001370428, Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Clovis Moacyr Mattana Ramos, Julgado em 26/09/2007)

EMENTA: AÇÃO DE DESCONSTITUIÇÃO DE DÍVIDA C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. NO JUIZADO ESPECIAL, É O NÃO COMPARECIMENTO DA PARTE-RÉ QUE IMPORTA NA REVELIA, E NÃO A AUSÊNCIA DE CONTESTAÇÃO. IRRESIGNAÇÃO DO CONSUMIDOR COM A COBRANÇA, PELA PRESTADORA DE SERVIÇOS, DE VALORES RELATIVOS A LIGAÇÕES TELEFÔNICAS SUPOSTAMENTE NÃO EFETUADAS. BLOQUEIO DA LINHA TELEFÔNICA MÓVEL CAUSADO PELA INADIMPLÊNCIA DO AUTOR. INDEMONSTRADO QUE A INTERRUPÇÃO DOS SERVIÇOS PELA COMPANHIA TELEFÔNICA TENHA DESENCADEADO LESÃO DE CUNHO EXTRAPATRIMONIAL. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO, PARA SUPRIR OMISSÃO DO JULGADO. (Recurso Cível Nº 71000606327, Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Mylene Maria Michel, Julgado em 23/02/2005)

EMENTA: PROCESSUAL.REVELIA. Correta a revelia decretada com base no disposto no artigo 20 da Lei n° 9.099/95, notadamente porque na Sistemática do Juizado Especial Cível é obrigatório o comparecimento da parte, o que não resta suprido com a presença do advogado. Tal não autoriza, entretanto, o não recebimento da contestação. Ausência de prejuízo no caso concreto. INDENIZATÓRIA. SUPERMERCADO. ACIDENTE COM CRIANÇA COLOCADA NO INTERIOR DO CARRINHO. A hipótese não é de responsabilidade por fato do serviço, porque serviço algum foi prestado. Aplica-se a cláusula geral de responsabilidade civil posta nos artigos 927 e 186 do Código Civil. Culpa exclusiva de quem coloca criança de um ano em local inapropriado. DERAM PROVIMENTO. (Recurso Cível Nº 71000531483, Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Luiz Antônio Alves Capra, Julgado em 11/08/2004)

EMENTA: AÇÃO DE COBRANÇA. MOTORISTA DE TÁXI. DESPESAS COM GASOLINA. ÔNUS DA PROVA. Nos termos do artigo 46 da Lei 9.099/95, a proposta de decisão homologada (fls. 29/30), que julgou improcedente o pedido inicial, deve ser mantida por seus próprios fundamentos, visto que os argumentos apresentados no recurso do autor não justificam seu provimento. Desimportante o aspecto formal deduzido no recurso acerca da identificação da pessoa que apresentou defesa. O próprio autor, no seu pedido inicial, disse que (...) trabalhou como motorista de táxi para a empresa do requerido, que se chama `Empresa de Táxi Papa Fila¿, pelo período de 5 (cinco) anos. Ademais, no Juizado Especial Cível, a revelia ocorre diante do não comparecimento da parte demandada à audiência (artigo 20 da Lei 9.099/95), não pela singela ausência, em tese, de contestação formal. Segundo o artigo 333, inciso I, do CPC, tem a parte autora o ônus da prova quanto aos fatos constitutivos do seu direito. Dessa maneira, era incumbência probatória do autor demonstrar, de forma inequívoca, que na sua relação com a parte ré não tinha a obrigação de abastecer o veículo que usava e que suportou, indevidamente, gastos com combustível. Além do Termo de Rescisão Contratual de Locação de Veículo Táxi das fls. 26/27, que não tem qualquer característica evidente de documento puramente unilateral e potestativo, indicar que o autor tinha a obrigação de pagar o combustível, foi precisa a decisão da 1ª fase ao salientar que o demandante não comprovou ter suportado, em nome da parte ré, valores a título de pagamento de combustível. Desnecessidade, no mais, em sede de Juizado Especial Cível, de se formalizar o julgamento, principalmente na instância recursal, repetindo-se argumentos apresentados na decisão da 1ª fase (artigo 46 da Lei 9.099/95). Recurso improvido. Proposta de decisão homologada mantida por seus próprios fundamentos. (Recurso Cível Nº 71000656595, Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Leandro Figueira Martins, Julgado em 13/04/2005)

EMENTA: AÇÃO DE DESCONSTITUIÇÃO DE DÍVIDA C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. NO JUIZADO ESPECIAL, É O NÃO COMPARECIMENTO DA PARTE-RÉ QUE IMPORTA NA REVELIA, E NÃO A AUSÊNCIA DE CONTESTAÇÃO. IRRESIGNAÇÃO DO CONSUMIDOR COM A COBRANÇA, PELA PRESTADORA DE SERVIÇOS, DE VALORES RELATIVOS A LIGAÇÕES TELEFÔNICAS SUPOSTAMENTE NÃO EFETUADAS. BLOQUEIO DA LINHA TELEFÔNICA MÓVEL CAUSADO PELA INADIMPLÊNCIA DO AUTOR. INDEMONSTRADO QUE A INTERRUPÇÃO DOS SERVIÇOS PELA COMPANHIA TELEFÔNICA TENHA DESENCADEADO LESÃO DE CUNHO EXTRAPATRIMONIAL. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO, PARA SUPRIR OMISSÃO DO JULGADO. (Recurso Cível Nº 71000606327, Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Mylene Maria Michel, Julgado em 23/02/2005)

Analisada a questão sob o aspecto eminentemente prático, tem-se que, uma vez ausente o demandado, devidamente citado com expressa advertência quanto aos efeitos de seu não comparecimento, bem como intimado para a audiência de conciliação designada, há que se reconhecer a configuração da revelia, cujos efeitos somente se realizarão se não afrontarem a convicção do julgador, a teor do artigo 20 susotranscrito.

Na verdade, é sabido que a revelia não importa no julgamento procedente do pedido autoral, uma vez que a presunção de veracidade prevista como efeito material de sua ocorrência é relativa e não absoluta; e, ao apreciar o pedido formulado, o juiz é dotado da prerrogativa legal de "dirigir o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, para apreciá-las e para dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica."

Portanto, na tarefa de conduzir o feito e entregar a prestação jurisdicional, o juiz não é um mero espectador ou uma figura decorativa; por certo que, muito embora presente o efeito material da revelia, quanto à presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor, aquele não decidirá, absolutamente, em direção contrária à lógica dos fatos apurados, inclusive em respeito ao princípio da busca pela verdade real.

Dessa forma, tida a revelia como a ausência da parte demandada a qualquer das audiências designadas, a entrega de contestação por parte de patrono constituído não teria o condão de afastar o instituto, mas, a meu ver, de impedir que os fatos alegados sejam tidos por incontroversos e, dessa forma, independam de prova, conforme estabelece o artigo 334, III do CPC, não eximindo o autor, assim, do ônus de provar o alegado, previsto pelo artigo 333, I do mesmo diploma legal, caso o juiz não esteja plenamente convencido acerca da procedência do pedido.

E quando o autor está presente, mas não contesta o pedido, seja por escrito ou oralmente? A meu ver, muito embora em sentido contrário ao entendimento manifestado pelo ENUNCIADO 11 DO FONAJE, não ocorre a revelia, nos termos previstos pelo artigo 20 da Lei 9099/95.

Na verdade, nesta hipótese, têm-se por incontroversos os fatos alegados pelo autor, os quais independem de prova; assim, de certa forma, desonerado estaria o autor do ônus da prova quanto àqueles que ainda não estivessem devidamente corroborados.

No entanto, inexistente a revelia, não haveria que se falar em julgamento antecipado da lide (exceto se presente nos autos a hipótese do artigo 330, I, no caso, quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência), como também não ocorre a dispensa da intimação do demandado quanto aos atos processuais, podendo o mesmo exercer plenamente seu ônus de produzir a contra prova (artigo 333, II), notadamente quando se verificar a produção de prova em audiência.

Em síntese, tenho que a REVELIA NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS se dá pela ausência do demandado a qualquer das audiências designadas no curso do feito, ainda que procedida, eventualmente, a entrega da peça de defesa. Via de conseqüência, entendo que a presença da parte demandada na audiência afasta a revelia, ainda que não conteste o feito, por escrito ou oralmente, restando, contudo, incontroversos os fatos alegados. Tal situação não se confunde com os efeitos materiais da revelia, consubstanciados na presunção relativa de veracidade dos fatos alegados, em face da necessária convicção judicial quanto à procedência do pedido.

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Sobre a autora
Ana Raquel Colares dos Santos Linard

juíza titular do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Juazeiro do Norte (CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LINARD, Ana Raquel Colares Santos. A revelia nos juizados especiais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1719, 16 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11050. Acesso em: 29 mar. 2024.

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