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STF e drogas: dissipando a cortina de fumaça

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13/08/2024 às 10:48
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O STF extrapolou suas funções ao julgar transformar a posse de maconha em ilicito administrativo, invadindo competências em nome de uma agenda progressista.

“Aquele que é crédulo demais tem um coração leviano”. Eclesiástico 19, 4

“Nunca interpretes arbitrariamente a lei, como costumam fazer os ignorantes que têm presunção de agudos”. Miguel de Cervantes, Dom Quixote, p. 534 1


1. INTRODUÇÃO

Com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário (RE) 635659, com repercussão geral (Tema 506), restou estabelecido, em apertada síntese, que o ilícito previsto no artigo 28 da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas) não é um crime, mas infração administrativa no que tange especificamente à maconha. Também foi decidido que a quantidade de 40 (quarenta) gramas da droga ou 6 (seis) pés da planta (maconha), a princípio e na dependência de outras circunstâncias legais, caracterizaria o portador como usuário e não traficante. 2

Salta aos olhos o fato de que o Supremo Tribunal Federal extrapolou suas funções e formulou um julgamento que invade atabalhoadamente searas do legislativo (Congresso Nacional) e do executivo (Ministério da Saúde - ANVISA).

Parece que o nosso STF atua como nos versos da Eneida de Virgílio (Livro VII, verso 310): “flectere si nequeo superos, Acheronta movebo” (“se os deuses do alto não me valerem, então moverei todo o Inferno”). Na passagem completa:

“Bem, se meus poderes não forem grandes o bastante, não hesitarei – isso é verdade – em pedir auxílio onde quer que possa ser encontrado. Se os deuses do alto não me valerem, então moverei todo o Inferno”. 3 Vale tudo em nome da ideologia, se o executivo e o legislativo não tocam adiante a agenda progressista, então não há hesitação em buscar meios espúrios para fazê-la andar.

É notável que não caberia ao Supremo Tribunal Federal ultrapassar a análise da constitucionalidade abstrata do dispositivo legal no que se refere a tratar-se ou não de uma criminalização legítima, tendo em vista o conflito entre a autodeterminação individual e o interesse público ou coletivo; autolesão penalmente indiferente ou conduta que contém perigo de lesão ou efetiva lesão a bem jurídico tutelável criminalmente. Estabelecer a legitimidade faria com que nada se alterasse. Apontar a ilegitimidade dessa criminalização significaria tão somente reconhecer que o dispositivo legal em discussão (artigo 28 da Lei de Drogas) seria inconstitucional e que somente haveria ali a descrição de uma proibição administrativa relativa a todas as drogas consideradas ilícitas por norma do Ministério da Saúde. Jamais caberia ao STF imiscuir-se em pequenos detalhes normativos, tais como destacar uma droga em específico para ser tratada de forma diferenciada (maconha), muito menos pretender estabelecer critérios para diferenciação entre traficantes e usuários com indicação de quantidade a partir da qual estaria caracterizado o tráfico (40 gramas).

Com sua conduta o STF não solucionou a questão que lhe foi remetida nos limites de sua atuação constitucional. Sua resposta jurisdicional foi confusa e causou muito mais problemas do que soluções.

O imbróglio criado nos lembra das dificuldades da tecnocracia distópica descrita na ficção de Herberto Sales, com a diferença de que temos no Brasil atual uma juristocracia distópica (não, espere caro leitor, não temos no Brasil uma distopia, daquelas que não existem e são ficcionais, temos uma realidade infeliz ou, se é possível, uma distopia real):

A solução de um problema leva a novos problemas, que levam a novas soluções, soluções que levam a novos problemas, na dinâmica dos problemas solucionais. Em verdade, nenhum problema produz uma solução sem que essa solução produza novos problemas. 4

O Supremo Tribunal Federal atropelou sem peias e de uma só lapada o disposto no artigo 1º., Parágrafo Único da Lei 11.343/06, onde se determina que serão consideradas "drogas” incriminadas aquelas previstas em “lei” ou em “listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”, bem como o artigo 28,§ 2º., do mesmo diploma, que estabelece os critérios para a distinção entre traficantes e usuários. É notório que a legislação atribui essas missões ora assumidas arbitrariamente pelo Judiciário ao Legislativo Federal e ao Executivo Federal. Mas, para quem viola a toda hora a Constituição pela qual deveria zelar, o que é profanar alguns dispositivos legais ordinários?

A atuação da Corte revela nitidamente a prática do que se convencionou chamar de “Constitucionalismo Abusivo”. Na concepção de Oliveira:

“O constitucionalismo não é achado de um grupo de juristas e/ou políticos, senão resultado de muitos séculos de ensaios, erros e acertos, tornando sua análise, por natureza, complexa”. Em geral o constitucionalismo se apresenta garantista, firmador de objetivos políticos, sociais e jurídicos por meio da limitação do poder arbitrário. Tipicamente sua natureza é emancipatória e democrática. Acontece que o constitucionalismo também pode se degenerar. Quando esse ponto de inflexão é alcançado o remédio (constitucionalismo) se transforma em veneno. Surge, então, o constitucionalismo abusivo, que se utiliza de mecanismos aparentemente constitucionais, mas que manobrados por quaisquer dos atores constitucionais relevantes, incluindo a própria Corte Constitucional, “são capazes de tornar um Estado significativamente menos democrático do que antes e gerar o risco de transição a regimes autoritários”. 5

No mesmo diapasão, Molt’alverne, Leitão e Sousa, ao estudarem os desbordamentos do STF:

Embora seja verdade que os estudos sobre constitucionalismo abusivo geralmente se concentram no Poder Executivo, nada impede que ele seja exercido por qualquer um dos poderes, ramos ou órgãos do Estado. 6

O que temos visto é o STF afetar uma inércia judicial para acatar pleitos ideológico – políticos formulados por determinados setores, deturpando os instrumentos constitucionais para satisfazer os anseios desses grupos, ainda que seja por meio da extrapolação de suas funções e de infração à própria Constituição e à lei. Nada mais nada menos do que aquilo que Landau descreve como o “uso de mecanismos de mudança constitucional para fazer o estado significativamente menos democrático do que era anteriormente”. 7

Realmente não se pode ignorar o alerta de Rui Barbosa, segundo o qual “o Judiciário é o pior dos Poderes quando estabelece uma tirania”. 8

E ainda temos que assistir o Ministro Barroso expressando uma espécie de ensinamento de submissão humilde à ordem jurídica, afirmando em entrevista que gostemos ou não da descriminalização da maconha, ela terá de ser cumprida, como ocorre com a lei e qualquer decisão judicial. Afinal, segundo Barroso, "é muito importante na vida a gente não quebrar o espelho por não gostar da imagem" (sic). 9 É de estranhar tanta lição de humildade e submissão ao ordenamento exposta por pessoa que já quebrou tantos espelhos porque não gostava subjetivamente da imagem. Como já vimos o espelho da Constituição tem sido quebrado várias vezes por Barroso e companheiros e agora acabaram de quebrar novamente tanto o espelho da Constituição como o da Lei de Drogas, trocando os espelhos por quadros com seus retratos.

O discurso do Ministro, como tem sido comum nos dias de hoje, consiste em nada mais do que um “detestável” “Grandstanding moral”, enfim, um mero “exibicionismo moral”, uma necessidade incontida de “indicação de virtudes” que geralmente nem sequer são possuídas pelo indicador, utilizando-se “do discurso moral para fins de autopromoção”. 10

Como aduz Zimmer, “o certo é que a Corte demonstra que direciona seus esforços, tantos quantos sejam necessários, para seguir sua linha de decisões de clarividência ideológica e política”. 11

Presenciar esses arroubos nos lembra do que disse George Washington a respeito do Estado e, acrescentamos, aplicável a alguns de seus altos funcionários:

“O Estado é, na melhor das hipóteses, um empregado petulante e, na pior das hipóteses, um senhor tirânico”. 12

Além de nítida invasão de atribuições (legislativo e executivo), o STF pretendeu dar uma solução objetiva e única a questões que são subjetivas e casuísticas. Não há como reduzir a análise da prática de posse para consumo próprio ou posse para tráfico com regras que se pretendam total ou marcadamente objetivas e retilíneas. A Lei de Drogas já estabelece em seu artigo 28, § 2º. os critérios a serem observados pelas autoridades (Delegados de Polícia, Ministério Público e Juízes) para distinguir entre situações de meros usuários e de traficantes. São regras abertas e maleáveis, pois que devem ser casuisticamente aplicadas e decididas nos acontecimentos concretos. Qualquer tentativa de generalizar regras para essa espécie de decisão é um fracasso que deveria ser previsto por Ministros de um tribunal supremo. Não é possível reduzir algo grandemente subjetivo e casuístico a uma objetividade dura. Insistir nisso é contraproducente e pode gerar tanto um laxismo com a questão das drogas como, ao reverso do que se sente pretender o Tribunal Supremo, em uma aplicação mais rigorosa das normas, tendendo a reconhecer como traficantes indivíduos que não o seriam normalmente antes da desastrosa decisão judicial em comento (v.g. presunção de tráfico com 41 g de droga, sem maiores análises do caso concreto).

Como veremos, a partir da decisão do STF surgem diversos questionamentos e problemas que seriam absolutamente desnecessários.

Acaso entendêssemos que essa espécie de atuação do STF fosse de natureza exclusiva ou mesmo predominantemente jurídica, seria assustador constatar a falta de conhecimento dos Ministros acerca dos limites de suas funções constitucionais e até mesmo sua falta de percepção conceitual relativa à capacidade de distinção entre coisas que podem ser tratadas de forma objetiva e linear e outras que não o podem. Seria assustador presenciar o descolamento dos Ministros da realidade.

Contudo, é preciso ter consciência de que todo o agir da maioria dos Ministros do STF não se refere a um entendimento jurídico, mas a um ativismo judicial arraigado em ideologias progressistas que antecedem até mesmo a atuação do Tribunal, vindo de grupos de pressão minoritários que pretendem impor suas vontades, bem como do próprio Legislativo no trato da questão ao longo dos anos. Demonstraremos que o STF nada mais fez do que dar mais um passo progressista que não foi até agora dado pelo Legislativo ou pelo Executivo. Como tem sido uma marca do Supremo, mais uma vez não foi capaz de exercer a chamada “autocontenção” e, não resistindo à inércia dos demais poderes, levou a termo uma agenda ideológica, coisa que não deveria determinar as decisões de um órgão judicial.

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Essa conduta não somente é ilegítima juridicamente, mas prejudica até mesmo a compreensão e produção de conhecimento do Direito Constitucional. É, sem peias, um crime epistemológico. Häberle destaca a função da interpretação constitucional enquanto exercício de um saber científico:

Uma questão especial refere-se à legitimação da Ciência Constitucional. Ela tem uma função catalizadora e, por traduzir - publicamente - a interpretação metodicamente refletida e, simultaneamente, conformar a preparação dos intérpretes oficiais, atua de maneira singular em todos os campos da interpretação. (...). Constituição enquanto objeto é (também) coisa da ciência. (...). Constitui, (...), tarefa da Ciência formular suas contribuições de forma acessível, de modo que ela possa ser apreciada e criticada na esfera pública. 13

Agora, como é possível obter um norte interpretativo metódico e devidamente refletido juridicamente quando a Ciência Constitucional se deixa invadir e sobrepujar pela política e ideologia. Não uma presença impossível de se evitar em qualquer área, mas uma verdadeira colonização que provoca a desfiguração da ciência em questão?

A Juristocracia acaba criando uma “Constituição de solo titulo” (“só de nome”). Afetando uma falsa submissão à autoridade da Constituição, na verdade, impõe uma vontade subjetiva (voluntarismo) que não passa de intolerância à verdadeira autoridade que deveria emanar da Carta Magna. Como nos ensina desde antanho Lassale, com sua visão constitucional sociológica, 14 a Constituição se converte, nessas circunstâncias, em uma simples “folha de papel” que não retrata a realidade politico – social e nem mesmo jurídica de um país. 15 A diferença é que não é a Constituição em si que se encontra em descompasso com a realidade, é a Juristocracia como caixa de ressonância ideológica que, artificiosamente, faz com que a Carta Constitucional pareça apartada do mundo da vida, da realidade político – social e das forças reais que atuam ou deveriam atuar no país. A usurpação do poder legítimo faz com que se desconfigure a realidade.

Não é aceitável fazer uma análise perfunctória dessa questão da descriminalização das drogas, passando ao largo da ideologia que a sustenta e fazendo de conta que tratamos tão somente de questões jurídico – científicas imparciais. Como bem aduz Nina Power, em seu artigo na Revista “Compact”, sob o título traduzido livremente de “Contra a Intolerância Progressista”:

“Opor-se à intolerância progressista requer não apenas defender a verdade, mas superar o medo de ser denunciado por se relacionar com o tipo errado de pessoas (...)” (tradução livre).

É preciso, na realidade, denunciar “a falsa pureza do ‘bom’” (tradução livre), 16 esse “bom” que se autointitula e exclui qualquer discussão, que “quebra espelhos por não gostar da imagem”, mas não quer permitir que ninguém mais o faça.

Para compreender melhor a questão é imprescindível uma descrição histórica da “evolução” (?) do tema.

A primeira “Lei de Entorpecentes” foi a Lei 6.368/76, a qual tratava da posse para consumo próprio em seu artigo 16, prevendo pena de detenção, de 6 meses a 2 anos e multa.

Com o advento dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95) ainda permaneceu possível a Prisão em Flagrante do usuário e seu processo e julgamento perante o juízo comum. Isso porque, na sua versão original, a Lei dos Juizados Especiais Criminais somente considerava como infração de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes para os quais fosse cominada pena máxima até um ano de procedimento comum.

No caso do artigo 16 da antiga “Lei de Entorpecentes” a pena máxima cominada era de dois anos, bem como o ilícito tinha previsão de procedimento especial na lei esparsa. Portanto, não cabia aplicar as benesses da Lei 9.099/95.

No ano de 2001, com o surgimento da Lei dos Juizados Especiais Criminais Federais (Lei 10.259/01), ficou estabelecido que no âmbito federal a definição de infração de menor potencial seria a de crimes com pena máxima até dois anos, independentemente de o seu procedimento ser especial ou comum (artigo 2º., Parágrafo Único da Lei 10.259/01).

Percebe-se que essa novel legislação acabou criando um conflito. Havia uma definição mais restrita de infração de menor potencial no âmbito estadual e uma definição mais alargada no âmbito federal. Não tardou para que a doutrina e a jurisprudência, em aplicação de princípios como os da isonomia, razoabilidade e proporcionalidade, viessem a apontar para a necessidade de unificação da mencionada definição, a fim de que não houvesse critérios distintos em nível federal e estadual.

Observe-se que, por exemplo, com relação ao artigo 16 da então Lei 6.368/76, no âmbito estadual não seria infração de menor potencial, mas o seria na Justiça Federal.

A tese prevalente era a de que a nova definição da Lei dos Juizados Federais deveria ser estendida para os Juizados Estaduais e isso começou a ser colocado em prática por via jurisprudencial.

Não demorou para que o legislativo corrigisse essa anomalia, revogando o Parágrafo Único do artigo 2º., da Lei 10.259/01, dando nova redação ao seu “caput” e também dando nova redação ao artigo 61 da Lei 9.099/95, tudo isso por meio da Lei 11.313/06.

A partir daí passou a vigorar uma definição una de infração de menor potencial ofensivo, abrangendo todas as contravenções penais e os crimes com pena máxima até 2 anos, independentemente do procedimento comum ou especial. Ou seja, a definição que adveio com a Lei dos Juizados Especiais Federais foi generalizada.

Temos aqui, iniciando em 2001 e atingindo seu ápice e solidez em 2006, uma primeira atenuação no trato do porte de drogas para consumo próprio. Note-se que este passou de um crime comum para uma infração de menor potencial ofensivo, sem possibilidade, em regra, de Prisão em Flagrante, com elaboração de Termo Circunstanciado e encaminhamento ao Juizado Especial Criminal, ensejando todas as suas benesses.

No mesmo ano de 2006 vem a lume a nova Lei de Drogas (Lei 11.343/06). Apenas menos de dois meses depois da alteração da definição de infração de menor potencial, que passou a abranger a posse de drogas para consumo próprio, exsurge a nova Lei de Drogas com seu artigo 28 que até hoje regula a matéria. Esse artigo elimina qualquer penalidade de prisão, estabelecendo como penas principais o que seriam anteriormente penas alternativas. A competência prossegue sendo dos Juizados Especiais Criminais e a impossibilidade de Prisão em Flagrante é agora, não a regra sujeita a exceções, mas uma regra absoluta, já que inexiste pena privativa de liberdade prevista. Seria então absurdo haver uma modalidade de prisão cautelar ou pré – cautelar quando não há nem mesmo pena de prisão quando de uma condenação criminal definitiva.

O que é possível vislumbrar dessa “evolução” histórica da matéria relativa à posse de drogas para consumo próprio?

Há um nítido movimento no sentido da despenalização e descarcerização com potencial para a descriminalização e até mesmo, num futuro, a legalização. 17

Também é visível que esse movimento tem origem no Poder Legislativo e uma eventual contribuição da doutrina e da jurisprudência, mas sempre baseadas nas alterações legais que foram sendo operadas ao longo do tempo.

Essa tendência de atenuação com relação à questão do consumo de drogas não retrata o posicionamento predominante da população brasileira, que é frontalmente avessa a qualquer liberalidade nesse campo. 18 A tese de atenuação do tratamento da posse de drogas ilícitas para consumo próprio e até mesmo de sua liberação é muito difundida nos meios acadêmicos insulados, nos movimentos progressistas minoritários e, consequentemente, atinge um bom número de juristas, profissionais do Direito, bem como parte dos componentes de nossos tribunais.

Não é, portanto, sem algum constrangimento e com certa dose de insídia que o movimento em direção à atenuação do trato criminal dos usuários é levado a termo pelo Poder Legislativo, o qual, embora tenha alguma consideração pela vontade popular e a opinião pública, cede às pressões de grupos minoritários e suas ideologias.

Esse constrangimento relativo do Poder Legislativo e até mesmo do Judiciário é o único óbice para que não tenhamos no Brasil já uma liberação total das drogas. Isso porque esses grupos de pressão minoritários, embora diminutos em número e até representatividade política, são extremamente ardilosos e barulhentos em face de uma população que, em sua maioria, está mergulhada em um dia a dia de luta pela sobrevivência e dedicação ao trabalho, permanecendo calada ou tendo seus anseios sufocados.

Como bem demonstra Mendes em obra especializada, o “lobby” da maconha e demais iniciativas laxistas com relação às drogas é extremamente poderoso não somente no nível local, mas global. A maconha é o carro – chefe, com sua apresentação como uma “droga leve” (sic) e de possível aplicação medicinal. 19 Ironicamente a maconha é reconhecida na realidade dos fatos como a droga que é a porta de entrada para outras mais destrutivas; ao mesmo tempo é também a porta – estandarte do movimento de liberação das drogas, apresentando-se como o limiar de uma ladeira escorregadia. A liberação da maconha é o primeiro degrau para a liberação geral das drogas hoje consideradas como ilícitas no Brasil e em nível global. 20

Neste ponto já é possível fazer notar a razão pela qual o processo de atenuação do tratamento dos usuários de drogas ilícitas se dá de forma lenta e paulatina e, especialmente por que o STF, em sua decisão, se aferra à maconha de forma específica e ainda não generaliza sua posição.

Todo o movimento do legislativo e do judiciário no Brasil com relação às drogas é, para quem tenha a capacidade de enxergar minimamente, uma concreção do movimento global do “lobby” das drogas e suas estratégias gradualistas. Sabendo que uma liberação brusca pode ser mal recebida pelas populações, opta-se por uma tática de pequenos passos quase imperceptíveis em um projeto de engenharia social ao fim do qual a liberação definitiva de quaisquer drogas será acatada bovinamente por todos sem a percepção de que foram objetos de manipulação. E para aqueles que têm na manipulação das pessoas uma de suas principais armas, como não será cômoda e agradável uma população em grande parte inebriada pelo consumo massivo de drogas, não é mesmo? Outras manipulações serão muito mais fáceis e rápidas de serem implementadas diante de indivíduos embotados.

Essa atuação gradual que se inicia no legislativo brasileiro e vai se desenvolvendo no judiciário é claramente a aplicação prática daquilo que Bernardin, apresentando o escólio de Freedman e Fraser, 21 expõe como o fenômeno do “pé na porta”. Seu princípio reitor é o seguinte:

começa-se por pedir ao sujeito que faça algo mínimo (ato aliciador), mas que esteja relacionado ao objetivo real da manipulação, que se trata de algo bem mais importante (ato custoso). Assim, o sujeito sente-se engajado, ou seja, psicologicamente preso por seu ato mínimo, anterior ao ato custoso. 22

A própria argumentação apaziguadora de Ministros como Luís Roberto Barroso em suas manifestações no plenário é sintomática do emprego dessa técnica insidiosa e manipuladora. 23

Mencionamos anteriormente a questão da despenalização, descarcerização, descriminalização e legalização. São realmente conceitos diversos. Na despenalização e descarcerização uma conduta que era crime e para a qual era prevista uma pena, continua sendo crime, mas a pena é afastada por diversos meios, tais como institutos despenalizadores (v.g. transação penal, suspensão condicional do processo, acordo de não persecução penal etc.). Também pode ocorrer que o preceito secundário da norma que antes previa uma pena privativa de liberdade passe a estabelecer penalidades que seriam alternativas ou substitutivas de forma direta (descarcerização). Foi exatamente o que aconteceu com o porte de drogas para consumo próprio num primeiro momento histórico. A ‘evolução” da pena privativa de liberdade, passando por institutos despenalizadores e descarcerizadores até chegar à previsão de sanções não privativas de liberdade, descarcerizadoras ou desprisionalizadoras (1976, 2001, 2006). Já na descriminalização não somente se elide a aplicação de pena para determinada conduta incriminada. Tal conduta passa a ser considerada como não criminosa. Ela pode ser totalmente descriminalizada, tornando-se lícita ou descriminalizada apenas parcialmente no âmbito penal, permanecendo, porém, como ato ilícito civil e/ou administrativo. Esse foi o segundo passo histórico dado pelo STF diante da inércia do Congresso Nacional que não foi capaz de prosseguir no projeto ideológico programado, empacando na fase da despenalização e descarcerização. Finalmente, a legalização significa a liberação total da prática de uma conduta que era considerada crime. Opera-se a “abolitio criminis”, mas não só isso. Também se torna a conduta aceitável socialmente sem qualquer elemento de inibição normativa. O que era ilícito, inclusive no âmbito criminal, se torna lícito em todas as searas, civil e administrativa também. Pode até tornar-se mais que lícita uma conduta, mas convertê-la no exercício de um “direito individual”. Por exemplo, liberar as drogas e estabelecer um dever do Estado de fornecê-las gratuitamente a usuários e dependentes. Legalizar o aborto e transformá-lo em um “direito fundamental da mulher” como ocorreu na França recentemente. 24

Ora, argumentações como a de Barroso, 25 que ocultam o gradativo andamento de uma agenda ideológica que se iniciou por uma despenalização e descarcerização que não se menciona, demonstram claramente um procedimento astucioso. Ocultando a fase inicial de despenalização e descarcerização segue-se para um alegado esclarecimento quanto à distinção entre descriminalização e legalização, apontando para o fato de que não se está promovendo (ao menos agora) a segunda e sim a primeira. Tudo isso é procedimento típico da estratégia do “pé na porta” tão bem descrita por Bernardin, Freedman e Fraser. É como se fosse dito: “Fiquem tranquilos. Não estamos legalizando as drogas e nem dizendo que são aceitáveis, apenas estamos deixando de considerar a sua posse para consumo como um crime. Continuará sendo uma conduta reprovável juridicamente, mas na seara administrativa”. O que não é revelado é o processo em que essa descriminalização está inserida, vindo da inicial despenalização e descarcerização, passando pela dita descriminalização e não terminando obviamente aí. Seu rumo é o da legalização e liberação das drogas em geral numa evidente ladeira escorregadia que se torna muito visível se as coisas são expostas no devido contexto histórico – ideológico e não fingindo tratar-se de uma questão exclusiva ou mesmo preponderantemente técnico – jurídica e científica. Aliás, é desesperador presenciar profissionais do Direito, estudiosos, juristas, professores, discutindo essa decisão do STF tão somente em termos científicos e jurídicos numa tenebrosa alienação político – ideológica, de modo a ensejar exatamente o que se deseja, ou seja, o ocultamento da verdadeira matéria em questão. Ninguém praticamente se dispõe a dissipar a cortina de fumaça criada em torno da questão do tratamento legal do porte de drogas para consumo próprio. A grande maioria do que seriam as chamadas “cabeças pensantes” encontra-se como que inebriada por uma fumaça entorpecente. Isso facilita em muito a vida daqueles que usam de manipulação. E aqueles que deveriam estar preocupados com questões de fundo e não submetidos a uma distração artificiosa somente nos fazem compreender e lamentar que sua tranquilidade leviana torne cada vez mais verdadeiro o dito popularesco de que “a ignorância é uma benção”. Afinal, nada percebendo, se envolvem em discussões alienadas e pensam que exercem a função de intelectuais no mundo jurídico. São como tolos satisfeitos em comparação com um Sócrates inquieto.

No entanto, ficamos com Mill:

É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo ou o porco têm uma opinião diferente é porque só conhecem o seu próprio lado da questão. A outra parte da comparação conhece ambos os lados. 26

Não é possível discutir essa decisão e todo o processo de “evolução” do tratamento do tema do porte de drogas para consumo próprio sem uma visão mais ampla que supere a ilusão de que estamos em um diálogo honesto em bases científicas e jurídicas. Não podemos nos contentar em ver claramente que o rei está nu e continuar dizendo que sua roupa é belíssima!

Os agentes envolvidos estão influenciados pela necessidade de sinalizar virtude para uma “bolha de pertencimento”, 27 absorvidos por aquilo que Tosi e Warmke chamam de “virtuosismo moral”. Tornam-se assim “exibicionistas morais” com o desejo incontido de que “os outros pensem que eles são moralmente especiais”, espécies de “santos ou heróis da moralidade” ou, pelo menos, “pessoas moralmente decentes”. Querem garantir uma posição de superioridade moral em relação aos não iluminados. 28

Além da gradual abordagem do tema que “evolui” da despenalização e descarcerização para a descriminalização e tende à legalização, é preciso atentar para a manobra apaziguadora de membros do STF em focar tão somente na maconha. É evidente que se trata também de uma técnica de “pé na porta”. Ora a descriminalização de todas as drogas de uma só vez poderia gerar alguma reação social indesejada. Então é muito mais fácil, tendo em vista também o teatro já erigido mundialmente ao redor dessa droga, 29 colocá-la em destaque, como se fosse algo quase inócuo. “Afinal, é só da maconha que estamos tratando no momento, nada que cause maiores preocupações”.

Atuam tendo em mira não desbordar o contorno da chamada “Janela de Overton”, ou seja, um espaço de ideias e/ou políticas que podem ser socialmente toleráveis ou factíveis em dado período em uma sociedade. O termo foi criado em homenagem ao analista político, Joseph P. Overton, representando uma gama de ideias que variam entre as mais acatadas até as mais reprovadas ou impopulares. Movendo-se no intervalo entre o aceitável e o repugnante, o agente político pode caminhar aos poucos com ideias intermediárias, manipulando a opinião pública e chegando, paciente e lentamente, a seus objetivos mais ousados.

Conforme se encontra no site do “Mackinac Center For Public Policy”:

A Janela Overton é um modelo para compreender como as ideias na sociedade mudam ao longo do tempo e influenciam a política. O conceito central é que os políticos estão limitados nas ideias políticas que podem apoiar – geralmente apenas prosseguem políticas que são amplamente aceites em toda a sociedade como opções políticas legítimas. Estas políticas estão dentro da Janela Overton. Existem outras ideias políticas, mas os políticos correm o risco de perder o apoio popular se defenderem essas ideias. Estas políticas estão fora da Janela Overton.

Mas a Janela Overton pode mudar e expandir-se, aumentando ou diminuindo o número de ideias que os políticos podem apoiar sem arriscar indevidamente o seu apoio eleitoral. Às vezes, os próprios políticos podem mover a Janela de Overton, endossando corajosamente uma política que está fora da janela, mas isso é raro. Mais frequentemente, a janela move-se com base num fenómeno muito mais complexo e dinâmico, que não é facilmente controlado de cima: a lenta evolução dos valores e normas sociais. 30

Causa espécie constatar que agentes públicos do judiciário sejam claramente movidos muito mais por estratégias político - ideológicas do que por qualquer orientação científico – jurídica, mas é preciso perceber isso para compreender correta e completamente suas atitudes. Mesmo porque podemos constatar com Borges e Silva o seguinte:

“A corrupção da ciência nunca esteve tão visível. O campo científico é marcadamente um campo político, muito distante dessa noção de neutralidade que mora no imaginário de algumas pessoas”. 31

Certamente não desconhecem os Ministros o fato de que mesmo sua decisão específica sobre a maconha tende a criar, devido a princípios gerais do Direito e especiais do Direito Penal, um entendimento de que o “decisum” não pode ficar restrito à maconha, mas desde logo deve abranger todas as demais drogas (isonomia, proporcionalidade, razoabilidade, analogia “in bonam partem” etc.). Sabem ou deveriam saber os Ministros que sua decisão no sentido de que o artigo 28 é uma norma administrativa e não penal não pode ficar restrita a uma espécie de droga apenas. É a norma que foi julgada, não a droga “X” ou “Y”. Havendo descriminalização esta não se limita ou não é limitável a uma ou outra espécie de droga ilícita. Pouco importa que os Ministros façam uma confusão entre o abstrato e o concreto em toda a sua decisão. Também não cabe nessa situação alegar que houve uma espécie anômala de “modulação de efeitos”, porque tal modulação afrontaria os já mencionados princípios gerais do Direito e especiais do Direito Penal, tornando-a ilegítima e ineficaz. Mas, nada disso é publicizado claramente, permanecendo por trás de uma cortina de fumaça proposital. E se não for proposital, então é ainda mais assustador, porque significaria uma inépcia inadmissível de profissionais do Direito que ocupam as cadeiras do mais alto Tribunal do país.

Acontece que a verdade sempre se impõe, porque ela não somente “existe”, mas “insiste” e “resiste”. 32 Tanto é fato que o Defensor Público paulista, Rafael Muneratti que atuou no caso ora em discussão perante o STF, já deixou clara sua satisfação com a decisão do Tribunal e que “o próximo passo é descriminalizar outras drogas”. 33

Após essa introdução necessária, contextualizando e dimensionando a decisão do STF a respeito do artigo 28 da Lei de Drogas, poderemos estudar vários aspectos e problemas dessa questão, sem perder de vista sua real amplitude e o que se encontra oculto.

Iniciaremos por uma abordagem da sempre polêmica discussão acerca da liberação das drogas com análise de argumentos pró e contra, bem como de experiências internacionais já levadas a efeito.

No seguimento apresentaremos o desenvolvimento doutrinário – jurisprudencial acerca da natureza jurídica do artigo 28 da Lei de Drogas, a qual vem sendo debatida desde a promulgação do diploma legal respectivo em 2006, passando, inclusive, por decisão pretérita do próprio STF que atribuiu, inicialmente, a natureza de crime ao dispositivo em destaque. Esse estudo é importante para situar o leitor quanto à hesitação sobre o tema em termos doutrinários e jurisprudenciais. Mais uma vez é importante retomar esta introdução e perceber nessas questões que a própria hesitação acaba sendo um efeito de um processo em direção a uma postura ideológica. Efeito este que certamente não é involuntário.

Finalmente, abordaremos de forma pontual os vários questionamentos jurídicos que surgiram após a malfadada decisão do STF a respeito da descriminalização da maconha. Há questões de toda espécie, envolvendo direito material, processo e procedimento.

Depois de toda essa exposição, proceder-se-á a um encerramento conclusivo, retomando os principais temas desenvolvidos.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. STF e drogas: dissipando a cortina de fumaça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7713, 13 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110537. Acesso em: 17 set. 2024.

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