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STF e drogas: dissipando a cortina de fumaça

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13/08/2024 às 10:48
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2. A VELHA POLÊMICA SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS 34

Muito se tem discutido acerca da "irracionalidade da criminalização do uso e comércio de drogas", sendo destacável o trabalho da lavra de Maria Lucia Karam 35 que apresenta um parecer acerca do tema.

Inicialmente, toma-se a liberdade de elencar os principais fatores abordados pela autora na pretensa demonstração da veracidade de sua assertiva, os quais certamente apresentam extrema coerência e não são de difícil recepção por qualquer interessado numa análise racional deste intrincado e polêmico tema, deixando claro desde logo que a pretensão deste ponto não é ser infenso às ideias em destaque, mas, ao contrário, reafirmá-las e, principalmente, a exemplo do título, constituir-se numa questão, numa problematização, trazendo à baila aspectos não abordados e de suma importância na ponderação das consequências de uma descriminalização no campo das drogas.

Sucintamente pode-se dizer que a autora expõe oito fatores elucidativos:

  1. É irracional e mesmo contrária ao Estado Democrático de Direito a criminalização do porte para uso pessoal, pois viola a intimidade do indivíduo em conduta que não diz respeito à coletividade.

  2. A proibição é contraditória com o próprio objeto jurídico (Saúde Pública), uma vez que “cria maiores riscos à integridade física e mental dos consumidores” pela ausência de controles fiscais quanto à qualidade, higiene etc.

  3. A clandestinidade gera ansiedades no indivíduo que realimentam sua fragilidade, acoroçoando sua tendência à dependência e, dificultando ainda a busca de tratamento.

  4. O pretenso controle repressivo do tráfico é reconhecidamente ineficiente e sua relação custo/ benefício é deficitária.

  5. O mercado informal das drogas cria oportunidades de “acumulação de capital e geração de empregos”, sendo lógico que a repressão não é capaz de impedir a contínua reposição dos interessados nos seus ganhos e oportunidades, a despeito dos riscos a serem assumidos.

  6. Os consumidores sofrem “superexploração decorrente dos preços artificialmente elevados”, por obra inerente à clandestinidade que torna o produto de difícil acesso e submetido a riscos relevantes. Isto, por seu turno, atua como fator criminógeno porque os usuários frequentemente praticam outros crimes, mormente contra o patrimônio, para possibilitar-lhes poder aquisitivo para obtenção de entorpecentes.

  7. A criminalização cria um mercado artificial altamente lucrativo que, ao contrário de evitar, incentiva o interesse no ingresso em sua dinâmica, gerando ainda o grave problema da corrupção de órgãos Estatais.

  8. O Sistema Penal sob o pretexto de fornecer “proteção, tranquilidade e segurança”, finda por estimular situações delitivas e criar maiores e mais graves conflitos. Ou seja, pela criminalização das drogas o Estado produz marginalidade e consequentemente mais “criminalidade e violência”.

Face ao exposto e ao conteúdo do tema em estudo, há que se considerar que toda a discussão se direciona teleologicamente à finalidade da redução da violência e criminalidade claramente presentes no bojo do problema das drogas e ainda a uma abordagem mais humana quanto ao usuário ou dependente, ampliando o campo de assistência, recuperação e preservação de sua saúde física e mental.

Observe-se que Karam, assim como todos os defensores da legalização das drogas, apresenta um quadro de soma – zero. Como se a repressão ao tráfico e porte fosse excludente absoluta dos cuidados para a prevenção e recuperação dos dependentes e usuários. É bom destacar que isso não corresponde à realidade. Não há relação de exclusão entre o combate ao tráfico e ao uso e os cuidados profiláticos e de tratamento dos usuários e dependentes. Se isso fosse verdadeiro, a própria legalização não seria também solução, pois é óbvio que a mercancia clandestina continuaria a existir e teria de ser criminalmente combatida, ainda que por meio de outro tipo penal contra a Saúde Pública, como acontece com a comercialização ilícita ou clandestina de medicamentos e drogas lícitas.

É no primeiro aspecto acima destacado que se faz presente uma indagação quanto à eficiência da descriminalização enquanto fator redutor da violência. Sabe-se que boa parcela dos homicídios registrados diariamente nas grandes cidades está frequentemente relacionada com o submundo do tráfico. Logicamente, num raciocínio simplista, poder-se-ia afirmar que com a eliminação do caráter criminoso das drogas, essa atividade marginal se tornaria lícita e, portanto, não mais geradora de violência, operando-se, consequentemente, decréscimo nos decantados índices estatísticos.

Entretanto, se num primeiro momento é inegável que a violência afeta ao tráfico iria se extinguir juntamente com este, faz-se necessária uma detida reflexão sobre que tipo de legado seria deixado à sociedade pelo “finado tráfico de entorpecentes”. Isso sem considerar o fato de que a experiência demonstra que a mercancia clandestina de drogas continua como mercado paralelo e os mesmos problemas que antes existiam.

Aparentemente, na realidade nacional, a criminalização dos entorpecentes pode ser metaforicamente comparada à criação de um “monstro” cuja destruição apenas o faria reaparecer adotando novas formas.

Senão vejamos, nos itens 5 a 7 verifica-se que a atividade do comércio de drogas, enquanto marginal ou clandestina, propicia condições artificiais que tornam possível o acesso de indivíduos normalmente excluídos pelo sistema capitalista à acumulação de riquezas ou ao menos ao exercício de uma atividade “laborativa” financeiramente gratificante.

Estes indivíduos somente são aptos ao domínio desse mercado artificial, pois que naturalmente excluídos, marginalizados e levados pela própria perversão do sistema social capitalista a ocupar esse espaço informal, proscrito da economia.

A realidade é que a sociedade e o próprio Sistema Penal já pré-determinam a posição marginal dessa parcela significativa da população. ZAFFARONI36 retrata com nitidez este fato:

O sistema penal atua sempre seletivamente e seleciona de acordo com estereótipos fabricados pelos meios de comunicação de massa. Estes estereótipos permitem a catalogação dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição fabricada, deixando de fora outros tipos de delinquentes (delinquência de colarinho branco, dourado, de trânsito etc.).

Nas prisões encontramos os estereotipados. Na prática, é pela observação das características comuns à população prisional que descrevemos os estereótipos a serem selecionados pelo sistema penal, que sai então a procurá-los. E, como a cada estereótipo deve corresponder um papel, as pessoas assim selecionadas terminam correspondendo e assumindo os papéis que lhes são propostos (...)

Na América Latina, o estereótipo sempre se alimenta das características de homens jovens das classes mais carentes, (...) (grifo nosso).

Assim sendo, de acordo com nossa realidade, suprimidas as condições específicas marginais do comércio de entorpecentes, não é crível que os indivíduos desse submundo se transmudem do dia para a noite em prósperos comerciantes, industriais, comerciários, industriários ou agricultores. A tendência é que esse novo mercado seja recebido pelo sistema formal e dominado pelos mesmos detentores “legais” das riquezas acumuladas.

Os “selecionados” ou “estereotipados”, conforme acima exposto, certamente continuarão cumprindo os papéis que lhes foram verticalmente impingidos pela sociedade que os marginaliza.

Portanto, a esses sujeitos somente restará a vereda da procura de uma nova atividade clandestina ou marginal, de modo que se verifica uma forte indicação no sentido do aumento da violência no que se refere a outras modalidades delitivas, inclusive devido ao poder bélico adquirido para a operacionalização da violência inerente ao tráfico de drogas. E ainda restando a continuidade do comércio clandestino dessas substâncias que seguirá sendo um fator criminógeno.

A primeira questão refere-se então à indagação quanto à eficácia da descriminalização para uma redução efetiva da violência, o que, aparentemente, não se operaria em nossa realidade, rumando sim para um aumento de crimes como roubos a banco, extorsão mediante sequestro e outros, os quais também teriam o condão de tornarem-se altamente lucrativos e corruptores. Sempre lembrando que a experiência internacional ainda demonstra que o próprio comércio clandestino não acaba com a legalização.

Anote-se, ainda, que a liberação das drogas não acabaria jamais com a chamada “Guerra às drogas” (“War on drugs” ). Acaso o Estado pretenda controlar toda a linha de produção e distribuição legais, haverá ainda o mercado negro, que deverá ser reprimido e, portanto, “guerra às drogas”. Não haverá pacificação. Doutra banda, se a questão da produção e distribuição for deixada à iniciativa privada, também haverá o problema do mercado negro e novamente a continuidade da “guerra às drogas”. Um exemplo típico e próximo é o caso do Uruguai, que liberou a “maconha” há alguns anos e até agora somente 40% da produção é legal. Ou seja, 60% da “maconha” é produzida no mercado negro ou clandestino.37 E mais:

O Diretor Nacional de Polícia do Uruguai, Mario Layera, disse nesta terça-feira que a legalização da maconha, aprovada em 2013, não implicou diretamente na queda do tráfico desta droga e que o narcotráfico aumentou o número de assassinatos.

“No ano passado tivemos os níveis históricos mais altos de confisco no país proveniente de outra região. Por isso, entendemos que o tráfico para o Uruguai não se ressentiu de maneira notável”, comentou Layera em entrevista à rádio El Espectador, sobre a vigência da lei.

Em dezembro, a Brigada de Narcóticos indicou que a droga mais confiscada em 2016 foi a maconha, chegando a 4,305 toneladas até 18 de dezembro, sendo que em 2015 havia sido de 2,52 toneladas.

Layera também sustentou que pelo tráfico de drogas constatado nos últimos tempos, houve um aumento “dos níveis de crimes e homicídios”.

“O aumento da taxa criminal, que medimos de 2005 em diante, foi crescendo com base nos fenômenos de oferta e consumo de drogas”, indicou.

Nos últimos anos a polícia verificou o aumento de assassinatos, principalmente de homens jovens, que em muitos casos se tratavam de ajustes de contas entre pessoas ligadas ao tráfico.

Layera também falou que há autoridades ameaçadas por conta das novas estratégias e medidas aplicadas para combater o crime organizado.

“Várias autoridades do Ministério do Interior foram ameaçadas além de juízes, procuradores e algumas personalidades dos Direitos Humanos”.38

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Mesmo autores como Thornton que, em uma análise econômica da questão, pugnam por um caminho de liberação, apontam para essa situação paradoxal da descriminalização da posse para uso e incriminação da produção e comércio. Vejamos:

A única solução de longo prazo para os problemas produzidos pela “utilização equivocada” de um produto, sustento, é a legalização desse produto. Com a legalização, em oposição à descriminalização e outras formas de intervencionismo governamental, o governo trata o produto ou serviço que é mal utilizado tal como se fosse soja, chips de computador, ou lápis. O mercado é controlado pelo autointeresse e por restrições legais normais, tais como a lei de responsabilidade pelos produtos.

Este livro pode ser considerado como um desafio para os defensores das proibições, para que apresentem uma teoria que descreva os benefícios da proibição. Também pode ser visto como um desafio para aqueles que recomendam que a proibição seja substituída por alguma forma de descriminalização. Embora possa ser uma boa política de transição, a descriminalização (farmácias do governo, alta tributação, multas pesadas etc.) manteria um mercado negro, é uma política instável e não cria pré – condições necessárias para reverter ou limitar o abuso de drogas. 39

E mais à frente apresenta um diagnóstico que indica para a grande dificuldade em lidar com essas políticas:

“Mudanças substantivas na política são no mínimo difíceis, e quando acontecem são quase sempre uma substituição de uma forma de intervenção governamental por outra”. 40

Vale destacar a pertinente indagação e o alerta de Silva:

E quem irá fornecer a droga para os usuários hipossuficientes? O Estado? Certamente que não! O usuário continuará a comprar a droga dos traficantes. Mesmo que o Estado passe a fornecer a droga de forma controlada, nem assim o tráfico irá acabar. A procura será muito maior do que a oferta. E o Estado não terá condições de fornecer todos os tipos de drogas, o que o traficante saberá explorar. Além do que, mesmo que fornecida por particular autorizado pelo Estado, o preço praticado pelo traficante, livre de impostos e taxas, será bem mais vantajoso para o usuário. 41

E em arguta manifestação, desta feita em videoaula, o mesmo autor deixa claro que a descriminalização da maconha somente favorecerá aos traficantes com o aumento de seu uso, rumando nosso país para tornar-se um “narcoestado”. Além disso, destaca que pelo mundo afora as experiências de descriminalização ou liberação, inclusive somente da maconha, têm sido grandes fracassos criadores de caos social. Apresenta os exemplos de São Francisco, Los Angeles, Califórnia, Colorado, nos Estados Unidos e também a experiência do Canadá. Em todos os casos há hoje um intento de revisão dessa medida porque suas consequências foram invariavelmente funestas. 42

Outro aspecto que merece comentário se refere às consequências da liberação das drogas quanto à disseminação de seu uso e até que ponto este seria deletério à sociedade. Neste diapasão vale ainda destacar a ideia da ampliação da assistência, proteção e recuperação do dependente dentro da conjuntura brasileira.

Argumenta-se em ambos os sentidos: os defensores da liberação acenando com a vulgarização que produziria uma diminuição no interesse pelas drogas, e os conservadores alegando que a liberação produziria um aumento considerável no consumo pela facilidade criada, gerando nefastas consequências, especialmente junto à população jovem.

A resposta a esta polêmica parece-me que somente se poderia verificar na prática. Neste ponto há que se questionar se vale a pena a experimentação, se podemos assumir os riscos de um eventual resultado negativo, cujas sequelas poderiam ser incorrigíveis. Churchill já nos alertava que “o futuro está diante de nós para criar ou estragar”. 43

A experiência internacional desastrosa da Holanda deveria ser um norte. Constata-se que aquele país, após liberar a maconha não experimentou a extinção do tráfico nem uma considerável diminuição do uso de drogas, mas uma degradação social e a atração de um “turismo de drogas”. 44

E mais, sabe-se que o consumo das chamadas “drogas permitidas” (álcool, tabaco etc.) é generalizado no convívio social, não havendo, portanto, garantia na redução do consumo de entorpecentes devido à liberação. Então é desejável que a discussão em torno do tema também caminhe para uma pesquisa demonstrativa da capacidade de causar dependência dos entorpecentes, cujo uso se pretenda liberar. Seria possível que uma pessoa consumisse “maconha” ou “cocaína” socialmente, sem tornar-se dependente? Certamente é uma questão a ser discutida, especialmente quanto ao perigo da colocação de substâncias de alto poder dependenciante 45 ao alcance da exploração econômica, cuja inescrupulosa atuação “legal” muitas vezes é mais prejudicial que a maioria das condutas típicas.

Vale transcrever o entendimento de Silva:

Aquele velho argumento de que o álcool também é droga, sinceramente não convence. Não é porque a situação está ruim que nós vamos piorá-la. O número de pessoas alcoolistas é enorme, e não é por isso que vamos aumentar a quantidade de viciados em drogas.

Um dos motivos que inibe o uso da droga é o fato dela ser proibida. Liberando o seu uso, que é o que a descriminalização irá fazer, certamente vai incentivar a dela se valerem aqueles que têm medo das consequências, seja na área penal ou na social. Se, é permitido, porque não posso fazer uso social da maconha, da cocaína, do crack e de outras drogas? Essa indagação passará pela cabeça de inúmeras pessoas, mormente das mais jovens. 46

E mais adiante, conclui o mesmo autor:

A descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal não é o caminho. Ela somente irá aumentar o número de usuários e de viciados, além de fomentar o tráfico e colaborar para o aumento dos crimes violentos. Glamourizar o uso de drogas, enaltecer ou mesmo justificar a conduta daquele que as vende, dentre outros motivos, para saciar seu vício, é atitude impensada, irresponsável e que prejudicará ainda mais o combate ao comércio maldito. 47

Também relevante é a observação de que na área da saúde pública, sob o ângulo da proteção à integridade do usuário de drogas, ante a falta de recursos, pouco mudaria. Ora, o Estado não atende com dignidade sequer os doentes que abarrotam os corredores dos hospitais, não fiscaliza adequadamente produtos de primeira necessidade (carne, leite etc.) que são produzidos e consumidos inadequadamente e com higiene precária. A descriminalização teria a capacidade de mudar este estado de coisas e possibilitar repentinamente melhores condições de consumo e tratamento aos dependentes e usuários?

Consigne-se, por oportuno, o parecer de Silva:

Que me desculpem os defensores da legalização das drogas, mesmo que somente a maconha, mas os argumentos empregados não se sustentam, não sendo razoável trazer para o debate o “sucesso” em alguns países de primeiro mundo, que estão a anos luz de desenvolvimento humano, material e social do Brasil.

E mesmo esse “sucesso” é discutível, vez que há países, como o Uruguai, com desenvolvimento social semelhante ao nosso, que a situação só piorou, havendo aumento da traficância e dos crimes a ela relacionados. 48

Conforme exposto, eis as questões que se afiguram como cruciais na discussão do assunto em tela, entre outras que certamente deverão merecer um amplo debate na sociedade para que qualquer decisão seja tomada madura e conscientemente.

Finalmente, deve-se salientar novamente o reconhecimento da coerência e justiça das ideias relacionadas pela autora em destaque no texto, colocando-o como um questionamento salutar. No entanto, não se pode deixar de notar que a solução da criminalidade não está no Direito Penal, seja exacerbando seu conteúdo repressivo-punitivo, seja procurando minimizar sua incidência. O problema é interdisciplinar e passa fundamentalmente por mudanças estruturais da sociedade.

Possivelmente numa ordem social justa com divisão equitativa de riquezas ou ao menos não tão injusta e heterogênea, a descriminalização das drogas fosse indiscutivelmente um fator redutor da violência. O mesmo se pode dizer quanto à questão dos usuários, acaso fosse viável uma efetiva prestação de serviços no sentido de melhorar a garantia de suas integridades física e mental. A pedra de toque está em alterar a visão pontual das reformas sociais, escapando à ilusão de que com alterações em um único ou poucos campos se poderão obter transformações de relevo, especialmente quanto à questão da violência.

Fato é que países mais desenvolvidos e com melhor distribuição de renda do que o Brasil fracassaram com a liberação de drogas. Não há motivos para considerar que em nossa realidade precária insistir numa mesma solução infrutífera e até contraproducente em ambientes mais propícios, milagrosamente, produziria efeitos diversos e positivos. 49 Isso nada mais é do que insistir em fazer as mesmas coisas, esperando resultados diversos.

Mais uma vez percebe-se que há uma agenda progressista descolada da realidade e do senso comum da população, encastelada na academia nefelibata e nos meios jurídicos por ela influenciados. Trata-se, na verdade, da imposição vertical da convicção de uma espécie de “casta” que parece considerar que se a realidade não se adequa à suas ideias, pior para a realidade.

Karam, como muitos outros autores, consciente ou inconscientemente, cai num argumento circular quanto à deslegitimação do Direito Penal e a tendência ao chamado “Abolicionismo”. Apresentam-se funções impossíveis de ser concretizadas pelo Direito Penal e se lhe atribui a obrigação de satisfazê-las. Neste caso específico, o tratamento profilático e terapêutico do uso e abuso de drogas. Isso não é missão do Direito Penal, tal como não lhe pode ser imposta a finalidade de recuperação dos criminosos. Atribuir ao Direito Penal essas funções impossíveis a ele é deslegitimá-lo de pronto e cair no abolicionismo sem maiores cautelas. Bem explica essa viciosa propensão Canto Júnior:

E por que impõem que a função da pena é, também, ressocializadora? Simples: quando você impõe um dever impossível a algo, ou a alguém, esse algo ou alguém perde totalmente a legitimidade. Com o Direito Penal não conseguindo fazer o impossível, o caminho para dizer o quanto ele seria inútil já está pavimentado. Mais meia- dúzia de argumentos e, quem acreditou na função ressocializadora da pena, acreditará no abolicionismo penal (na extinção de qualquer pena, afinal, ela “não funciona”). 50

Ao final e ao cabo, o que resta em meio a todo esse imbróglio é mesmo aquilo que já denunciamos desde o início. A questão não é jurídica, não é de Direito. Trata-se de técnica de engenharia social em prol de uma determinada orientação ideológica e política. Voltando a Canto Júnior, é de concordar com sua afirmação:

“A engenharia social é melíflua: seduz o homem a acreditar que está raciocinando criticamente quando, na verdade, está sendo feito, sem meias palavras, de otário”. 51

Pode o leitor se preocupar com sua imagem em meio a toda essa discussão, temendo receber a pecha de “punitivista” por parte de alguns setores, ao questionar o mantra da legalização ou da descriminalização como solução. Sobre isso, somente podemos dizer que a atribuição de um epíteto como “punitivista” não é argumento respeitável numa discussão de um problema jurídico e social. Não passa de uma expressão sentimentalista injuriosa. Deixamos, em encerramento, o caro leitor com a orientação de Bonfim a respeito dessa questão:

Punitivista é expressão vazia que alguns repetem sem pensar. Ontologicamente todos são “punitivistas” (não trato aqui dos santos) ou não se busca “punir” de alguma forma, em qualquer perspectiva que seja, alguém que infrinja alguma regra ou mesmo um conceito particular? A rigor, nem vejo ofensa nisso, mas, quem assim chama a outrem, intenta “puni-lo” com o que acredita ser uma ofensa, apenas por pensar diversamente. É, pois, um “ataque” para o espelho. Mas, “o que responder se alguém assim me chamar, professor?”. Nada. É hora de silêncio, paciência e comiseração. A ignorância é cruz cruel que se arrasta sobre a terra. 52

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. STF e drogas: dissipando a cortina de fumaça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7713, 13 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110537. Acesso em: 11 set. 2024.

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