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STF e drogas: dissipando a cortina de fumaça

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13/08/2024 às 10:48
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3. DA NATUREZA JURÍDICA DO ARTIGO 28 DA LEI DE DROGAS

A polêmica instalou-se na interpretação doutrinária acerca da natureza jurídica do artigo 28 da Lei de Drogas, tendo em vista a previsão de penas inusitadas pelo legislador a ensejarem verdadeira perplexidade ante a premência da resposta quanto a tratar-se o ilícito ali previsto de um crime, de uma contravenção penal ou de mero ilícito administrativo.

Um dos primeiros autores a manifestar-se corajosamente nesse terreno irregular e minado foi Luiz Flávio Gomes, defendendo a tese de que a Lei 11.343/06 teria promovido verdadeira “Abolitio Criminis”, descriminalizando a posse de drogas para consumo próprio. Em seu entender, o que justificaria tal conclusão seria o fato de que, de acordo com a Lei de Introdução ao Código Penal (artigo 1º.), não se poderia classificar o dispositivo nem como crime, pois não prevê pena de reclusão ou detenção, nem como contravenção, já que também não prevê multa isolada ou prisão simples. Portanto, o artigo 28 do diploma comentado não mais trataria de uma “infração penal”, embora mantendo a ilicitude da conduta. 53

Gomes lembra sobre a divisão da descriminalização em duas espécies 54:

  • a) “Descriminalização Penal”, que “retira o caráter de ilícito penal da conduta, mas não a legaliza”.

  • b) “Descriminalização Plena ou Total”, a qual “afasta o caráter criminoso do fato e lhe legaliza totalmente”.

Como é nítido, para o autor o caso enfocado caracterizaria uma “descriminalização penal”, de forma que a posse de drogas para consumo próprio não seria mais uma “infração penal” (crime ou contravenção), mas continuaria sendo proibida, de maneira a conformar uma “infração ‘sui generis’” 55 ou ainda uma “infração para – penal”. 56

Descarta inclusive o autor a possibilidade de que se pudesse considerar o artigo 28 da Lei de Drogas como um “ilícito administrativo”, vez que “as sanções cominadas devem ser aplicadas não por uma autoridade administrativa e sim por um juiz (juiz dos Juizados Criminais)”. Enfim, tratar-se-ia de um “ilícito ‘sui generis’”, nem penal, nem administrativo. 57

Seguindo linha de raciocínio semelhante, João José Leal chega, porém, à conclusão de que o artigo 28 da Lei de Drogas representaria sim uma infração penal, embora nem crime nem contravenção. Teria sido criada pelo legislador o que o autor denomina de uma “infração penal inominada”, no bojo de uma “descriminalização branca”. 58

Por seu turno, Rodrigo Iennaco de Moraes defende a tese de que não houve descriminalização ou “Abolitio Criminis”. Para ele o artigo 28 da Lei 11.343/06 descreveria uma “contravenção penal”, na medida em que seria uma infração penal que não é punida com reclusão ou detenção. Além disso, aduz o autor que a Lei 11.343/06 prevê que em caso de descumprimento das penalidades arroladas no artigo 28, poderá haver a aplicação de pena isolada de multa (artigo 28, § 6º., II), de forma a coadunar-se a referida infração penal ao conceito de contravenção delineado pelo artigo 1º. da Lei de Introdução ao Código Penal. 59

Finalmente, constata-se que a maioria da doutrina até o momento tem se posicionado pelo reconhecimento de que o artigo 28 da Lei de Drogas prevê mesmo um “crime”. 60

Para fundamentar essa conclusão têm sido acenados alguns argumentos:

Em primeiro lugar tem sido mencionado o fato de que o artigo 28 está alocado no Capítulo III, cujo sugestivo título é “Dos crimes e das penas”. Ademais, as medidas que podem ser impostas aos infratores são também denominadas pela própria lei de “penas” (vide artigo 28, “caput”, “in fine”).

Particularmente, considera-se tal argumentação extremamente superficial e contaminada por um legalismo similar à antiga “Escola da Exegese”, caracterizada pela limitação a uma “interpretação passiva e mecânica das leis”. 61 Ademais, sob o prisma epistemológico sugere a adoção de uma espécie de “nominalismo” que não perscruta a verdadeira natureza ou substância das coisas.

Para determinar a natureza jurídica de um instituto não basta ao intérprete constatar a “etiqueta” imprimida pelo legislador. Este não tem o poder de alterar de uma penada a natureza jurídica dos institutos, o que está ligado a muito mais do que as palavras da lei. Está relacionado à conformação íntima de cada instituto, em suma, ao seu verdadeiro espírito, que não pode ser perscrutado sem maiores aprofundamentos. 62

Entretanto, a corrente doutrinária em estudo não se limita a essa linha argumentativa tão frágil e que somente pode ser encarada como ancilar de fundamentos mais robustos.

Efetivamente traz à colação o fato de que uma vetusta lei ordinária (Decreto – Lei 3914/41 – Lei de Introdução ao Código Penal) não pode limitar os contornos das infrações penais no atual estágio da legislação brasileira, inclusive em face de inovadores preceitos constitucionais que versam sobre o tema.

Realmente o artigo 5º., XLVI, alíneas “a” a “e”, CF, apresenta um rol muito mais amplo do que as penas de reclusão, detenção, prisão simples e multa previstas pela legislação ordinária de 1941. Frise-se ainda que esse rol mais amplo nem sequer é taxativo, mas meramente exemplificativo, pois que o dispositivo arrola as penas ali elencadas com a ressalva de que o legislador as poderá adotar “entre outras”. 63

Aliás, a velha lição de que o Brasil é partidário do chamado “Sistema Dicotômico ou Bipartido” no que tange às infrações penais, dividindo-as em crimes e contravenções e não em crimes, delitos e contravenções como ocorre no chamado “Sistema Tricotômico ou Tripartido” adotado por outros países como, por exemplo, a França, 64 vem sendo posto em cheque, considerando as inúmeras inovações legislativas que praticamente implodiram o sistema, ampliando sobremaneira as possibilidades de classificação das infrações penais brasileiras.

Muito bem descreve esse fenômeno Artur de Brito Gueiros Souza ao destacar o surgimento de uma justificada dúvida quanto a saber se realmente o Brasil continua adepto de um sistema bipartido ou se já migrou para um sistema tripartido ou até mais ampliado, mencionando-se uma suposta classificação em “crimes hediondos”, “crimes não – hediondos” e “infrações de menor potencial ofensivo”, as quais abrangem alguns crimes e todas as contravenções (inteligência das Leis 8072/90 e 9099/95).65 Isso sem contar uma possível subdivisão das infrações, acrescentando uma categoria que se denominaria de “infrações de médio potencial ofensivo”, composta pelos tipos penais que comportam a suspensão condicional do processo nos termos do artigo 89 da Lei 9099/95, o que conduziria até mesmo a um sistema quadripartido.

Dessa forma, ter-se-ia operado com o advento do artigo 28 da Lei 11.343/06 uma “descarcerização”, mas não uma “descriminalização” ou “Abolitio Criminis”.

Como já consignamos em obra anterior em conjunto com Francisco Sannini:

O caso, aliás, foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 430.105, da relatoria do Min. Sepúlveda Pertence. Na ocasião, a Corte rejeitou “o argumento de que o art. 1º do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a novel lei criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou de detenção, uma vez que esse dispositivo apenas estabelece critério para a distinção entre crime e contravenção, o que não impediria que lei ordinária superveniente adotasse outros requisitos gerais de diferenciação ou escolhesse para determinado delito pena diversa da privação ou restrição da liberdade”.

Nessa mesma oportunidade o STF firmou o entendimento de que não houve “descriminalização”, mas uma “despenalização”, com a impossibilidade da adoção de penas privativas da liberdade. Com a devida vênia também ao STF, mas não se pode falar em “despenalização”, haja vista que o próprio tipo do artigo 28 estabelece que os autores desse crime estarão submetidos “às seguintes penas”, que somente não serão privativas da liberdade, mas, ainda assim, de natureza sancionatória penal. Houve, na verdade, uma verdadeira “descarcerização”66 ou “desprisionalização”67 e não uma “despenalização”.

Note-se que esse viés descarcerizador adotado pelo legislador no caso do usuário de drogas é reforçado no artigo 48, §§2º e 3º, da Lei 11.343/06, onde se estabelece a impossibilidade de prisão em flagrante nas hipóteses do artigo 28. 68

Observe-se, portanto que o Supremo Tribunal Federal vem atuando de forma errática a respeito da determinação da natureza jurídica da conduta de posse de drogas para consumo próprio. No bojo do RE 430.105 afirma que houve “despenalização” (sic) ou “descarcerização”, sem “descriminalização”. O dispositivo era então interpretado como um crime.

No entanto, ao agora julgar o RE 635659, com repercussão geral (Tema 506), acaba deixando de lado seu próprio precedente para reconhecer uma “descriminalização” da conduta prevista no artigo 28 da Lei 11.343/06, que passa a encarar como um “ilícito administrativo”.

Na verdade, o STF já havia reconhecido o artigo 28 como um “crime” no julgamento do RE 430.105. Agora lhe cabia apenas afirmar se esse “crime” era constitucional ou não, se era legítimo ou ilegítimo. Mas, que era um crime previsto pelo legislador, o próprio STF já havia decidido. Parece que o Tribunal Supremo se perdeu e confundiu os objetos dos dois Recursos Extraordinários, olvidando que já havia proferido decisão antecedente quanto à natureza jurídica do artigo 28 da Lei de Drogas. Agora o tema era apenas da sua constitucionalidade abstrata.

Acabou fazendo uma confusão entre “despenalização” e “descriminalização” e promovendo dificuldades e perplexidades em uma legislação já consolidada. Conforme entende Capez:

A decisão do STF, ao confundir despenalização com descriminalização, vai gerar novamente insegurança jurídica. A Lei nº 11.343 está em vigor desde 8 de outubro de 2006, sem qualquer declaração anterior de inconstitucionalidade. A opção política do legislador em criminalizar o perigo de circulação da droga deve ser respeitada, pois, além de não conflitar com a CF, atende ao comando de seu artigo 5º, caput, que exige proteção eficiente ao bem jurídico. A lei obedeceu ao princípio da proporcionalidade, ao não cominar pena privativa de liberdade e atendeu às exigências do princípio da alteridade, não criminalizando o uso, apenas a posse para uso futuro. Estabeleceu ainda clara diferenciação em relação ao tráfico, punido em grau bem mais elevado de censurabilidade (reclusão de 05 a 15 anos e multa pesada). É uma lei equilibrada e criteriosa.

A excessiva incursão principiológica tem levado o Poder Judiciário a revogar leis, com base em princípios genéricos, fazendo prevalecer concepções pessoais dos julgadores sobre a vontade objetiva da lei. Os princípios devem atuar de modo excepcional porque são mandamentos vagos de otimização, desprovidos de conteúdo definitivo e com instabilidade conceitual em seus comandos. 69

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Quando a ideologia se exacerba nos julgadores surgem decisões teratológicas como esta do RE 635659, Tema 506. No afã de fazer andar a agenda progressista de liberação das drogas, o Supremo acaba retomando uma questão já decidida que já não era objeto da controvérsia, alterando sua própria posição e tomando medidas que não são de sua competência ou atribuição.

Poderia também fazer andar sua tão cara agenda simplesmente reconhecendo o artigo 28 da Lei 11.343/06 como inconstitucional e promovendo “abolitio criminis” com legalização das drogas hoje ilegais no Brasil, ao menos para a posse para consumo próprio. Acontece que, como já visto neste texto, essa agenda é construída aos poucos a fim de não chocar a opinião pública, de forma que quando houver uma liberação total ninguém ou muito poucos se deem conta, já que estarão embotados pela normalização paulatina das drogas. Há uma estratégia que impede movimentos bruscos.

Daí surgem as limitações que têm o objetivo não declarado, certamente inconfessável, de tornar palatável uma medida apresentada como de menor relevância, a qual servirá, futuramente, de alicerce ou degrau para a sustentação de providências mais amplas e radicais.

E nessa toada, acaba-se criando um monstrengo e uma série de problemas e dúvidas.

Afinal, o que o STF fez foi afirmar que o artigo 28 da Lei de Drogas não seria um crime, operando uma “descriminalização”. Seria então um “ilícito administrativo”. A ideia é não assumir o intento de “legalização” de qualquer droga, já que continuaria sendo um ilícito, embora não criminal. Além disso, impõe o Supremo outro limite com relação à espécie de droga cuja posse para consumo seria apenas ilícito administrativo, qual seja, a “maconha”.

Dessa forma, nos deparamos com um monstrengo jurídico de duas cabeças:

  • a) O artigo 28 da Lei 11.343/06 seria ilícito administrativo quando se tratar de posse de maconha;

  • b) O mesmo dispositivo continuaria como ilícito penal (de acordo com a decisão precedente do próprio STF no RE 430.105, seria um “crime”).

Como já dito, a ideologia exageradamente impregnada em decisões judiciais acaba criando teratologias nunca antes vistas. Temos agora, por força jurisprudencial, um dispositivo legal que, ao mesmo tempo, é crime e não é crime; é ilícito administrativo e não é ilícito administrativo. Isso notoriamente contraria o mais comezinho princípio lógico da “não contradição”, o qual determina que uma coisa não pode ser e não ser concomitantemente. Mas, quem se preocupa com a lógica, a racionalidade e cientificidade quando a ideologia se sobrepõe a tudo?

De qualquer forma, vale lembrar o ensinamento de Amerio:

Mas é impossível para a mente humana, ou para qualquer mente, fazer coexistir termos contraditórios, isto é, o verdadeiro e o falso. Essa coexistência só seria possível com uma condição impossível: se o pensamento não se dirigisse ao ser das coisas, ou se o ser e o não - ser fossem equivalentes. 70

No próximo item abordaremos os diversos problemas, questionamentos e dúvidas que surgem com essa decisão, para dizer o mínimo, inusitada, do Supremo Tribunal Federal.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. STF e drogas: dissipando a cortina de fumaça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7713, 13 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110537. Acesso em: 17 set. 2024.

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