4. TENTANDO SOLUCIONAR OS PROBLEMAS E DÚVIDAS
4.1. HÁ OU NÃO UM BEM OU OBJETO JURÍDICO TUTELADO PELO ARTIGO 28 DA LEI DE DROGAS?
Um dos fundamentos para a descriminalização das drogas e até mesmo para sua legalização é o acatamento da tese de que a incriminação da posse para consumo violaria a autodeterminação individual e puniria as pessoas por uma conduta que não ultrapassa o âmbito da autolesão. Enfim, a conduta de posse de drogas para consumo próprio não teria força transcendente para atingir terceiros em seus bens jurídicos.
Nesse passo a criminalização da posse para consumo configuraria, na visão de autores como Feinberg, uma espécie de “Paternalismo Legal” que seria “censurável” porque trata adultos capazes como se fossem pessoas incapazes, forçando-os “a agir ou deixar de agir de certa maneira”, o que constitui uma violação “à autodeterminação e autonomia de vontade de seres competentes”. 71
Como já expusemos em obra anterior,
de forma minoritária, encontramos na doutrina posicionamento no sentido de que os tipos penais da Lei 11.343/06 não tutelam bem jurídico algum, sob a perspectiva de que se a preocupação do legislador fosse, de fato, a saúde pública, a opção pela criminalização da produção e do consumo de drogas não seria a mais adequada, especialmente se considerarmos a arbitrariedade existente na distinção entre as drogas lícitas e ilícitas e a ausência de um controle oficial sobre a qualidade das substâncias produzidas ilegalmente. 72
Na visão de QUEIROZ, “a alegação de que tutelaria a saúde pública constitui simples pretexto para legitimar uma opção político-criminal irracional, violenta e absolutamente desastrosa”. O mencionado autor afirma que a tese não se sustenta e expõe seus argumentos:
Primeiro, porque a proibição indiscriminada acaba por inviabilizar a realização de um controle oficial mínimo sobre a qualidade da droga produzida e consumida, inclusive porque as autoridades sanitárias nada podem fazer a esse respeito, em razão da clandestinidade; segundo, porque os consumidores não têm, em geral, um mínimo de informação sobre os efeitos nocivos das substâncias psicoativas; terceiro, porque o sistema de saúde (hospitais, médicos, planos de saúde etc.) não está minimamente aparelhado para atender aos usuários e dependentes; quarto, porque o próprio usuário é ainda tratado como delinquente, e, pois, como alguém que, mais do que tratamento, precisa de castigo. 73
É preciso destacar que, de acordo com esse pensamento, não seria somente a posse de drogas para consumo próprio ou apenas da maconha que não se legitimaria à criminalização. Seria desprovida de legitimidade a criminalização de qualquer posse de qualquer droga e também a sua produção e comércio. Se há a assunção de que inexiste bem ou objeto jurídico penalmente tutelável, cai por terra qualquer espécie de incriminação.
Portanto, o teor da decisão do STF não se conforma com a citação dessa espécie de argumento.
Para que o STF tenha mantido a incriminação da produção e comércio, bem como da posse, ainda que para consumo próprio de outras drogas diversas da maconha, é preciso que tenha partido do entendimento da existência de um objeto jurídico ou bem jurídico tutelável penalmente.
Neste sentido também já nos manifestamos em obra anterior:
O direito fundamental tutelado pelos tipos penais incriminadores previstos na Lei 11.343/06 é a Saúde Pública, ameaçada pelo perigo social causado pela circulação de drogas ilícitas no território nacional. Vale consignar que estamos diante de crimes de perigo abstrato, onde, com base em dados empíricos, são punidas algumas condutas que colocam em risco o bem jurídico penalmente tutelado.
Isso significa que os crimes da Lei de Drogas dispensam a comprovação do risco efetivo à Saúde Pública, bastando a comprovação da conduta, sendo o risco presumido pela própria lei. 74
Diverso não é o posicionamento de Silva:
Não está sendo punida a autolesão, como apregoam muitos, mas o perigo que o uso da droga traz para toda a coletividade. Também não está sendo violada indevidamente a intimidade e a vida privada do usuário de drogas, uma vez que esses direitos não são absolutos e podem ceder quando entrarem em conflito com outro direito de igual ou superior valia, como a saúde e a segurança da coletividade.
Se, é certo, que o uso de drogas prejudica a saúde do usuário, o que ninguém coloca em dúvida, também é certo que ele não é o único prejudicado. A coletividade como um todo é colocada em risco de dano. A saúde pública é bem difuso, mas perceptível concretamente. E cabe ao Estado proteger seus cidadãos dos vícios que podem acometê-los. O vício das drogas tem o potencial de desestabilizar o sistema vigente, desde que quantidade razoável de pessoas for por ele atingida.
Não há levantamento do número de mortes por overdose ou por doenças causadas pelo uso de drogas ilícitas. Também não há estatística confiável do número de crimes que são cometidos por pessoas sob o seu efeito. E, também, não são sabidos quantos crimes são praticados pelo fato de a vítima ser usuária de drogas.
Mas uma coisa não pode ser negada, o malefício das drogas, seja de forma direta ou indireta, é muito grande.
Bem por isso esse crime é considerado de perigo abstrato, ou seja, o risco de dano não precisa ser provado, sendo presumido de forma absoluta.
Quem milita na área penal, notadamente no Júri, sabe que boa parte dos crimes de homicídio é cometida por pessoas que se encontram sob o efeito de drogas, sejam lícitas ou ilícitas. Muitos crimes são praticados contra os usuários de drogas por algum motivo relacionado ao seu vício (desentendimentos, pequenos crimes, dívida com traficantes etc.). 75
Mantidas parcialmente as incriminações da Lei 11.343/06 é forçoso concluir que se admite (incluso o STF) a existência de bem jurídico penalmente tutelado.
Nesse passo é incompreensível a descriminalização seletiva de uma droga específica (maconha) que não foi retirada da lista de substâncias proscritas da Portaria ANVISA/MS 344/98 (Anexo I, Lista E, item 1, “Cannabis Sativum”) por quem de direito.
É claro que bens jurídicos também podem ser tutelados por outros ramos do Direito (v.g. administrativo, civil etc.). Mas, não é compreensível como poderia um Tribunal atropelar o legislativo e o executivo que apontaram para a tutela penal das drogas, incluindo a maconha, sem abrir mão da existência de um objeto jurídico tutelável no âmbito criminal. E de qualquer maneira, mantendo a proibição administrativa e penalidades mesmo para o usuário, não é possível afirmar que se tenha abandonado certo grau elevado de “paternalismo negativo”. Albergar esse argumento do suposto “paternalismo negativo” quanto às drogas somente levaria à sua liberação geral, inclusive comércio e produção, com meras fiscalizações naturais atinentes a medicamentos e produtos alimentícios, nada mais que isso.
Reafirmar a legitimidade da Lei 11.343/06 em quase sua totalidade e deslegitimar a incriminação da posse da maconha, sem que o complemento das normas penais em branco próprias ou heterogêneas, que compõem o diploma em estudo tenham sofrido qualquer alteração técnica pelo Ministério da Saúde é algo insustentável, não somente por invasão de atribuição do executivo, extrapolação da matéria constitucional do Recurso Especial respectivo, mas por não conter o mínimo de lógica e racionalidade demonstrável. A única lógica e racionalidade que se pode constatar é a da ideologia que impulsiona o ativismo judicial a satisfazer uma agenda programada e uma estratégia já aqui exposta.
Percebe-se que a decisão do STF é ilegítima, carece do mais mínimo fundamento. Mas, tendo em vista a atual realidade nacional em que esse Tribunal Superior impõe verticalmente sua vontade, sobrepondo-se aos demais poderes constituídos, à lei e também à Constituição que deveria proteger, fato é que diante de um caso de posse de maconha, haveremos de considerar a presença de mero ilícito administrativo. Antes diríamos, mesmo diante de uma lei defeituosa, “legem habemus” numa conformidade desanimada e faríamos uma proposta de solução de “lege ferenda”. Hoje passamos a dizer “decisum habemus” numa submissão daquele que não tem alternativa.
4.2. ARTIGO 28 DA LEI DROGAS: NORMA MUTANTE, HÍBRIDA, QUIMÉRICA, BIFRONTE, TRANSFORMER OU FLUIDA?
Em meio à embriaguez que tomou conta do STF, em raro momento de sobriedade, o Ministro Dias Toffoli parece ter intuído a ilogicidade da criação de uma norma que se transmuda de ilícito administrativo para penal; de inconstitucional para constitucional ao soprar do vento (ou, quem sabe, da fumaça). Manifestou-se (sejamos favoráveis ou não) pela descriminalização coerente de todas as drogas e não somente de uma delas. 76 Afinal, o que cabe ao Supremo não é detalhar normas, isso é missão do legislador ordinário, e sim analisar e declarar sua constitucionalidade ou não. Conforme o decidido, a norma terá validade e eficácia ou perderá esses atributos, ainda que permaneça vigente, “tertium non datur”. É claro que é possível que apenas parte de uma norma seja considerada inconstitucional, mas então essa parte será invalidada “in totum”, inexiste possibilidade de uma espécie de meio termo. Ou há inconstitucionalidade ou não, não existe norma “meio inconstitucional” assim como não existe uma mulher “meio grávida”.
A verdade é que a decisão do STF, ainda que contendo uma espécie de “modulação” quanto ao objeto (maconha) não será capaz de aplacar a enxurrada de interpretações doutrinárias e jurisprudenciais tendentes a ampliar o escopo da normatização jurisdicional levada desastrosamente a efeito.
Ocorre que não é possível “modular” a aplicação de princípios gerais do Direito e especiais do Direito Penal, tais como a isonomia, a proporcionalidade, a razoabilidade, o “Favor Rei” e a analogia “in bonam partem”.
É praticamente impossível não reconhecer, face aos princípios gerais do Direito e especiais do Direito Penal a ampliação da abrangência do “decisum” do STF para abarcar todos os casos de posse de drogas para consumo próprio. Já é monstruosa essa decisão só para maconha. Já é medonho fugir da abstração da questão constitucional para adentrar em espécies de drogas, quantidades, procedimentos etc. Já basta toda essa loucura. A analogia benéfica se apresenta impositiva por um mínimo de isonomia e justiça em meio a essa bagunça. Será realmente crível que aqueles membros do STF que votaram para a descriminalização somente da maconha não sabiam desses efeitos praticamente inevitáveis? Ou queriam mesmo uma descriminalização total, sem o ônus de arcar com a responsabilidade de tal decisão? Queriam, talvez, poder mais tarde lavar as mãos, dizendo: “descriminalizamos somente a maconha, foi o mundo jurídico que reagiu e ampliou nossa decisão”.
Um questionamento pode ser validamente apresentado diante desse quadro: se consideramos que a atuação do STF foi absolutamente ilegítima quanto à descriminalização da maconha, não estaríamos, contraditoriamente, ampliando essa mesma ilegitimidade, estendendo seu efeito a outras drogas ilícitas? Não estaríamos avançando mais que o próprio STF no tema?
A resposta é positiva, mas acontece que, como já exposto, porque o STF desrespeita continuamente os mais variados regramentos e princípios jurídicos não se pode e não se deve assimilar esses erros e abandonar todo o arcabouço normativo e principiológico que sustenta a juridicidade e a cientificidade do Direito. As consequências jurídicas de decisões que acabam, por força abusiva, sendo impositivas, não podem ou devem ser afastadas sob qualquer pretexto. Isso significaria esboroar todo o edifício jurídico já carcomido por atuações ilegítimas. A metodologia é realmente cruel e impassível, de maneira que parece contar mesmo com os efeitos daquilo que ainda pode restar de juridicidade e cientificidade no Direito, exatamente para ampliar pontual e casuisticamente os efeitos de seus desbordamentos. Malgrado isso, fiquemos com a lição de Josemaria Escrivá:
“Não te esquives ao dever. Cumpre-o em toda a linha, ainda que outros deixem de cumpri-lo”. 77
Como já foi dito aqui, questões jurídicas aparecem em torno dessas e outras decisões do STF, mas o Tribunal não atua sempre juridicamente. Há muita farsa, muita encenação no sentido teatral. Para começar a entender essas estratégias, é preciso iniciar pela leitura de Pascal Bernardin em seu livro “Maquiavel Pedagogo”, conforme já exposto neste texto. Neste quadrante, especificamente, estamos diante de uma estratégia sutil de "normalização" sócio - cultural das drogas. Não se trata de nada jurídico nem mesmo clínico, é engenharia social lenta e paciente.
O mundo jurídico se vê em polvorosa diante das teratologias ocasionadas pelo espúrio amálgama entre ideologia e Direito.
Nestor Távora vem a publico para tentar solucionar o mistério da “norma” ou das “normas” que se poderiam extrair da tresloucada decisão do STF. Afirma que a partir do julgamento do RE 635659, Tema 506 (repercussão geral) passaria a existir duas modalidades de posse de drogas para consumo próprio ou de “usuários”: A “simples” (infração administrativa – maconha – “cannabis sativa”) e a “qualificada” (infração penal, crime – demais drogas ilícitas). 78
É permitido afirmar que se Távora pretendeu criar nomenclaturas para espécies ou tipos de “usuários” tão somente, considerando o teor literal da decisão do STF, isso até pode ser aceitável teoricamente. No entanto, se há a pretensão de referir-se às infrações em si, acenando com uma forma “simples” e outra “qualificada”, isso é inviável. Ocorre que quando há previsão de um ilícito “simples” e “qualificado” isso só pode se dar num mesmo ramo do Direito. No caso, seria o Direito Penal. Em um dado tipo penal podemos ter uma forma simples e outra ou até várias qualificadoras. São exemplos de trivial conhecimento o furto (simples e qualificados); o roubo (simples e qualificados); o homicídio (simples e qualificados) etc. Agora, quando uma dada infração é um ilícito administrativo e outra é penal, não há falar em forma “simples” (administrativa) e “qualificada” (penal). Nessa situação o que existe são normas de diversa natureza que se referem a ramos diferentes do Direito. Nunca se falou que se alguém submetido ao exame do etilômetro resultasse positivo para álcool, mas sem atingir as margens para configuração do crime do artigo 306, CTB, haveria uma figura “simples” de mero ilícito administrativo e, por outro lado, se atingido o patamar necessário para configuração do crime do artigo 306, CTB, haveria uma figura “qualificada” de caráter criminal. Não, o que existe é o ilícito administrativo num caso (artigo 165, CTB) e o ilícito penal (artigo 306, CTB) no outro. Foi essa distinção que pretendeu fazer o STF, demarcar (muito mal e desastrosamente) o limiar entre a seara administrativa e a penal. Não houve, como seria ainda mais teratológico do que já é tudo isso, a criação de um ilícito “simples” (administrativo) e um “qualificado” (penal), variando de acordo com a espécie de droga ilícita portada pelo usuário ou dependente. A distinção é de “natureza da infração”, não da qualidade ou quantidade (formas simples ou qualificadas) no seio de uma mesma “natureza compartilhada”. O que complica a situação é que normalmente os ilícitos administrativo e penal são previstos em normas diversas (como no exemplo dos artigos 165 e 306, CTB) e não no mesmo dispositivo legal que passa a ser uma espécie de “transformer”. Quando afirmamos que essa atuação do STF criou muita confusão, isso fica evidente ao vermos essas incipientes manifestações na doutrina, capazes de induzir à criação de quimeras ainda mais horripilantes do que jamais pretendeu o próprio Tribunal.
Mesmo a pretensão de divisão teórico – nominativa entre usuários “simples” e “qualificados”, se melhor estudada, apresenta-se como inadequada, ainda que diante da literalidade da decisão judicial enfocada. A nomenclatura foi criação de Távora, até aí tudo bem, (simples, qualificado), mas o absurdo não foi dele, foi de quem inventou essa insanidade toda. Talvez o mais correto fosse uma classificação das drogas e não dos usuários, mesmo porque ninguém garante que quem é pego com maconha não consuma outras drogas. Então talvez coubesse uma classificação doutrinária em face da decisão do STF: drogas lícitas e drogas ilícitas, mas agora, nesta segunda categoria, teríamos a maconha (droga ilícita administrativa) e as demais (drogas lícitas criminais ou penais). Isso sem considerar a hipótese de extensão dos efeitos da decisão judicial para todas as drogas indistintamente, tendo em vista a principiologia jurídica que rege a matéria.
Passemos adiante. O STF não somente acenou com a descriminalização da maconha para consumo próprio. Também se aventurou em estabelecer uma quantidade de droga que levaria a uma espécie de “presunção” (relativa) 79 de pose para consumo, afastando a imputação de tráfico. Essa quantidade foi estabelecida em 40 gramas.
Acaso a literalidade da decisão do Tribunal prevaleça, só haverá ilícito administrativo e não penal para a maconha, bem como essa quantidade servirá apenas para uma inicial distinção entre usuário e traficante no caso isolado da maconha e não para as demais drogas ilícitas.
Porém, se a tese acatada for de que foi o artigo 28 da Lei de Drogas que foi reduzido a mero ilícito administrativo, abrangendo então não somente a maconha, mas todas as drogas ilícitas, então cabe solucionar a seguinte questão: também a quantidade de 40 gramas serviria de parâmetro para as demais drogas? Ou essa quantidade fica restrita à maconha?
Pode-se entender que a quantidade de 40 gramas de substância somente se refere ao caso da maconha, como foi literalmente estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal. No caso de outras drogas essa quantidade se mostraria exagerada para um usuário, ao menos em regra, considerando as demais circunstâncias do caso concreto. Doutra banda, não se vislumbra motivação plausível para essa quantidade que foi arbitrariamente imposta com relação à maconha (não há base científica, social, fática ou jurídica de qualquer espécie a sustentar essa quantidade para a maconha). Assim sendo, não há motivo algum para que essa quantidade arbitrária não se estenda para as demais drogas em analogia benéfica. “Alea jacta est”.
Por derradeiro é interessante destacar que se acirra a característica mutante impingida ao artigo 28 da Lei de Drogas quando se tratar especificamente da substância maconha. De acordo com a literalidade da decisão da Corte Suprema, haveria ilícito administrativo para a posse de maconha para consumo e ilícito criminal para outras drogas proscritas. Aí já temos o artigo 28 como uma quimera bifronte, um monstrengo de duas cabeças.
Porém a coisa pode piorar, de acordo com a literalidade do “decisum” sob comento: quando a droga é a maconha, se a quantidade for até 40 gramas o ilícito será administrativo, mas se for superior, será criminal. Aqui a fluidez do dispositivo é ainda mais acentuada, pois com a mesma substância pode se transmudar entre ilícito administrativo e penal, ainda que se considere caracterizada a posse para uso (sempre respeitando as demais circunstâncias do caso, de acordo com o § 2º., do artigo 28, pois pode haver configuração de tráfico, seja de maconha ou de outras drogas, independentemente da quantidade como fator isolado). 80
4.3. COM A DECISÃO DO STF O USUÁRIO PASSA A SER TESTEMUNHA CONTRA O TRAFICANTE E PODE SER PRESO POR FALSO TESTEMUNHO ATIVO OU OMISSIVO?
Tendo em vista a polêmica criada sobre a abrangência da decisão do STF apenas com relação à maconha ou também se estendendo para as demais drogas por questões principiológicas, sistemáticas e de equidade, passaremos a nos referir à posse de drogas para consumo, sendo que tal referência poderá no futuro ater-se somente à maconha ou ser mais ampla. Isso dependerá de como for o rumo da prática da aplicação da decisão do Supremo. Como neste exato momento não é possível precisar ou prever profeticamente a posição que virá a predominar, a fim de evitar a necessidade de fazer menção repetida à questão enfocada, usaremos então o termo genérico “posse de drogas para consumo próprio”.
Feito esse esclarecimento inicial, podemos abordar o questionamento objeto deste item.
Como o usuário não seria mais considerado praticante de um crime, seria possível convertê-lo em uma testemunha contra o traficante e, com isso, impor-lhe as penas de Falso Testemunho ativo ou omissivo?
Bitencourt chama a atenção para aquilo que denomina de “paradoxo de a condição de imputado ser travestida na de ‘testemunha’”. Aduz o autor:
O acusado não apenas tem direito ao silêncio, como, inclusive, o de faltar com a verdade, em sua própria defesa. A condição de acusado exclui, ipso facto, a de testemunha. (...). Quem é investigado tem assegurado pela Constituição não apenas o direito ao silêncio, mas fundamentalmente o direito de não produzir prova contra si mesmo. 81
Mas, se poderia objetar que com a descriminalização das drogas para consumo próprio não haveria aplicação desse direito que compõe o devido processo legal, vez que o usuário não é incriminado, mas apenas responde administrativamente. Nada mais equivocado.
Marta Saad esclarece que “acusação”, em um sentido amplo, “é a atribuição a um indivíduo de um fato juridicamente ilícito”. 82 E é neste sentido amplo que a Constituição atribui o direito ao Devido Processo Legal, com seus corolários, aos “acusados em geral”. 83 Chama ainda à baila o escólio de Marcelo Fortes Barbosa, segundo o qual:
“Com a alusão a ‘acusados em geral’, tem-se por consequência a abrangência de todas as situações coativas, ainda que legais, a que se submetem os cidadãos diante de autoridades administrativas”. 84
Também Maria Elizabeth Queijo, em seu estudo especializado a respeito do “Direito de não produzir prova contra si mesmo”, deixa evidenciado que essa garantia não se reduz ao Processo Penal (inteligência do artigo 5º. LV e LXIII, CF). 85
Obviamente, portanto, o “nemo tenetur se detegere” é garantido também àquele a quem é imputada uma infração administrativa.
O Supremo Tribunal Federal, ao descriminalizar o porte de drogas para consumo próprio, deixou bem claro que não estava legalizando tal conduta, mas que esta seguia como um “ilícito administrativo”. Dessa forma, aquele flagrado com drogas, ainda que para consumo próprio, sofre a imputação de uma infração administrativa, não estando, assim, obrigado a produzir prova contra si mesmo no que tange às sanções administrativas aplicáveis.
Por isso não é possível constranger o usuário a prestar uma espécie de “depoimento” contra o traficante, já que isso implicaria em forçá-lo a confessar amplamente o ilícito administrativo que lhe é imputado. Sob ameaça de prisão por suposto falso testemunho, o usuário seria então constrangido, de forma reflexa, a produzir prova contra si mesmo no âmbito administrativo – disciplinar. Por obviedade, tratar-se-ia de abuso de autoridade e constrangimento ilegal, de maneira que a prova obtida seria ilícita.
Ademais, é nítido que o legislador brasileiro vem num movimento de atenuação da repressão ao usuário e o STF, com sua decisão, intensificou exatamente essa tendência. Seria um contrassenso pretender imputar ao usuário de drogas, com a decisão do Supremo, um crime muito mais grave do que aquele pelo qual responderia sem tal decisão. O intento não é, evidentemente, de agravar a situação criminal do usuário, mas até mesmo de afastar sua responsabilização neste campo do Direito. Ora, imputar-lhe por vias transversas, um crime muito mais gravoso iria à contramão do tratamento legislativo e jurisprudencial dado à matéria. Isso sem contar que esse tratamento transverso violaria frontalmente direitos e garantias constitucionais ligados ao devido processo legal no âmbito administrativo, conforme foi demonstrado.
Por derradeiro, até mesmo uma questão de ordem prática impede que tal possibilidade de tratar o usuário como testemunha de outro crime seja levada a efeito, ao menos mediante seu constrangimento pela ameaça de pena. Acontece que o usuário pode alegar que não consegue descrever o fornecedor, ou que, como é comum, comprou a droga de um caminhoneiro desconhecido, não sabendo descrevê-lo, as placas do caminhão ou onde possa estar. Essas e outras posturas do usuário não são passiveis, em geral, de contestação pelas Autoridades a ponto de fazer-lhe uma imputação razoável de prática de falso testemunho (se é que isso fosse possível legalmente). Como faria a Autoridade para provar o fato negativo e impressões subjetivas (“prova diabólica”) de que ele se lembra sim do traficante e está mentindo; de que não é um caminhoneiro desconhecido etc.?
Finalmente, é preciso consignar que o usuário poderá ser uma testemunha informante, sem o compromisso, de maneira voluntária ou mesmo espontânea. O que é inviável é seu constrangimento mediante a ameaça ilegal de prisão ou processo por falso testemunho quando tem o direito de silenciar e não produzir prova contra si mesmo na seara administrativa. Não poderia jamais ser levado a uma confissão de seu ilícito administrativo mediante coação consistente na suposta responsabilização penal. Não obstante o direito ao silêncio e não autoincriminação é disponível, o que não impede, portanto, que o usuário venha a testemunhar contra o fornecedor se assim o desejar livremente.
Outro aspecto importante: em havendo apreensão de drogas que, sendo ilícitas, somente podem derivar de tráfico, nada impede que celulares e outros objetos de interesse investigativo encontrados com o usuário sejam objeto de apreensão para descobrir o autor do comércio ilícito.
A apuração do tráfico se daria em separado em procedimento investigativo de natureza criminal (Inquérito Policial), devidamente instruído com a ocorrência de posse para consumo. É claro que essa medida somente pode ser tomada mediante manifestação devidamente fundamentada da Autoridade de Polícia Judiciária, obtendo-se, ademais a necessária ordem judicial para acesso do conteúdo de eventuais mídias, celulares, computadores, tablets etc. Nessa situação não se trata de autoincriminação do usuário ou violação de seu direito constitucional ao silêncio.
4.4. DADAS AS REDAÇÕES DOS ARTIGOS 28 E 33 DA LEI DE DROGAS, APÓS A DESCRIMINALIZAÇÃO DA POSSE PARA CONSUMO, PODERIA SER IMPUTADO AO USUÁRIO O CRIME DE TRÁFICO NA MODALIDADE DO VERBO “ADQUIRIR”?
Deixe-se claro que esse questionamento, a exemplo de vários outros abordados neste texto, não é produto de dúvidas surgidas entre jejunos na área jurídica, mas propostas por profissionais do Direito. Releva perceber quanta confusão e perplexidade pode causar uma decisão atabalhoada, em que o Tribunal extrapola sua competência legal.
É claro que a resposta para a questão supra é um sonoro “não”.
É verdade que o artigo 28 da Lei de Drogas contém o verbo “adquirir”. Seguindo um raciocínio de que o STF tratou somente de condutas que se referem à posse ou porte de drogas, então apenas os demais verbos teriam sido descriminalizados (guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo). Nessa toada o verbo “adquirir” restaria isolado como conduta que não se refere à posse ou porte, razão pela qual se advogaria a configuração de infração ao artigo 33 da Lei de Drogas que também contém o verbo “adquirir”.
Nada poderia ser mais absurdo. Não é na “tipicidade objetiva” que se distinguem os artigos 28 e 33 da Lei de Drogas. Vários verbos da conduta coincidem mesmo. Mas o que faz a distinção entre um dispositivo e outro nos casos concretos é o “elemento subjetivo do agente”, sua intenção de ter a droga para consumo próprio ou para mercancia ilícita. Não se pode simplesmente prescindir do “elemento subjetivo” nessa distinção entre os dois dispositivos e guiar-se tão somente pelos verbos.
A devida tipificação de qualquer conduta no artigo 28 ou no artigo 33 (posse para consumo ou tráfico) se dá pela aplicação das regras do artigo 28, § 2º., CPP que permite a análise das circunstâncias do caso concreto para ensejar a decisão sobre a presença de um ou outro elemento subjetivo. Não é porque a confusa decisão do Supremo Tribunal Federal acaba se referindo à posse e porte somente que a aquisição para consumo próprio vai migrar para o artigo 33 da Lei 11.343/06.
Aliás, essa espécie de raciocínio seria odiosa porque simplesmente equipararia traficante e usuário o que, por obviedade, viola toda a Política Criminal da Lei de Drogas e os Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade. Viola até mesmo o sentido tomado pela decisão do STF. É evidente que, por mais esdrúxula que seja a decisão do STF, seu intento jamais foi o de tratar o usuário ou dependente adquirente de drogas como se traficante fosse. Ao reverso, a intenção foi claramente a descriminalização e o tratamento mais brando possível às condutas típicas de usuários.
4.5. NÃO SENDO MAIS O USUÁRIO OU DEPENDENTE CRIMINOSO, PODE ELE RESPONDER POR CRIME DE “RECEPTAÇÃO” DA DROGA?
Eis outro questionamento que surgiu, não em meio a aprendizes, mas no seio de discussões entre profissionais do Direito.
Novamente surge um raciocínio que vai à contramão de toda a evolução no trato do usuário de drogas. Essa evolução, como já visto, se dá no sentido do abrandamento.
Ora, como é possível que uma decisão que abrandou ainda mais esse tratamento, descriminalizando a conduta e tornando-a simples infração administrativa, viesse a dar azo à aplicação de um dispositivo penal alternativo muito mais gravoso ao usuário?
Ademais, é de trivial conhecimento o fato de que o tipo penal que trata da aquisição, posse e porte de drogas para consumo próprio (artigo 28, da Lei 11.343/06) se apresenta em relação à Receptação (artigo 180, CP) como uma situação de “concurso ou conflito aparente de normas”, solvível pela aplicação do “Princípio da Especialidade”. O tipo penal da Lei de Drogas prevalece, como tratamento especial em relação ao tipo do Código Penal. É a mesma situação que ocorre entre o Tráfico de Drogas e o Contrabando. 86 Portanto, não se trata de um questionamento que se possa levar adiante.
Ademais, até mesmo um elemento típico do crime de receptação impede sua aplicação no caso de drogas. O artigo 180, CP faz menção a “produto de crime”, esse é o seu objeto material (da receptação).
Ora, produto do crime é o objeto conseguido diretamente por meio da prática criminosa. A droga não é “produto do crime” de tráfico, mas seu “objeto material” e até seu “instrumento”. O produto do crime de tráfico é dinheiro e bens materiais. Então, se até mesmo um advogado recebe, por exemplo, um carro comprado com recursos do tráfico, ciente disso, cometeria “receptação”. Trata-se realmente neste caso de “produto do crime”. Mas, se recebe drogas para consumo próprio como pagamento, comete o crime do artigo 28 da Lei 11.343/06 e se as recebe para fins de tráfico, incide no artigo 33 da mesma legislação. Isso porque a droga em si é “objeto material” e “instrumento” do tráfico, não seu “produto”.
Mirabete e Fabbrini são bastante didáticos ao comentarem a figura do “confisco” de instrumentos do crime, aqueles que têm “por destinação específica” a utilização “na prática de crimes”, dando como um de seus mais comuns exemplos o de “substâncias que causam dependência física ou psíquica”. 87 Por seu turno Martinelli e Bem deixam claro que os produtos não se confundem com os instrumentos. São “produtos do crime – producta sceleris – (...) os objetos, bens, valores, dinheiro ou qualquer outra coisa que represente proveito direta ou indiretamente derivado da ação criminosa”. 88
Nesse passo, admitir a droga como “produto do crime” para configurar receptação seria similar a dizer que se alguém adquire o pé – de – cabra com o qual o ladrão praticou um furto mediante rompimento de obstáculo, seria receptador, mesmo sendo tal instrumento não furtado. Não, somente se pode receptar o “produto” do furto (v.g. uma televisão, um computador furtados), não o “instrumento” utilizado para a prática do furto. Por isso, quanto a drogas, o artigo 180, CP é um caso de “atipicidade relativa” pela falta do elemento “produto de crime”. 89
Seja pela especialidade ou pela atipicidade relativa não é viável a tese da receptação. Mas pode surgir o pensamento de que, considerando que o ilícito penal não existe mais para a posse ou porte para consumo, não haveria mais tipicidade penal no artigo 28 da Lei de Drogas, afastando a questão da especialidade. E, dessa forma, poder-se-ia cogitar de aplicação do artigo 180, CP ao caso.
Esse raciocínio também é inviável. Primeiro, porque antes mesmo da questão da especialidade, interpõe-se a atipicidade. Como visto, a receptação se refere a “produto de crime” e as drogas não são “produto”, mas “instrumento”. Além disso, embora se possa alegar que o âmbito penal é independente do administrativo, de modo que a sanção administrativa não afastaria a penal, mesmo desconsiderando a questão da atipicidade e, somente “ad argumentandum tantum”, admitindo que fosse possível a tipificação do artigo 180, CP, isso seria inviável. Não porque a penalização administrativa impeça a penal, mas porque essa regra admite exceções. Há casos em que clara e evidentemente se objetivou cuidar da questão somente no âmbito administrativo, exatamente afastando o penal. Um exemplo clássico sempre foi o crime de desobediência (artigo 330, CP). Em havendo punição civil, administrativa ou processual, ele é afastado. 90
Não cabe dizer que não existe tipificação para a posse de drogas para consumo. Existe. É um dispositivo administrativo (tipicidade administrativo – disciplinar). 91 A evidente opção é de punir administrativamente, não de criminalizar mais gravemente em outro tipo penal. Trata-se de aplicação do Direito Penal de “Ultima ratio”. O Direito Penal foi claramente afastado, não havendo legitimidade para sua aplicação.
No caso específico do artigo 28 da Lei de Drogas, a descriminalização pelo STF, como já foi aqui destacado, não teve o intuito de permitir um tratamento penal mais rigoroso para os usuários e dependentes, mas claramente teve por escopo afastá-los do âmbito penal. Dessa forma, não há falar em independência da seara penal em relação à administrativa. O intuito foi claramente o de aplicar somente sanção de natureza administrativa e afastar o campo criminal da questão (Princípios da “Ultima Ratio”, da Subsidiariedade e da Fragmentariedade). Portanto, a especialidade, a falta de adequação típica (produto x instrumento), a redução da questão ao âmbito administrativo na decisão do STF e as diretrizes de Política Criminal do legislativo e do judiciário, impedem de forma absoluta qualquer cogitação de crime de receptação para o adquirente de drogas ilícitas.
4.6. O QUE ACONTECE AGORA QUANDO UM ADOLESCENTE É FLAGRADO COM DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO?
A partir da decisão do STF, a posse de drogas para consumo próprio passa a configurar ilícito administrativo e não penal.
Dessa forma, se um adolescente é flagrado de posse de drogas para seu consumo não há mais “ato infracional”. Isso porque, como aduz Liberati:
(...) a Lei 8.069/90 considera ato infracional toda conduta descrita (na Lei) como crime ou contravenção penal, conforme dispõe o art. 103. Por esta definição, o legislador materializou a regra constitucional da legalidade ou da anterioridade da lei, segundo a qual só haverá ato infracional, se houver uma figura típica penal anteriormente prevista na lei (nullum crimen sine lege). 92
Sendo a posse para o consumo mera infração administrativa, não existe mais como “ato infracional”. Não obstante, continua a se tratar de um ilícito administrativo, bem como não se pode pretender discutir os malefícios das drogas para crianças e adolescentes. Alguma medida, portanto, precisa continuar sendo tomada em atenção à “proteção integral das crianças e adolescentes” (inteligência do artigo 227, CF c/c artigos 1º., 3º. e 4º. da Lei 8.069/90). Será então a aplicação de “medidas protetivas” (artigo 101 do ECA), não mais “medidas sócioeducativas” (artigo 112 do ECA).
A partir de agora não se legitima mais o processamento do caso do menor que porta droga para seu consumo na Delegacia de Polícia. Não há “ato infracional”, mas apenas necessidade de procedimento para aplicação de “medidas de proteção”. O andamento deve dar-se perante o respectivo Conselho Tutelar.
Surgem agora várias dificuldades:
Como ficará a apreensão das drogas? Onde serão guardadas? Como será requisitado o exame toxicológico preliminar e definitivo? Como fica a destruição dessas drogas?
Certamente, os registros iniciais deverão ser feitos pelo próprio Conselho Tutelar, inclusive auto de exibição e apreensão, mas a droga deverá ser encaminhada à Delegacia de Polícia com ofício para sua submissão a exame toxicológico e armazenamento respectivo. Isso porque o trâmite será perante o Conselho Tutelar, o Ministério Público e o Juízo da Infância e Juventude, os quais não são aparelhados suficientemente para armazenamento de drogas. O ideal é que esse procedimento seja regulamentado por lei. Também será necessário regulamentar por lei o procedimento para destruição dessas drogas. Por enquanto, o que se pode imaginar é que seguirá as normas da Lei de Drogas por analogia, incumbindo essa função à Polícia Judiciária.
Não obstante tudo isso é muito inseguro e sujeito a toda espécie de críticas com relação à falta absoluta de regulamentação legal, ausência de atribuições bem definidas relativas aos agentes públicos envolvidos (Conselho Tutelar, Polícia Judiciária, Polícia Militar etc.). O atropelo do Supremo Tribunal Federal gerou uma série de problemas e nenhuma solução.
Outro aspecto relevante é que, como o caso de apreensão de drogas, ainda que apenas 40 gramas ou menos, pode configurar tráfico, a primeira apresentação informal deve se dar perante a Autoridade de Polícia Judiciária. A esta cabe a atribuição de discernir sobre a prática de tráfico ou posse para uso, diante de todas as circunstâncias do caso e não somente a quantidade de drogas. Em se concluindo pelo tráfico, haverá ato infracional e tudo seguirá pela Delegacia. Confirmada a hipótese de posse para uso pessoal, a Autoridade Policial determinará o encaminhamento ao Conselho Tutelar e providências conforme acima mencionado deverão ser tomadas.
4.7. É VERDADE QUE ANTES DA DECISÃO DO STF NÃO HAVIA NA LEI CRITÉRIOS PARA DISTINGUIR USUÁRIOS E TRAFICANTES E HAVIA, PORTANTO UMA OMISSÃO OU LACUNA LEGISLATIVA SOBRE A MATÉRIA A SER COLMATADA PELO SUPREMO?
Essa narrativa foi uma espécie de ladainha que permeou toda a discussão no STF, pretendendo justificar seu ativismo ideológico.
Acontece que se trata de uma descarada mentira e o próprio STF nada mais fez do que, neste aspecto, repetir os critérios já previstos na legislação respectiva, fingindo não saber da existência do artigo 28, § 2º., da Lei 11.343/06.
Está ali escrito de forma induvidosa:
Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
Mas, dirão alguns que o STF fez uma grande coisa ao estabelecer uma quantidade para presunção de consumo ou tráfico (os malfadados 40 gramas). 93 Na verdade essa quantidade estabelecida em nada muda o quadro, já que se trata de presunção relativa que será apenas, como sempre foi, um dos elementos para a classificação de tráfico ou uso. A “quantidade” de droga sempre esteve elencada no § 2º. do artigo 28 da Lei 11.343/06. Indicar um marco relativo de 40 gramas não muda a indeterminação abstrata da situação que somente pode ser aferida num conjunto de circunstâncias no caso concreto sob análise.
O Supremo Tribunal Federal agiu como está descrito na obra “O Leopardo” de Lampedusa: lutou “uma daquelas batalhas que se travam para que tudo fique na mesma”. 94 Melhor dizendo, se houvesse apenas mudado para que tudo continuasse igual, teria feito melhor. Na realidade, criou uma série de confusões e dúvidas, gerando mais insegurança jurídica do que aquela que tanto criticava. Tudo isso é explicável pelo afã de fazer andar uma agenda progressista de liberação gradual das drogas, independentemente do preço a ser pago em termos de juridicidade das decisões ou de insegurança jurídica.
4.8. COM A DECISÃO DO STF A QUANTIDADE ATÉ 40 GRAMAS GERA PRESUNÇÃO DE POSSE PARA USO? E A QUANTIDADE ACIMA DE 40 GRAMAS, GERA PRESUNÇÃO DE TRÁFICO?
Visando melhor didática e sistemática, vamos abordar as questões em itens separados:
a) Com a decisão do STF a quantidade até 40 gramas gera presunção de posse para uso?
A resposta neste caso é positiva. O STF criou (de forma espúria) uma espécie de presunção de posse para consumo próprio quando a quantidade de drogas for até no máximo 40 gramas. 95 A isso, como aduz Albeche, vai se convencionando chamar de “gramatura” (“definição do peso em gramas”) como um dos critérios orientadores para a tipificação como posse para uso ou tráfico. 96
No entanto, essa presunção não é “absoluta” (“jure et de jure”), mas “relativa” (“juris tantum”), podendo ser afastada pela fundamentação do Delegado de Polícia nos casos de flagrante ou inquérito policial instaurado por Portaria e, depois, pela acusação, mediante a comprovação de que os demais elementos constantes do artigo 28, § 2º., da Lei de Drogas apontam para a prática de mercancia ilícita. E, finalmente, o Juiz deve analisar minudentemente cada caso concreto e os fundamentos fáticos e jurídicos apresentados pela Polícia e Ministério Público. 97 Como já visto, na própria decisão do STF, onde consta que não haveria critérios legais distintivos entre traficantes e usuários, há uma repetição dos mesmos critérios já estabelecidos em lei. 98
Essa presunção de posse para uso jurisprudencialmente criada pode ser admitida porque opera a favor do réu.
b) E a quantidade acima de 40 gramas, gera a presunção de tráfico?
Aqui a resposta somente pode ser negativa. Não é possível a criação, nem mesmo por lei (quanto mais jurisprudencial) de uma presunção (relativa ou absoluta) em prejuízo do réu.
Não é nenhuma novidade a crítica às presunções em matéria criminal. Desde antanho já apontava Malatesta para a irracionalidade das presunções legais em matéria criminal. 99 Para o autor, “em matéria penal, não se pode afirmar a culpabilidade, se ela não se apresenta como real e efetiva”. 100
Há realmente uma grande contradição interna em um ordenamento jurídico que estabelece a presunção de inocência e o “Favor Rei” como princípios norteadores e, concomitantemente, erige presunções contrárias ao réu que, na verdade, correspondem a espúrias “presunções de culpabilidade”.
Dessa forma, em havendo a posse de mais de 40 gramas de droga será necessário comprovar normalmente sua destinação à mercancia ilícita, com sustento nos critérios do artigo 28, § 2º., da Lei 11.343/06, nada se alterando com a decisão do STF. 101 Acatar a tese de uma presunção, ainda que relativa, seria ferir de morte o Princípio Constitucional da Presunção de Inocência ou Estado de Inocência (artigo 5º., LVII, CF), invertendo ilegitimamente o ônus probatório que cabe ao Estado e não ao acusado.
Não obstante, é importante um olhar para a prática do dia a dia no que se pode chamar de “chão de fábrica” do mundo jurídico: a atuação da Polícia Militar e a apresentação e primeiras providências de Polícia Judiciária pelo Delegado de Polícia.
Induvidosamente será muito comum que em casos de apreensão de mais de 40 gramas de drogas haja um automatismo policial no tratamento do caso devido a um efeito ilegítimo da decisão do STF. Possivelmente a quantidade acima de 40 gramas irá induzir desde o policial da rua (PM) até o Delegado Plantonista à tipificação no tráfico sem maiores esforços hermenêuticos, o que certamente se transmitirá ao Ministério Público quando da análise e elaboração da denúncia e até mesmo ao Judiciário na decisão final.
Doutra banda, a quantidade de 40 gramas ou menos terá efeito indutor de afastamento do tráfico, mesmo diante de outras circunstâncias que tendem a ser ignoradas pela objetividade e facilidade do critério meramente quantitativo. Conforme bem observa Capez:
Se o sujeito estiver com até 40 gramas de maconha, haverá agora uma presunção de natureza objetiva que reduz a quase nada os demais critérios de avaliação. A decisão do STF, embora pautada em justas preocupações quanto a abordagens preconceituosas contra segmentos socialmente mais vulneráveis, não considerou que tais erros são eventuais e podem ser corrigidos na audiência de custódia.
Por outro lado, o novo critério de presunção levará as organizações criminosas a modernizarem suas estratégias de distribuição, disseminando a maconha em pequenas porções por traficante e recrutando distribuidores ainda sem antecedentes criminais, que atuarão camuflados de falsos usuários. Abordados pelos policiais, se limitarão a dizer que estão dentro do patamar de presunção de atipicidade e que qualquer ato de constrição será fruto de suposição arbitrária e discriminatória, a configurar abuso de autoridade. É evidente que tal risco já existia anteriormente, mas agora há o respaldo judicial da descriminalização pelo patamar quantitativo, que é objetivo. Por essa razão, seria recomendável ao STF uma reavaliação dessa decisão. 102
4.9. AGORA QUE A POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO É APENAS UM ILÍCITO ADMINISTRATIVO, FICA DISPENSADA A PERÍCIA DA DROGA?
Considerando que o usuário ou dependente permanecerá sendo responsabilizado, ainda que apenas administrativamente, a perícia das drogas apreendidas em seu poder para comprovação de sua espécie, qualidade e quantidade é imprescindível, devendo ser seguido o regramento constante no artigo 50, §§ 1º. a 3º. da Lei 11.343/06.
A mudança criada arbitrária e açodadamente pelo STF não é imune a consequências. A perícia é imprescindível, pois não é admissível que alguém seja punido, ainda que administrativamente, sem prova de materialidade infracional. No entanto, o STF determina provisoriamente o trato dos casos de posse pela Polícia, Ministério Público e Judiciário, bem como aplicação provisória dos dispositivos da Lei de Drogas. Fica a se determinar qual será o órgão responsável por esses casos de ilícito meramente administrativo tão logo a questão seja regulada por lei. E quando o for, se o for, como se dará o trânsito entre a Autoridade de Polícia Judiciária e tal órgão, pois a avaliação inicial sobre o tráfico ou porte para uso é da Polícia Judiciária. Algo como uma apresentação preliminar na Polícia Judiciária e, após avaliação, encaminhamento ao órgão com atribuição administrativa deve ocorrer. E a Polícia Militar ou outras forças ostensivas? Certamente terão também que manter o primeiro contato com esses casos, levar à Polícia Judiciária e, se for necessário, depois, ao órgão administrativo com atribuição. Órgão este que simplesmente não existe no momento em que o STF toma uma decisão atabalhoada sem medir consequências ou sequer sopesar a questão prática, a “logística” de tudo isso.
Também os exames e procedimentos para armazenamento e destruição das drogas apreendidas, ainda que por uso, devem permanecer os estabelecidos na Lei 11.343/06 (artigos 31, 32, 50, §§ 3º. a 5º., 50 – A e 72). Ao menos até que a questão seja devidamente regulada. Enfim, uma mixórdia infernal!
4.10. O USUÁRIO DETIDO POR INFRAÇÃO MERAMENTE ADMINISTRATIVA PODE SER CONDUZIDO À DELEGACIA DE POLÍCIA?
Obviamente isso não seria o ideal, mas diante da necessidade de deliberação pela Autoridade de Polícia Judiciária (Delegado de Polícia) sobre a configuração de posse para uso ou tráfico, nos termos do artigo 28, § 2º., da Lei de Drogas, nos parece inafastável tal procedimento. Mesmo porque no momento continuará sendo aplicado o procedimento da Lei de Drogas e da Lei 9.099/95. Mas, nem mesmo por alguma regulamentação ulterior é possível evitar a apresentação inicial à Autoridade de Polícia Judiciária, já que não se pode prescindir da avaliação jurídica acerca da configuração de tráfico ou porte para uso.
Em caso de recalcitrância do suposto usuário, poderá ser utilizada força necessária e haverá possível responsabilização por crimes como desobediência e resistência (Artigos 330 e 329, CP, respectivamente). O usuário que até então cometia apenas uma infração de natureza administrativa, passa a incidir em tipos penais dado seu comportamento.
Não se pode chegar a outra conclusão ante o disposto na Tese 3 do Julgamento do STF:
Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28. da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença. 103
Leitão e Caldart tecem sérias críticas a essa deliberação da Suprema Corte:
Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) determine que o indivíduo surpreendido na situação porte de maconha para consumo pessoal deva ser encaminhado à Delegacia de Polícia, entendemos demasiadamente equivocada essa imposição, uma vez que a própria Carta da República confere à Polícia Judiciária a atribuição de apurar autoria e materialidade de crime e não ilícito administrativo. 104
Contudo, embora tenham em parte razão, fato é que necessariamente esses casos deverão, ao menos inicialmente, serem apresentados ao Delegado de Polícia, pois que, como já dito, é a Autoridade com atribuição para discernir se a posse é para uso ou tráfico, mesmo em casos de quantidade igual ou inferior a 40 gramas, já que o critério quantitativo não é o único a ser analisado. Ainda que mais tarde se crie um órgão com atribuição específica para os casos de uso, há que, primeiramente passar pelo crivo da Autoridade de Polícia Judiciária para ulterior encaminhamento. Hoje sequer temos tal órgão.
4.11. REGULAMENTAÇÃO FUTURA PELO CNJ?
Sim, como visto acima, na decisão do STF consta que o procedimento nos casos do artigo 28 da Lei de Drogas será determinado pelo CNJ. Mas, isso é possível?
Na verdade, não. O Conselho Nacional de Justiça não é órgão legislativo e sim meramente consultivo, propositivo e articulador. 105 Não lhe caberia jamais regulamentar coisa alguma referente a processo ou procedimento administrativo – disciplinar ou administrativo – punitivo.
Neste sentido, criticando a atuação do STF com fulcro em clara violação do artigo 24, XI, CF se manifestam Leitão e Caldart. 106
O correto é que essa regulamentação se dê no corpo da Lei de Drogas por iniciativa do Congresso Nacional.
Não obstante, não é o que o Supremo Tribunal Federal afirma em sua tresloucada decisão. Infelizmente já estamos nos acostumando com essas violações arbitrárias de competências e atribuições, especialmente relativas à separação dos poderes.
4.12. E A PEC 45/23 107 QUE PREVÊ UM MANDADO CONSTITUCIONAL DE CRIMINALIZAÇÃO DE QUALQUER QUANTIDADE DE DROGAS, AINDA QUE PARA CONSUMO PRÓPRIO?
A questão de criminalizar ou não a posse de drogas ou mesmo a sua produção e comércio é de Política Criminal de atribuição do Poder Legislativo.
A nosso ver, descriminalizar a posse e continuar criminalizando a produção e mercancia é um paradoxo que não tem como funcionar. Ou bem se descriminaliza ou não, essa posição intermédia é certamente a menos viável.
Fato é que os usuários alimentam o tráfico. Sem procura não se sustenta a oferta de nenhuma mercadoria, seja ela legal ou clandestina. Afrouxar a repressão do usuário e manter o tráfico incriminado é contribuir grandemente para o fortalecimento e crescimento deste segundo.
Há uma visão monocular da proteção a ser conferida aos cidadãos, como se a atuação estatal estivesse condicionada somente a abstenções e obrigações negativas. Como bem lembram Fischer e Pereira:
(...) não se pode esquecer jamais que há obrigações de o Estado agir positivamente para exatamente garantir também a proteção dos direitos fundamentais dos demais integrantes da sociedade, e não apenas daqueles que, por suas ações, possam ter violado o ordenamento jurídico. 108
Não é possível aderir ao que se tem denominado de “Garantismo Hiperbólico Monocular”, o qual exatamente enxerga e descreve o Garantismo apenas sob sua concepção negativa, levando ao extremo as garantias do indivíduo perante o Estado, sem a contrapartida do chamado “Garantismo Positivo”. Essa é uma visão evidentemente pervertida da teoria. Outra, que se constitui na correta concepção garantista, tem sido chamada de “Garantismo Integral”, abrangendo o “Garantismo negativo” ao lado do “Garantismo positivo” em uma relação de complementariedade. Pugna-se pela proteção de todos os direitos fundamentais, sejam eles atinentes a investigados ou réus, sejam relativos às vítimas ou qualquer prejudicado por uma conduta dotada de reprovabilidade (a sociedade em geral). Por isso se fala em “proibição de excesso” (limites ao Estado perante o indivíduo, evitando o arbítrio) e “proibição de insuficiência protetiva” (impossibilidade de deixar bens jurídicos sem a devida, razoável e proporcional proteção). 109
A descriminalização da posse de drogas para consumo, mediante um abusivo ativismo, ou até melhor, militantismo judicial, com infração à literalidade do sistema da legislação ordinária penal pode justificar uma legítima reação do Poder Legislativo, devido à usurpação escandalosa de suas funções e, consequentemente, à violação da tripartição de poderes constitucionalmente estabelecida. A doutrina especializada chama essa reação de “Backlash”. Conforme ensina Fernandes:
Nessa perspectiva, o backlash pode ser compreendido como uma forma de colaboração do legislador com o Tribunal: um apelo do legislador à autocrítica do Tribunal. Assim como o Tribunal emite decisões de apelo ao legislador, este também pode dialogar com o tribunal pela via da reedição de lei de conteúdo idêntico ou similar ao de lei declarada inconstitucional. Mesmo diante do elevado risco de nova declaração de inconstitucionalidade, a mensagem exortativa é clara. E pode conter a ameaça implícita de uma reação mais incisiva, pela via de uma emenda constitucional, por exemplo. 110
Chamam a atenção para essa questão Leitão e Caldart, com sustento no escólio de Victor:
Não se pode descartar, neste cenário, o desencadeamento do efeito backlash que, segundo Harvard Cass R. Sunstein, é uma “intensa e sustentada rejeição pública a uma decisão judicial, acompanhada de medidas agressivas para resistir a essa decisão e remover a sua força legal”. 111
Em suma, é possível por meio desse procedimento restaurar a usurpação cometida com o abusivo ativismo ou militantismo judicial, recompondo a tripartição de poderes e, juntamente com ela, o Estado Democrático de Direito.
Como bem aduz Silva:
Invadir a esfera de competência de outro Poder coloca em risco a própria democracia, posto que fere a harmonia entre os Poderes da República, levando muitas vezes a sérias crises Institucionais, que são resolvidas pelo próprio Poder Judiciário, que dá a última palavra, mas não pode se sobrepor e nem invadir a esfera de competência do Legislativo e do Executivo, que se encontra expressamente prevista no texto constitucional.
Com efeito, considerando que cada Poder da República funciona de forma independente e harmônica, podendo ser fiscalizado naqueles casos expressamente previstos na Constituição Federal, mas nunca ser invadido em sua esfera de competência privativa e exclusiva, evidente que pode o Legislativo apresentar e aprovar proposta de emenda constitucional que criminalize o porte de droga para consumo pessoal, tal como fez o senador Rodrigo Pacheco, de forma lúcida e sensata, que apresentou PEC inserindo no artigo 5º da Carta Magna o direito fundamental de ficar nosso país livre das drogas, tanto a nível do uso quanto do seu comércio ilícito. Diz a proposta:
“Art. 1º O caput do art. 5º da Constituição Federal passa a viger acrescido do seguinte inciso LXXX:
Art. 5º ………………………………………………………….
………………………………………………………………………
LXXX – a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.”
A partir do momento que a criminalização da posse e do porte de drogas para consumo pessoal sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar passa a ser direito fundamental de toda pessoa em âmbito nacional, a decisão do Supremo é tornada sem efeito para os fatos posteriores à promulgação da emenda constitucional, visto que a declaração de inconstitucionalidade alcançou uma lei ordinária e nem de longe pode impedir que o Congresso exerça sua competência constitucional de elaborar normas, seja a nível infraconstitucional ou constitucional.
E se tratará de direito fundamental de toda pessoa, que evidentemente prepondera sobre o direito à intimidade do usuário de drogas, que é um direito relativo como qualquer outro.
Enfim, com o devido respeito, seja pela invasão da competência do Congresso ou pela decisão equivocada no meu modo de ver, (...), não só pode como deve o Congresso aprovar a aludida proposta de emenda constitucional para que seja retomada a normalidade constitucional e para que a sociedade não tenha ainda mais usuários e dependentes de drogas, colocando em evidente risco a saúde pública e a segurança de toda população, o que a descriminalização irá fazer, como se tem visto em vários países pelo mundo afora. 112
Não obstante, não é de se duvidar que o Supremo Tribunal Federal venha a declarar a inconstitucionalidade mesmo de uma Emenda Constitucional, utilizando-se de algum malabarismo, como de costume, para justificar o reconhecimento de “normas constitucionais inconstitucionais”. 113
4.13. AS LEGISLAÇÕES ESTADUAIS QUE VÃO SURGINDO
Quando um Tribunal começa a agir mais politico – ideologicamente do que juridicamente é natural que incite reações da mesma espécie.
Nesse quadro, já surgem legislações estaduais, visando coibir a posse de drogas para consumo próprio, sob a alegação de que não haveria tal proibição via lei federal.
Em primeiro lugar, essas reações são fruto de clara e evidente demagogia política e eleitoreira. Isso porque o STF apenas “descriminalizou” as drogas para consumo próprio (na dicção restrita do STF, somente a maconha). Não houve uma “legalização”, isso fica muito claro no “decisum”. Também fica claro que o artigo 28 nesses casos será uma infração administrativa prevista em lei federal. Portanto, qualquer iniciativa de criação de normas estaduais sobre o tema já legislado é puramente uma reação simbólica dispensável.
As coisas vão rumando para o trágico – cômico. No Espírito Santo já é objeto de Projeto de Lei Estadual (PL 402/2024) a restrição de consumo de maconha em determinados ambientes públicos (v.g. edifícios públicos, cinemas, teatros, quadras esportivas, ônibus, hospitais, lojas, terminais e paradas de ônibus, entre outros locais). 114 Mas, quando e quem disse que a posse ou consumo de maconha em locais públicos ou privados foi em algum momento liberado no Brasil, seja por lei federal seja pelo Supremo Tribunal? A posse para uso próprio ou o consumo de quaisquer drogas ilícitas é proibido em todo local, seja público ou privado. A Lei Estadual em proposta é de uma inutilidade absoluta!
Também já surgem projetos criando ilícito administrativo no âmbito estadual para a posse de drogas para consumo, prevendo sanções de natureza pecuniária. É exemplo o que se passa no Estado de Santa Catarina, onde o Governador propõe que a pessoa flagrada usando drogas ilícitas (pelo menos é em qualquer lugar, público ou privado) será submetida à penalidade de multa de um salário mínimo (PLE 425/2021). 115
Para além da absoluta inutilidade dessas iniciativas, já que não houve “legalização” ou “liberação” das drogas, é preciso analisar juridicamente a questão.
Considerando sob um enfoque literal que somente a maconha foi “descriminalizada” pelo STF, então as demais drogas continuam com sua posse prevista como crime na Lei 11.343/06 (Lei Federal). Assim sendo, não caberia ao legislador Estadual, ao menos a princípio, criar punição administrativa para a conduta. Haveria, de certa forma oblíqua, invasão da atribuição Federal de legislar sobre Direito Penal. 116
Neste aspecto discordamos. O que ocorreria é que na Lei Federal haveria previsão de crime e na Lei Estadual previsão de infração administrativa independente. Sabendo-se que as searas penal e administrativa são autônomas, não haveria problema algum com essa previsão dupla. Não obstante, certamente é visível que a norma estadual seria inócua.
Agora, mesmo considerando que não somente a posse de maconha para uso próprio foi descriminalizada pelo STF, mas que essa decisão se espraia para todas as drogas ilícitas ou ainda que restringindo a questão à maconha, fato é que teríamos ou quanto a todas as drogas ou quanto à maconha em específico, dupla apenação administrativa pelo mesmo fato sem que haja justificativa para tanto. Não se trataria (ou para todas as drogas ou somente para a maconha, conforme a interpretação) de reação penal e reação administrativa independentes, mas de dupla reação administrativa pelo mesmo fato. Desse modo, a nosso ver, a norma Estadual deveria ceder espaço à Federal em um conflito, sob pena de se institucionalizar indevido “bis in idem”.
Em qualquer caso, é visível que essas normatizações estaduais não passam de oportunismos políticos simbólicos e inúteis.
4.14. A NOVA “MODA” DA “INTERPRETAÇÃO JUDICIAL OU JURISDICIONAL AUTÊNTICA”
Como já vimos em diversos momentos no decorrer deste texto, a confusão criada com a decisão do STF sob comento foi tão grande que foi necessária a expedição pelo Tribunal de uma “Informação à Sociedade”, visando esclarecer ao menos parte das inúmeras dúvidas suscitadas. 117
Sempre estivemos habituados com as espécies de interpretação segundo a figura do intérprete arroladas pela doutrina especializada. No caso, a chamada “interpretação autêntica” seria aquela levada a termo pelo próprio legislador na mesma lei ou em diploma ulterior. 118 Somente seria possível conceber uma “interpretação autêntica” levada a cabo pelo Juiz sob uma ótica kelseniana que defende que a decisão judicial é criadora de uma “norma jurídica” individualizada. 119 Já a “Interpretação Judicial ou Jurisdicional” é aquela procedida pelo Juiz “ao aplicar a norma ao caso concreto”, adstringindo-se ao julgamento. 120
Mas, com a sua “Informação à Sociedade” temos agora um híbrido tão ao gosto da nossa Corte Suprema, que se pode chamar de “Interpretação Judicial ou Jurisdicional Autêntica”, a qual se refere às situações (que parecem ser infelizmente cada vez mais comuns) nas quais as decisões judiciais precisam ser explicadas pelos seus próprios prolatores em uma espécie de “embargos de declaração” autoimpostos ou espontâneos (o que também seria uma inovação do STF). A decisão judicial deveria, pela própria natureza, ser clara e despida de dúvidas e não elusiva a ponto de exigir uma explicação ou esclarecimento à sociedade e até mesmo aos atores jurídicos.
E Aristóteles já nos avisou há muito tempo que “a linguagem que não transmite um significado claro falha em desempenhar a própria função da linguagem”. 121 Mas, parece que para muita gente esse alerta de nada serviu, já que temos tartamudos jurídicos até nos mais altos cargos.
Caminhando de um monstrengo híbrido a outro, parece que rumamos para uma espécie de “Ordem Jurídica da Família Adams”, com bem mais tragédia do que comédia.
4.15. A DESCRIMINALIZAÇÃO DA POSSE PARA C0NSUMO POR VIA JURISPRUDENCIAL DEVE RETROAGIR PARA BENEFICAR CONDENADOS ANTERIORES?
Com a decisão do STF no Recurso Extraordinário (RE) 635659, com repercussão geral (Tema 506), é verdade que a consideração de que a infração prevista no artigo 28 da Lei 11.343/06 é mero ilícito administrativo, constitui-se em nova interpretação benéfica. Não há a menor dúvida quanto a isso, pois o que era considerado anteriormente pelo próprio STF (RE 430.105, da relatoria do Min. Sepúlveda Pertence) como crime se convola em ilícito administrativo.
A irretroatividade da lei mais gravosa e retroatividade da lei mais benigna é assentada no Direito Penal (vide artigos 1º. c/c 2º., Parágrafo Único, CP c/c artigo 5º., XL, CF). Sobre o tema não existe o que debater, já que se trata de princípios básicos do Direito Penal expressamente positivados. Na dicção de Noronha, “o princípio é, pois, da irretroatividade da lex gravior e da retroatividade da lex mitior, isto é, irretroatividade in pejus e retroatividade in mellius” (grifos no original). 122
A questão que se apresenta no caso enfocado é se a alteração de um posicionamento jurisprudencial em benefício do réu deve também obedecer à retroatividade benigna.
Pelas penas de Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar surge a defesa da retroatividade da jurisprudência benéfica. Vejamos:
Quando, (...), a jurisprudência massivamente muda de critério e considera atípica uma ação que até esse momento qualificara como típica (ou quando julga simples o delito que até então considerava qualificado, ou justificado o que considerar antijurídico etc.) provoca um escândalo político, pois duas pessoas que realizaram idênticas ações reguladas pela mesma lei terão sido julgadas de modo que um resultou condenada e a outra absolvida, só porque uma delas foi julgada antes. Elementares razões de equidade, assim como o artigo 5º. da Constituição impõem que se tome aquela primeira condenação como uma sentença contraposta ao texto expresso da lei penal reinterpretada, viabilizando sua revisão (art. 621, inc. I CPP). 123
No mesmo sentido:
A fim de tornar efetivas as garantias do princípio da legalidade no direito penal, a regra da anterioridade deve prevalecer na jurisprudência da mesma forma que em relação à lei e, nesse sentido, merece ser acolhida e utilizada. Se o objetivo da uniformização da jurisprudência é fazer com que desapareçam as consequências indesejáveis dos contrates na aplicação do direito, é importante eliminar a possibilidade de alguém ser responsabilizado criminalmente de um modo que não poderia prever no momento em que atuou, em razão de um entendimento sedimentado em sentido diverso do que lhe foi aplicado. 124
Aduz Moreno que o significado da palavra “lei” expressa nos dispositivos que regulam a matéria da retroatividade deve ser amplo de forma a “englobar todas as manifestações normativas”. 125 E daí conclui:
(...), parece óbvia a conclusão no sentido de que a retroatividade benigna/irretroatividade prejudicial não pode se limitar à “lei penal”, devendo esta expressão ser interpretada de forma ampla, haja vista que as manifestações normativas não se restringem à lei stricto sensu. Assim, é evidente que o Judiciário, ao dar concretude aos enunciados legais, atribuindo-lhes significado normativo, submete-se à garantia insculpida no art. 5º., XL, da Constituição Republicana, de sorte que alterações jurisprudenciais de relevo não podem restar incólumes à vedação de retroação desfavorável ao acusado, admitindo-se, em contrapartida, a retroação que lhe seja benéfica.
Portanto, se o Estado – Juiz, ao apreciar determinado caso penal, estabelecendo o significado da norma incidente a ele, conclui que o fato é atípico, não pode, posteriormente, tendo em vista a alteração de seu entendimento, pretender alcançar situações albergadas pela interpretação adotada inicialmente. Na hipótese em tela, os autores da conduta que passou a ser considerada típica incidiriam em erro de proibição, devendo ter a sua culpabilidade afastada.
De outra banda, se o fato passa a ser considerado atípico, o novo enquadramento deve retroagir, beneficiando aqueles que sofreram condenações embasadas no entendimento anterior, sob pena de vulneração do princípio da isonomia (...). 126
Não obstante a questão da retroatividade da jurisprudência benéfica ao réu não é pacífica como ocorre com a lei. No TJDF encontram-se decisões afirmando que a jurisprudência não é dotada de retroatividade, ainda que benéfica, por não se tratar de lei “stricto sensu”. Para que venha a retroagir, exigem essas decisões que haja “modulação de efeitos” determinando essa retroação. Vejamos:
A alteração de entendimento jurisprudencial não se aplica retroativamente aos casos já definitivamente julgados, ainda que em benefício do réu, independentemente da via processual eleita, seja por agravo em execução penal, seja por revisão criminal, justamente por não se tratar de lei, em sentido formal, mais vantajosa
(Acórdão 1725295, 07001056120238070000, Relator: ROBSON BARBOSA DE AZEVEDO, Câmara Criminal, data de julgamento: 5/7/2023, publicado no PJe: 22/7/2023).
O Requerente fundamenta seu pedido na mudança de entendimento Jurisprudencial ocorrida a partir do julgamento sob a sistemática do Recurso Repetitivo que deu origem ao Tema nº 1.087 da Corte Superior de Justiça, Terceira Seção, o qual firmou orientação no sentido de que a causa de aumento de repouso noturno não pode ser aplicada quando se tratar de condenação por furto qualificado.
(...)
A proteção à coisa julgada tem envergadura constitucional (art. 5º, inciso XXXVI), constituindo pilar da preservação da estabilidade das relações jurídicas (segurança jurídica). Admitem-se exceções, estabelecidas na própria Constituição Federal, as quais, no entanto, devem ser interpretadas restritivamente, de modo a permitir a maior efetividade possível à norma regra, em consonância com o princípio de hermenêutica constitucional da concordância prática ou harmonização.
Esse é o caso da previsão constitucional segundo a qual a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF), que excepciona a imutabilidade da coisa julgada e, portanto, não deve receber interpretação extensiva, sob pena de restrição indevida ao princípio da segurança jurídica.
Daí porque não se pode admitir que a simples mudança de interpretação jurisprudencial, ainda que qualificada e mais benéfica ao réu, seja equiparada a mudança legislativa, para fins de afastar a coisa julgada.
(...)
Dessa forma, não é cabível a aplicação retroativa de entendimento jurisprudencial alterado, superveniente ao trânsito em julgado das ações penais.
Nesse caso, como visto, a observância à coisa julgada e à segurança jurídica, não permitem aplicação retroativa do referido entendimento, ainda que fixado sob a sistemática vinculante. Se o julgamento ocorreu em conformidade com a Jurisprudência existente à época, que entendia ser compatível o furto qualificado com a causa de aumento de repouso noturno, a mudança do posicionamento Jurisprudencial não autoriza a desconstituição da coisa julgada, conforme exposto.
Por fim, relevante consignar que, conquanto se admita que a alteração jurisprudencial oriunda de julgamento de casos vinculantes por Tribunais Superiores (art. 927, § 3º, do CPC), seja objeto de modulação de efeitos no interesse social e com vistas a resguardar a segurança jurídica; no julgamento dos REsp's nºs 1888756/SP, 1890981/SP e 1891007/RJ, que originou a edição da Tese 1.087 do STJ, não houve modulação dos efeitos para determinar sua aplicação retroativa.
Portanto, inviável o pedido do Requerente de exclusão da causa de aumento de repouso noturno de suas condenações, com a readequação das penas, aplicando retroativamente o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, fixado no tema nº 1.087, uma vez que mudança de entendimento Jurisprudencial não autoriza a aplicação do art. 66, inciso I, da LEP ou a desconstituição da coisa julgada
(Acórdão 1680480, 07433904120228070000, Relator: CESAR LOYOLA, Câmara Criminal, data de julgamento: 22/3/2023, publicado no PJe: 7/4/2023). 127
Sublinhe-se, porém, que mesmo o TJDF nessas decisões somente repele a retroatividade de jurisprudência benéfica em face da “coisa julgada”. Não apresenta contrariedade à aplicação do entendimento mais favorável a casos em andamento. Senão vejamos:
A vinculação do precedente fixado no Tema nº 1.087 do Superior Tribunal de Justiça é restrita aos processos de conhecimento ainda em curso, não sendo aplicável aos títulos executivos acobertados pelo manto da coisa julgada
(Acórdão 1736603, 07150955720238070000, Relator: ASIEL HENRIQUE DE SOUSA, Câmara Criminal, data de julgamento: 26/7/2023, publicado no PJe: 3/8/2023). 128
Essas mesmas limitações aos processos em curso e não aos definitivamente julgados, salvo em casos excepcionais com “modulação de efeitos”, também é adotada tanto em decisões do STJ como do STF:
Alteração de entendimento jurisprudencial – impossibilidade de ajuizamento de revisão criminal
A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça firmou-se no sentido de que a mudança de entendimento jurisprudencial não autoriza o ajuizamento de revisão criminal, ressalvadas hipóteses excepcionalíssimas de entendimento pacífico e relevante, o que não se vislumbra na espécie
(RvCr 5.620/SP, Relatora: Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 14/6/2023, DJe de 30/6/2023).
Alteração de entendimento jurisprudencial – processo em curso – inaplicabilidade dos princípios da irretroatividade ou tempus regit actum
Ainda que se tratasse de mudança de entendimento jurisprudencial, é pacífico nesta Corte de Justiça que eventual alteração é aplicável imediatamente aos processos em trâmite, porquanto se trata de mera interpretação, não de criação de nova regra a se submeter ao princípio da irretroatividade ou do tempus regit actum
(AgInt no AREsp 2229621/MG, Relator: Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 27/03/2023, DJe de 29/03/2023).
Recurso interposto anteriormente ao novo entendimento jurisprudencial – possibilidade de aplicação
Esta eg. Corte Superior já decidiu que a alteração de entendimento jurisprudencial é aplicada ao recurso pendente de análise, ainda que interposto antes da mudança de posicionamento pretoriano. Precedentes.
(EDcl no AgRg na RvCr 5608/DF, Relator: Ministro Jesuíno Rissato (desembargador convocado do TJDFT), Terceira Seção, julgado em 23/11/2022, DJe de 29/11/2022).
Retroatividade de norma penal benéfica - inaplicabilidade a precedentes jurisprudenciais
O princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, salvo exceções devidamente justificadas no decisum, não se aplica às interpretações jurisprudenciais
(HC 213605 AgR, Relator Ministro Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 24/10/2022, publicado em 18/11/2022). 129
Conforme se vê, é possível a adoção da tese da retroatividade da jurisprudência benéfica sem maiores obstáculos de acordo com a doutrina e jurisprudência nos casos em andamento. Já com relação a casos julgados em definitivo a retroação benéfica estaria a depender de uma “modulação de feitos” constante da própria decisão.
No decisório do STF em estudo, s.m.j., não se encontra menção a “modulação de efeitos” com relação a casos transitados em julgado. Dessa forma, o natural seria, de acordo com os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais expostos, a aplicação do novo entendimento jurisprudencial a casos em andamento e aos ocorridos após sua prolação. Relativamente aos casos em andamento haveria, portanto, um efeito retroativo do “decisum”, já que seria aplicado a fatos ocorridos anteriormente.
Não obstante já se noticia que o CNJ irá promover um “mutirão” para revisão de prisões e condenações em desacordo com a decisão do STF. E o Ministro Barroso, manifestando-se costumeiramente fora dos autos, via imprensa, parece ter pretendido empreender uma “modulação de efeitos jornalística”. Em matéria da CNN, afirma o Ministro que “’possivelmente’ as pessoas condenadas por tráfico por quantidade de maconha igual ou inferior ao estipulado poderão buscar a revisão da condenação”. 130 Ora, se faz referência a “revisão” e “condenação” parece considerar casos já com trânsito em julgado e sujeitos a “Revisão Criminal”. Não obstante, não existe “modulação de efeitos jornalística”, ou seja, procedida fora dos autos em entrevista.
Como já dito, portanto, o natural, de acordo com os entendimentos expostos, seria que a decisão seja aplicada aos casos vindouros e somente tenha retroatividade para os em andamento. Em havendo trânsito em julgado (coisa julgada), na ausência de “modulação de efeitos” ou eventual “regra de transição” nos termos do artigo 23 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto – Lei 4.657/42, com nova redação dada pela Lei 12.376/2010), 131 não deveria haver retroação. Malgrado isso, não é possível assegurar como a aplicação dessa decisão se dará de fato, já que estamos acostumados (infelizmente) à total desvinculação das decisões judiciais das leis, da própria jurisprudência, da melhor doutrina e até mesmo da Constituição.
Um aspecto que pode levar à conclusão mais segura de que seriam abrangidos pela retroatividade benéfica até mesmo casos já transitados em julgado é a constatação de que essa decisão do STF não tem efeitos apenas “inter partes”, mas sim “erga omnes” pela própria natureza de Repercussão Geral (Tema 506).
Afinal, como alertam Martins Júnior e Jacob:
(...) não se discute que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal com efeito erga omnes, bem como as súmulas editadas com caráter vinculante, retroajam para beneficiar os réus e acusados em geral a exemplo do que ocorre com a novatio legis in mellius. A controvérsia fica por conta das decisões que são proferidas em casos concretos, porém sem eficácia para todos e sem caráter vinculante. 132
Partindo então desse reconhecimento de que a natureza da decisão em estudo é “erga omnes”, independentemente de “modulação de efeitos”, será possível concluir pela sua retroação ampla, abrangendo fatos ocorridos antes de sua prolação, mesmo transitados em julgado.
Seria tudo muito mais fácil se tivesse constado do “decisum” e não de entrevista jornalística a abrangência maior ou menor de seus efeitos.
Toda essa controvérsia também nos demonstra o quanto é importante perceber que a deliberação do STF não é de natureza jurídica, mas sim político–ideológica.
Discutimos exaustivamente a questão da retroatividade da decisão. Pois bem, será que essa retroatividade ou não é mesmo tão importante?
A verdade é que a decisão do STF nada mais é, ao fim e ao caso, do que uma manifestação gradualista para firmar uma agenda ideológica de futura liberação das drogas, conforme já demonstrado.
Em termos jurídicos a alteração da natureza do artigo 28 da Lei de Drogas para infração administrativa é algo, na verdade, desimportante. Isso porque, como já visto, o abrandamento gradual do tratamento da posse para consumo é parte de todo um processo ao qual adere o STF e, com certa impaciência pela inércia do legislativo, força um passo simbólico adiante. Nada mais que isso.
Vejamos:
Houve alteração “in mellius” da redação quanto à conduta sujeita a sanções, constante do artigo 28 da Lei de Drogas? Não, nada se alterou na redação do dispositivo.
Foram alteradas as sanções a serem aplicadas ao usuário, em seu benefício? Não, as sanções são as mesmas já previstas no artigo 28 da Lei de Drogas desde 2006.
Aconteceu alguma alteração quanto aos efeitos da condenação pelo artigo 28 em estudo, em benefício do infrator? Também não. Desde antanho já estabeleceu a jurisprudência, inclusive do STJ e do STF, que a condenação pelo artigo 28 da Lei 11.343/06 não gera reincidência nem maus antecedentes e somente tem aplicação para fins de nova condenação pelo mesmo dispositivo, quanto à dosimetria das penalidades ali previstas. 133 Ou seja, o significado da “reincidência” prevista no § 4º., do artigo 28 da Lei 11.343/06 “não reflete o sentido técnico adotado pelo Código Penal” reduzindo-se somente à “reincidência específica” do mesmo artigo 28. 134 Assim sendo, não é o reconhecimento agora pelo STF da natureza de mera infração administrativa para o artigo 28 da Lei de Drogas que afasta a reincidência propriamente dita. Essa situação já era reconhecida jurisprudencialmente e doutrinariamente e continuará a ser da mesma forma com relação unicamente à dosimetria das sanções do artigo 28, sejam como sanções penais ou administrativas.
Nos termos expostos, é possível concluir que a decisão do STF somente faz alterar a natureza jurídica do artigo 28, passando de infração penal para ilícito administrativo. No entanto, não há alteração da conduta sancionada, das sanções aplicáveis e nem mesmo de seus efeitos penais e extrapenais. Tudo isso já era objeto de abrandamento legal e jurisprudencial ao longo do tempo.
O que retroagirá beneficamente será apenas o simbólico tratamento da infração como administrativa e não criminal.
Poder-se-á objetar que no que tange à presunção de uso para a quantidade de 40 gramas de droga haveria mudança de relevo. Na verdade não. A quantidade de drogas, como já exposto neste texto, gera uma presunção meramente relativa (“juris tantum”) e condicionada a um conjunto de circunstâncias que é o mesmo já previsto legalmente no próprio artigo 28, § 2º., da Lei 11.343/06, que o STF nada mais fez do que repetir e fazer uma espécie de exortação para seu devido cumprimento em decisões fundamentadas dos Delegados de Polícia, Promotores e Juízes.
Torna-se um mistério desvendar o que o CNJ pretende fazer em seu “mutirão”. Quanto aos casos abrangidos pelo artigo 28 da Lei de Drogas não haverá nada a mudar, salvo se for para fazer constar que a condenação foi por uma infração administrativa e não penal. Mas, isso sem efeito prático, porque as sanções não mudam e não há reincidência propriamente dita. No que tange à reincidência específica no artigo 28, esta continua existindo e não foi alterada pelo STF. Será aplicável no âmbito administrativo, que não desconhece o conceito de reincidência.
E quanto aos casos de condenações ou prisões por tráfico com quantidade de drogas apreendida de 40 gramas ou menos? Também não há nada a ser feito. A quantidade é apenas um dos indicativos, uma presunção relativa. Os demais fatos e circunstâncias certamente já foram analisados nos termos do artigo 28, § 2º., da Lei de Drogas, que não sofreu alteração com o “decisum” da Corte Suprema. Não há razão alguma para alterar nenhuma decisão anterior, salvo se fosse admitido o entendimento de que a presunção quantitativa trazida pelo STF seria “absoluta”. Mas isso entra em conflito direto com as próprias Teses elaboradas pelo Supremo com relação ao seu julgamento (Tese 4), apontando claramente para a presunção “juris tantum” (relativa).
Na ausência de fatos novos, a decisão em si do STF não é capaz de modificar em nada as decisões anteriores de autoridades. É claro que tais decisões podem ser revistas mediante o uso dos recursos disponíveis no Processo Penal, questionando-se seus fundamentos fáticos e jurídicos. Mas, isso sempre decorreu do duplo grau de jurisdição, da ampla defesa e do devido processo legal, não sendo criação da atual decisão do STF acerca da quantidade de drogas que, a princípio, configuraria posse para uso ou posse para fins de mercancia ilícita. Destaque-se que para os casos com trânsito em julgado, a ação de Revisão Criminal exige o surgimento de fatos novos, o que não se coaduna com a simples previsão de uma quantidade de drogas que gera uma presunção meramente relativa, a qual certamente já foi objeto de decisão e fundamentação nos termos do vigente artigo 28, § 2º., da Lei 11.343/06. Mais uma vez é preciso destacar que a presunção quantitativa estabelecida pelo Supremo é relativa, de forma que a alteração de decisões anteriores se faria não por contrariedade ao texto expresso do “decisum” do STF, nem por ser contraditória com a evidência dos autos, nem por falsidade patente de depoimentos, documentos e exames, nem por descoberta de novas provas ou circunstâncias que levem à absolvição ou diminuição de pena, nem por nulidade processual (inteligência dos artigos 621 e 626, CPP). Tratar-se-ia de indevida reapreciação do caso e de seus fundamentos sem esteio nas hipóteses revisionais. 135
Em suma, na realidade a retroatividade legítima da decisão proferida pelo STF seria somente dotada de um efeito simbólico para os casos específicos de porte para consumo, reconhecendo que a infração é administrativa e não penal, mas sem alterar suas consequências efetivas. Por outro lado, no caso de condenados por tráfico em que a quantidade seja igual ou inferior a 40 gramas, não há o que retroagir. Eventuais equívocos decisórios devem ser corrigidos pelos recursos normalmente cabíveis. E nos casos de responsabilização somente por uso com quantidades de drogas acima de 40 gramas também nada se altera, ainda com maior razão. Não há presunção alguma de tráfico, ainda que relativa, conforme já visto. E mesmo que houvesse, apenas “ad argumentandum tantum”, não seria possível Revisão Criminal “pro societate”. 136 Obviamente, quanto aos condenados por tráfico com quantidades de drogas maiores do que 40 gramas também nada haveria a fazer, a não ser pelas vias recursais normais.
Enfim, a decisão proferida pelo STF gerou muito barulho, mas efeitos jurídicos diminutos, exatamente porque não passa de uma exortação político – ideológica, de modo que seus efeitos são sentidos apenas simbolicamente.
4.16. QUAL O PRAZO PRESCRICIONAL PARA O ILÍCITO ADMINISTRATIVO DE POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO?
Temos evitado a dicotomia entre o tratamento da maconha e outras drogas ilícitas em nossos comentários, conforme já alertado aos leitores, a fim de evitar rodeios e repetições argumentativas. Neste item, porém, faremos uma abordagem em dupla perspectiva, ou seja, primeiro considerando a maconha com tratamento diverso das demais drogas (literalidade da decisão do STF) e depois tendo em consideração as drogas ilícitas sem distinção. O motivo é que nessa forma será mais didático o desenvolvimento do assunto.
a) MACONHA COMO ILÍCITO ADMINISTRATIVO E DEMAIS DROGAS ILÍCITAS COMO CRIME
a.1) A MACONHA
Considerando o STF a posse de maconha para consumo próprio como ilícito administrativo, diversamente das demais drogas ilegais resta a dúvida quanto ao prazo prescricional da infração.
O STF em suas Teses 2 e 3 deixa consignado que as penas previstas no artigo 28 da Lei de Drogas continuarão a ser aplicadas na forma de sanções administrativas, adotando-se por agora as regras contidas na Lei de Drogas e na Lei 9.099/95.
Sobre a questão da prescrição surge um conflito. A Lei de Drogas prevê, em seu artigo 30, um prazo prescricional de 2 anos para o artigo 28. Mas, esse prazo se aplica como regra especial em relação ao Código Penal (3 anos – artigo 109, VI, CP). Portanto, se refere ao prazo prescricional de natureza penal e não administrativo.
Quando o STF afirma que a infração do artigo 28 da Lei de Drogas é um ilícito administrativo, surge a dúvida quanto à aplicabilidade do prazo prescricional inscrito no artigo 30 da Lei 11.343/06, muito embora o próprio Tribunal tenha mantido em geral as regras da Lei de Drogas e da Lei 9.099/95, conforme já destacado.
A solução poderia ser aplicar o prazo prescricional previsto em geral para as infrações administrativas. Tal prazo, conforme artigo 1º., da Lei 9.873/99, é de 5 anos.
Eis o dispositivo:
Art. 1º. Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.
Estabelece o artigo 1º., § 2º., da Lei 9.873/99 que “quando o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal” (grifo nosso). Seria essa uma orientação para a aplicação do prazo prescricional de 2 anos do artigo 30 da Lei de Drogas? Infelizmente não. Isso porque se a posse for de maconha, trata-se de infração administrativa e não de crime. O crime somente haveria para a posse de demais drogas ilícitas. Não existe crime correlato para a posse de maconha se estamos tratando da dicotomia literal do STF. Assim esse crime previsto no artigo 28 para as demais drogas não se confundiria com a posse de maconha, de forma que seu prazo prescricional não poderia se estender por força do disposto no artigo 1º., § 2º., da Lei 9.873/99. O fato é previsto como ilícito administrativo e não também como crime. É somente ilícito administrativo. O crime do artigo 28 se refere a outras drogas, não à maconha.
Agora estamos diante de um dilema. Não há prazo prescricional previsto especificamente para a posse de maconha para consumo próprio. Essa infração administrativa recém-criada por via jurisprudencial não tem correlato penal. Com a dicotomia do STF, resta claro que para as demais drogas a prescrição da pose para consumo (artigo 28) é de 2 anos (artigo 30). Mas e para a posse de maconha? Não há previsão expressa em local algum e o crime contido no artigo 28 não se refere à maconha.
Nesse quadro certamente não seria possível afirmar a imprescritibilidade, já que tal “solução” seria inconstitucional e desproporcional. Poderia haver a hipótese de aplicação do prazo prescricional de 5 anos previsto na legislação administrativa citada. No entanto, mesmo o crime (outras drogas) prescreveria em 2 anos. Não seria razoável e proporcional que a mera infração administrativa prescrevesse em 5 anos, especialmente levando em consideração a lógica da Política Criminal adotada de abrandamento para com os usuários. Aumentar o prazo prescricional seria algo por demais incoerente, mesmo no quadro de insanidades que temos presenciado.
Parece-nos que a única solução viável é a de aplicar o prazo prescricional de 2 anos, conforme previsto no artigo 30 da Lei 11.343/06, não porque este se estenda à maconha por força do artigo 1º., § 2º., da Lei 9.873/99, mas por analogia benéfica e considerando que o STF manteve, até surgimento de lei específica, as regras da Lei de Drogas e da Lei 9.099/95.
a.2) AS DEMAIS DROGAS ILÍCITAS
Conforme já exposto, permanecendo na dicção literal do STF a posse para consumo das demais drogas ilícitas como crime, nada muda em relação ao prazo prescricional, aplicando-se normalmente os 2 anos previstos no artigo 30 da Lei 11.343/06 que regula expressamente a matéria.
b) MACONHA E DEMAIS DROGAS ILÍCITAS COMO ILÍCITO ADMINISTRATIVO
Aproveitando o que já foi exposto no subitem anterior, resta claro que nessa situação não seria viável o emprego das regras administrativas com relação a quaisquer situações de posse de drogas para consumo próprio. O aumento do prazo prescricional não se coaduna com a Política Criminal adotada em relação aos usuários.
Também não seria possível aplicar o disposto no artigo 1º., § 2º., da Lei 9.873/99 porque, nesta situação ora em estudo, inexistiria crime de posse de drogas correlato, mas somente ilícitos administrativos não importando a espécie de droga.
Novamente a única solução seria a aplicação do prazo de dois anos do artigo 30 da Lei 11.343/06 por analogia benéfica e considerando a determinação do STF de continuidade, por agora, de utilização das regras da Lei de Drogas e da Lei 9.099/95.
4.17. COMO FICA O PROCEDIMENTO PARA A POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO?
A partir do momento em que se convola em mero ilícito administrativo a posse de drogas para consumo próprio, na verdade, a atuação das Polícias Civil e Militar, bem como do Ministério Público e do Judiciário tornam-se impraticáveis e carentes de regulação legal. 137
No entanto, o STF, em mais uma incursão ilegítima, de certa forma e muito debilmente, apresenta uma solução provisória em suas Teses 2 e 3. Vejamos:
2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28. da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta.
3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28. da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença (grifo nosso).
O que mais assusta (se é que algo ainda nos assusta, vindo da Corte Suprema) é a determinação de que o CNJ irá regular a matéria do procedimento relativo ao ilícito de posse de drogas para consumo. Isso certamente não é tema de atribuição do CNJ, mas do Congresso Nacional. Ou seja, além de, por sua conta, violar o STF a Separação de Poderes, ainda determina que outro órgão também venha a violar, no caso, o CNJ. Estamos diante do que poderíamos chamar de uma “Violação Primária” da Separação de Poderes (diretamente pelo STF) e de uma subsequente “Violação Secundária” da mesma regra (derivadamente ou em perspectiva pelo CNJ)!
Mas, não havendo nada a fazer a respeito, deixemos de lado mais esse vilipêndio à Constituição.
Em resumo, o que o STF faz é criar funções anômalas para as Polícias, MP e Judiciário, que passarão a tratar de questões administrativas de posse de drogas para consumo próprio em processos administrativos – disciplinares, aplicando as mesmas regras hoje vigentes de acordo com as Leis 11.343/06 e 9.099/95.
Pode-se dizer, então, que o procedimento não se modifica, apenas se convola de criminal em administrativo, não gerando qualquer efeito penal. Isso também é bastante relativo porque o artigo 28 da Lei de Drogas, conforme já visto, não tinha repercussões propriamente penais, não sendo previstas penas privativas de liberdade e não constando para fins de reincidência ou maus antecedentes.
Os procedimentos de apreensão, guarda e destruição de drogas não se alteram. Também, como já visto, não se prescinde de exame toxicológico e o infrator pode perfeitamente ser levado à Delegacia porque será a Autoridade de Polícia Judiciária que irá, num primeiro momento, deliberar pela posse para consumo ou tráfico, mesmo sendo a quantidade igual ou inferior a 40 gramas, já que há outros fatores a serem analisados nos termos do artigo 28, § 2º., da Lei de Drogas e a presunção de posse para uso é relativa (“juris tantum”) (Teses 5 e 6 do STF).
Não obstante vários outros problemas seguem sem solução:
O Delegado de Polícia elaborará Termo Circunstanciado e encaminhará ao Juizado Especial Criminal. Até aí tudo bem. Aberta vista ao Ministério Público, o que ele deve fazer?
Sempre pedir arquivamento porque não há ilícito penal? E depois disso? Encaminha ao Juízo para aplicação das sanções administrativas? Mas sanções, ainda que administrativas, podem ser aplicadas sem uma imputação acusatória, sem ampla defesa, contraditório, enfim, devido processo legal? O Juiz fará, por si mesmo, sem o Ministério Público, proposta de Transação Penal? E se não couber transação? Condenações criminais anteriores continuam impedindo a transação? Pode haver transação se o caso já foi arquivado por atipicidade penal? Pode-se, enfim, sequer falar em “Transação Penal” se não há ilícito penal, mas apenas administrativo? O STF criou então uma espécie de “Transação Administrativa Anômala”?
A nosso ver, as funções anômalas atribuídas “ad baculum” às Polícias, MP e Judiciário, implicam em manter o procedimento sem nenhuma alteração, na dicção expressa da Tese 3 do STF, “segundo a sistemática atual”.
A Polícia Militar apresenta o caso à Autoridade de Polícia Judiciária (Delegado de Polícia). Formado o convencimento fundamentado de que se trata de posse para consumo e não tráfico, elabora-se o Termo Circunstanciado, apreende-se a droga, faz-se o exame preliminar e requisita-se o toxicológico definitivo, encaminhando o caso ao Juizado Especial Criminal. Ali, aberta vista ao Ministério Público, este deve avaliar a possibilidade de arquivamento, não por atipicidade penal, mas administrativa (v.g. o laudo toxicológico aponta que não se trata de droga). A atipicidade penal não é, neste caso, motivo para arquivamento, pois o MP estará tratando, anomalamente, de ilícito administrativo. Não sendo caso de arquivamento, o MP requer audiência preliminar para proposta de transação penal (ou “Transação Administrativa Anômala”), se for o caso. Não cabendo transação (v.g. autor do fato com condenação criminal) ou não aceitando o autor a proposta, deve haver a “Denúncia”, a qual será uma peça anômala, no exercício de função anômala pelo Ministério Público. Na verdade, a “Denúncia” nesses casos equivalerá a uma espécie de Portaria acusatória de procedimento administrativo – disciplinar. O processo, que não será mais criminal, mas administrativo, será presidido pelo Juiz dos Juizados Especiais Criminais, seguindo as regras da Lei 9.099/95 e da Lei 11.343/06. Os recursos continuam sendo os previstos na lei processual penal, mas que terão natureza administrativa, estendendo as funções anômalas aos Tribunais. Tudo isso pode parecer monstruoso, sim, pelo simples motivo de que é realmente monstruoso. Mas, ainda assim, é a melhor solução, em respeito ao devido processo legal administrativo.
A decisão do STF sob comento ocasiona uma série que parece interminável de problemas. Com razão preveem Leitão e Caldart dificuldades para legitimação de entrada em domicílio nos casos de flagrância de posse de drogas:
Outro reflexo do Supremo Tribunal Federal (STF), ao insistir na tese do art. 28. da Lei de Drogas ser um ilícito administrativo, reflete na impossibilidade de futuras abordagens para o ingresso ao domicílio em caso de suspeita de drogas, uma vez que, tratando-se de uma clara hipótese de uso pessoal, não se verifica a prática de infração penal e, portanto, restaria afastada a excepcionalidade da violação domiciliar para fazer cessar a conduta criminosa nos casos de flagrante delito, disciplinada no inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal.
Como se vê, o r. decisum afeta diretamente o cenário para a atuação policial nos casos de traficância, criando mais um problema no complexo sistema de enfrentamento das drogas. 138
Parece-nos que nessas situações o ingresso poderá se dar com base na hipótese de estado flagrancial, vez que não é possível de plano discernir se há realmente mera posse para uso (ilícito administrativo) ou tráfico (ilícito penal). Presume-se a boa – fé do agente policial, movido por aparência de legalidade e causa provável para sua atuação.
A chamada “Teoria da Aparência”, originalmente moldada para o campo civil, não encontraria óbice em sua aplicação nessas circunstâncias.
Como aduz Kümpel:
O objetivo da teoria da aparência é transformar, para o sujeito de boa – fé, em algumas relações jurídicas, aquilo que se lhe apresentou, apenas de forma aparente, em vívida realidade jurídica, apenas na medida em que venha prestigiar a segurança jurídica e a boa fé das pessoas. 139
E conclui:
“Portanto, o valor não está na realidade como ela é, mas na realidade como pode ser julgada existente”. 140
As circunstâncias de uma busca realizada num contexto de drogas ilícitas com suspeita fundada de possibilidade de tráfico se adequa perfeitamente à conceituação dada por Álvaro Malheiros acerca do tema:
Poderíamos, reunindo esses elementos, tentar conceituar a aparência de direito como sendo uma situação de fato que manifesta como verdadeira uma situação jurídica não verdadeira, e que, por causa do erro escusável de quem, de boa fé, tomou o fenômeno real como manifestação de uma situação jurídica verdadeira, cria um direito subjetivo novo, mesmo à custa da própria realidade. 141
A doutrina da aparência vem sendo acatada pelos nossos Tribunais Superiores. Na página de notícias do Superior Tribunal de Justiça encontra-se o seguinte sobre o tema:
Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a teoria da aparência – que leva ao reconhecimento de efeitos jurídicos em uma situação que apenas parece real – pode ser aplicada em casos muito diversos: de relações de consumo a comunicações processuais, da solidariedade na responsabilidade civil à autorização para o ingresso da polícia em imóveis (grifo nosso). 142
Desde logo se vê a menção às situações de “ingresso pela polícia em imóveis”. Mais adiante, no corpo da notícia, são expostos diversos casos de aplicação da Teoria da Aparência, destacando-se, no que nos toca, um caso de busca e apreensão policial:
No julgamento do RMS 57.740, o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, observou que, embora a teoria da aparência tenha encontrado maior amplitude de aplicação no direito civil e no direito processual civil (particularmente em questões relativas ao consumidor), nada impede sua aplicação também na área penal.
Com esse entendimento, o ministro considerou válida a autorização de ingresso da polícia para cumprir mandado de busca e apreensão em uma empresa, dada por pessoa que já não fazia parte do quadro social da pessoa jurídica.
No caso analisado, a pessoa investigada informou que a sede da empresa se encontrava em local diverso do indicado e conduziu a polícia até lá, abrindo a porta com sua chave e fornecendo autorização por escrito para a busca.
"É de se reconhecer como válida, com base na teoria da aparência, a autorização expressa de realização de busca e apreensão em sede de empresa investigada, dada por pessoa que, embora tenha deixado de ser sócia formal da empresa desde 2013, continuou assinando documentação para os supostos certames fraudulentos", explicou o magistrado. 143
Não pode restar dúvida de que, “mutatis mutandis”, o entendimento acima exposto do STJ pode perfeitamente ser aplicado a um caso de busca em residência por provável estado flagrancial, não podendo o Policial descartar de plano o tráfico nem mesmo pela quantidade suposta de droga, já que este não é o único critério distintivo entre a mercancia ilícita e a posse para consumo.
Não obstante, certamente na prática essa situação indeterminada irá ocasionar a inibição da atuação policial, mesmo porque nunca vivemos uma realidade de insegurança jurídica tão gravosa como a da atualidade, de modo que o Policial, que já se acha abandonado no limbo entre o abuso de autoridade e a prevaricação, enfrentando a violência das ruas, ainda será constrangido por uma total falta de segurança para atuar. A atividade policial, que sempre foi árdua e desafiadora, torna-se algo a exigir um caráter sobre – humano temperado com as virtudes do heroísmo e da santidade do martírio.
Como já se disse, essa espécie de remendo apresentado pelo STF e a nossa tentativa de interpretação e aplicação é algo assustador. Não obstante, o mundo jurídico, diante de um problema, não se pode dobrar como outras ciências. O Direito tem sempre que dar uma resposta.
Uma diferença, portanto, deve ser bastante destacada entre o mundo jurídico e as demais ciências, bem como a própria filosofia. No âmbito jurídico não há espaço para a indecisão, para o “non liquet”.
Falam os anglo – saxões nos chamados “hard cases”, ou seja, “casos difíceis”, para os quais não há precedentes ou, em nossa versão, não há uma solução exata, preformatada na lei. Mais especificamente, onde não havia “hard case” algum, o Supremo Tribunal Federal criou, a seu talante, vários deles e deixou para que a sociedade e a comunidade jurídica resolvam.
Mas o Direito é uma ciência prática e não admite a falta de soluções. É necessária sempre uma resposta, ainda que não seja a mais adequada. O mundo jurídico exige respostas e não pode se contentar com o “non liquet”.
Vejamos o que diz Del Vecchio sobre isso:
Nenhum argumento é tão adequado para mostrar a natureza eminentemente prática do direito e sua plena e perfeita aderência à vida, como o seguinte: não há relação alguma entre os homens, não há controvérsia possível, por mais complicada e imprevista que seja, que não admita e exija uma solução jurídica certa. As dúvidas e incertezas podem persistir durante largo tempo no campo teórico. Todos os ramos do saber e mesmo a jurisprudência como ciência teórica, oferecem exemplos de questões debatidas durante séculos, e apesar disso não se admite que sejam insolúveis no dia a dia forense. A pergunta sobre onde está o direito? Qual o limite do meu direito e do direito do outro? Deve em todo caso concreto ser respondida. Essa resposta, sem dúvida, não é infalível, mas é praticamente definitiva. 144
E segue em nota de rodapé afirmando que isso não é fruto de uma suposta “megalomania jurídica” advogada por Kantorowicz:
Se o biólogo, o filólogo, o historiador confessam não haver resolvido todos os problemas que suas respectivas ciências apresentam, isso não se deve a que sejam mais modestos que o jurista (como aponta KANTOROWICZ), senão à circunstância de que os limites das dúvidas do saber teórico não suspendem o curso da vida. No entanto, ao contrário, quando se trata da Ciência Jurídica, que regula as ações humanas, a ciência se confunde de certo modo com o curso necessariamente contínuo de tais ações e não pode, por conseguinte, deixar de acompanhá-las com suas decisões, que têm unicamente um valor prático. Por isso, se é certo que também a ciência jurídica tem problemas que no campo teórico comportam discussões seculares, podendo ser debatidas ‘ad infinitum’, todavia, em toda nova controvérsia, ainda que se abarque questões cientificamente obscuras, há que lograr-se sempre uma sentença praticamente definitiva. 145
Enfim, a decisão do STF e seu exercício descontrolado de poder são fatos incontornáveis. Nesse quadro, os atores do mundo jurídico são obrigados a agir e solucionar, ainda que precariamente, os problemas que vão surgindo.
4.18. É POSSÍVEL APLICAR A MEDIDA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE AOS CASOS DE POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO, APÓS A DECISÃO DO STF?
Para responder a essa indagação é preciso atentar para a redação da Tese 1 do STF em sua “Informação à Sociedade”:
Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III) (grifo nosso).
É cristalina a observação de que a decisão do STF reduz os preceitos secundários da norma do artigo 28 da Lei de Drogas às penalidades de “advertência” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”, fazendo referência somente aos incisos I e III do artigo 28 do mesmo diploma. O inciso II não é mencionado, afastando, portanto, a possibilidade de sanção com “prestação de serviços à comunidade”. Certamente essa medida foi tomada no “decisum” do STF, tendo em vista a convolação da conduta de posse de drogas para consumo em ilícito administrativo, já que a pena de prestação de serviços à comunidade normalmente tem caráter criminal, embora geralmente alternativo ou substitutivo (inteligência do artigo 43, IV, CP).
Capez é assertivo sobre a questão:
“Foi cancelada, (...), a sanção do inciso II do referido artigo 28, que era a prestação de serviços à comunidade”. 146
Certamente esse é o único aspecto em que, na prática e realmente, a decisão do STF beneficia o imputado por posse de drogas e muda o cenário para além do simbolismo ideológico, justificando efetivamente a sua retroação como “lex mitior”. Não cabe mais a aplicação da penalidade mais gravosa que era prevista nos preceitos secundários do artigo 28 da Lei 11.343/06.