4. Anteprojeto de lei para revisão e atualização do código civil
De acordo com o parecer da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e da legislação correlata, o objetivo principal do anteprojeto é versar as questões contemporâneas não promulgadas pelo atual código civil.
Nota-se que a ideia de atualização está para o atendimento das inovações originadas no decorrer dos mais de vinte anos do código civil de 2002, de modo a inserir dispositivos mais adequados aos casos fáticos, como a cessão temporária de útero, que até então não encontra respaldo jurídico.
Em justificação, a subcomissão responsável, especificamente relacionada à parte geral da lei, corrobora com o fato do direito privado ser “(...) guiado pela Constituição e pelos direitos humanos, que têm aplicação imediata a todas as relações. A constitucionalização do direito civil, cada vez mais estruturada pela doutrina e jurisprudência, não é necessariamente acompanhada pelo ordenamento civil” (BRASIL, 2024).
Apropriadamente, exterioriza os passos lentos do ordenamento civil frente à veracidade social, o que não é permissível já que guiado por princípios e direitos basilares em prol do cidadão e de seus direitos humanos, consubstanciado em importantes dispositivos, especialmente, na mantedora das demais normas, a Constituição da República Federativa.
No âmbito de Direito de Família, a intenção é relativa à desburocratização da vida dos brasileiros, logo, havendo como destinatária a sociedade brasileira, os quais julgam clamar “(...) por uma indispensável - e já tardia - atualização das normas de Direitos de Família” (BRASIL, 2024).
A subcomissão de Direito de Família informa que,
o trabalho foi resultado das pesquisas feitas pelos membros da Comissão perante a sociedade civil, a comunidade jurídica, a jurisprudência, os enunciados das Jornadas promovidas pelo Conselho da Justiça Federal e as experiências legislativas de outros países, tudo com a preocupação de atualizar o Código Civil brasileiro às transformações sociais recentes (BRASIL, 2024).
Evidente, mais uma vez, que as mudanças foram baseadas nas transformações da sociedade, justificativa plausível para cada parte do código civil. Embora algumas mudanças sejam negativas, o que não é um assunto do texto, a legalização da maternidade por substituição, interligada ao Direito de Família, é um passo importante.
4.1. A legalização da “barriga de aluguel” pelo novo Código Civil
Para atender à significativa da reprodução humana assistida, a técnica contar somente com o valor ético do Conselho Federal de Medicina não é o suficiente. Mesmo que o Conselho já estabeleça alguns requisitos básicos, como idade, forma procedimental, gratuidade, entre outros, as formalidades para valor legal são inexistentes.
Não deixando a técnica de ser realizada devido ao vácuo jurídico, a utilização da má-fé, por tal lacuna, é cada vez mais propicia por parte da cessionária, um exemplo, seria o afastamento por longo período, o que pode acarretar um vínculo afetivo entre a cessionária e a criança, obstando o cumprimento pós-procedimento, mesmo havendo vínculo sanguíneo com os autores da cessão temporária de útero, como a inseminação homóloga.
Embora o fator de consanguinidade seja de relevância, o que tende a prevalecer é o melhor interesse da criança, que, pela afetividade, beneficiaria, conjuntamente, a “mãe” substituta.
Nesse percurso, parece melhor a decisão de regulamentação da maternidade por substituição, demonstrando, legalmente, a melhor forma de prosseguir o procedimento, antes, durante e após.
Pela via legislativa, é possível garantir a guarda do recém-nascido aos autores da implantação, com a simples formalização de documento hábil levado a registro civil, rechaçando conflito judicial nesse sentido.
Grosso modo, a existência da norma reguladora é medida inescusável para estabelecer diretrizes para quem opta realizar o sonho maternal e paternal pela cessão temporária uterina. Tal escolha, como bem diz, é uma escolha, no entanto, subjetiva, assim como quem decide por outras vias, como a adoção. Uma escolha que também precisa de segurança, não somente procedimental, mas também jurídica.
Neste itinerário, depois de uma longa espera, entre as inovações do código civil, este tem por finalidade sanar a omissão em comento. Dentre tantas catástrofes tragas no anteprojeto que busca atualizar o código, ao menos a regulamentação da cessão temporária de útero soa como um acerto.
Em primeiro momento, dentro do capítulo II, denominado “Das Pessoas na Família”, a cessão temporária de útero passaria a ter reconhecimento legal, ao considerar o nascimento por cessão uma vinculação de parentesco natural.
Em seção específica, a saber, seção III, titulada “Da Cessão Temporária de Útero”, a técnica reprodutiva ganharia tratamento próprio, sendo permitida pela ineficácia natural gravídica ou contraindicação médica.
Ao objetivar a regulamentação da maternidade por substituição, o “novo código civil” deixa de legislar sobre diversos pontos essenciais, mas permanecem algumas questões abordadas na baila.
A não lucratividade com o feito é abordada no anteprojeto, assim como a preferência da linha de parentesco, o que chamam de projeto parental. Em reforma, quanto às formalidades, a cessão temporária de útero haveria de ser documentada, em modalidade escrita, em documento público ou particular, antes mesmo do procedimento implantacional.
Como prevenção às lides, sobre principalmente a maternidade, o documento atribui o vínculo de filiação como um ato obrigatório. Segundo o anteprojeto, “(...) o registro de nascimento da criança nascida em gestação de substituição será levado a efeito em nome dos autores do projeto parental, assim reconhecidos pelo oficial do Registro Civil” (BRASIL, 2024).
Ainda, o código civil passaria a prever a DNV, o que os legisladores entendem como Declaração de Nascido Vivo, como um dos documentos hábeis ao registro civil. Além deste, o termo de consentimento firmado na clínica responsável pela implantação.
Quanto ao termo de consentimento informado, “(...) a assinatura será precedida de todas as informações necessárias para propiciar o esclarecimento indispensável de modo a garantir a liberdade de escolha e adesão ao tratamento e às técnicas indicadas” (BRASIL, 2024).
Em relação às “(...) informações quanto aos riscos conhecidos do procedimento escolhido serão fornecidas por escrito, juntamente com implicações suas éticas, sociais e jurídicas” (BRASIL, 2024).
Para mais,
(...) no termo de consentimento deve, ainda, constar o destino a ser dado ao material genético criopreservado em caso de rompimento da sociedade conjugal ou convivencial, de doença grave ou de falecimento de um ou de ambos os autores do projeto parental, bem como em caso de desistência do tratamento proposto (BRASIL, 2024).
Nesse caso, “os embriões criopreservados poderão ser destinados à pesquisa ou entregues para outras pessoas que busquem tratamento e precisem de material genético de terceiros; e não poderão ser descartados” (BRASIL, 2024).
Preservando o casamento e a união estável,
(....) no termo de consentimento informado, se os pacientes forem casados ou viverem em união estável, é necessária a manifestação do cônjuge ou convivente, concordando expressamente com o procedimento indicado e com o uso ou não de material genético de doador (BRASIL, 2024).
Enaltecendo a filiação socioafetiva, “(...) em caso de vício de consentimento quanto ao uso de qualquer uma das técnicas de reprodução assistida heteróloga, será admitida ação negatória de parentalidade, mas subsistirá a relação parental se comprovada a socioafetividade” (BRASIL, 2024).
Vale acentuar que o ordenamento jurídico condena a utilização das técnicas de reprodução como meio cujo fim é a criação de embriões geneticamente modificados, escolha de sexo, raça e investigação científica de modo a coisificar.
Foi destacada em momento oportuno a gratuidade do feito, o qual deve ser prestado de forma solidária pela cessionária, desacolhendo a comercialização. Portanto, a denominação barriga de aluguel não é a mais conveniente, por isso, a palavra aluguel esteve sempre entre aspas no decorrer do trabalho.
Nesses termos, a nomenclatura mais apresentável está para barriga solidária, já que aluguel pressupõe pagamento. Falando em barriga solidária, como visto, a lei predispõe preferência a uma cessionária parental, mas não é uma obrigação, diferentemente do recomendado pelo Conselho Federal de Medicina.
Pelo expresso no contexto do artigo, através das possibilidades jurídicas da barriga solidária, mais cedo ou mais tarde os tribunais enfrentarão, cada vez em maior número, os conflitos gerados pela falta de regras legais para a realização da técnica. Pautando meramente na analogia, nos costumes e princípios norteadores do Direito, a falta de previsão legal é capaz de ferir a razoabilidade do processo, tornando a previsão normativa uma medida indispensável.
Com o fulcro jurídico, de jeito a manejar os rumos da barriga solidária, como o que se pode ou não fazer, é um passo para maior confiança e garantia ao fim do procedimento. Mesmo que não restaram claras outras questões importantes, como sanções administrativas e penais, a simples regularização dos atos civis, dentre estes, a filiação da criança nascida, afasta a maior preocupação judicial da prática, que é justamente a judicialização de casos de maternidade por substituição. Em arremate, ao menos nessa questão, frisa-se a oportuna marcha dos legisladores.
5. Conclusão
O presente trabalho buscou elencar informações em relação à técnica de cessão temporária de útero, também denominada como maternidade por substituição ou, popularmente, a chamada “barriga de aluguel”.
Para relatar o desenvolvimento da técnica e a sua necessidade humana, o artigo contou com um simplório contexto do que levou ao surgimento das técnicas de concepção.
A saber, a cessão temporária uterina, embora haja sua previsão ética por resolução do Conselho Federal de Medicina, ainda não há força de lei, assim, o artigo abordou especificamente sobre a cessão temporária de útero no ordenamento jurídico, como forma de demonstrar a essencialidade de sua normatização.
Considerando a falta de norma regulamentadora da barriga solidária e a expectativa de previsão legal com o advento do novo Código Civil de 2024, falar sobre o anteprojeto, cuja finalidade está na atualização da lei conforme a realidade social, foi imprescindível.
A legalização da maternidade por substituição é um evento necessário para o direito de família e para as famílias, de modo a oportunizar a perpetuação da vida e a continuação da linha descendente.
Com o reconhecimento jurídico, os casos de cessão temporária de útero deixam de pautar meramente na analogia, nos costumes e princípios norteadores do direito, de jeito que esses tendem a complementar.
Em síntese, a destacar, a simples regularização dos atos civis, dentre estes, a filiação da criança nascida, afasta a maior preocupação judicial da prática, que é justamente a judicialização de casos de maternidade por substituição.
Referências Bibliográficas
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CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM n. 2.121/2015. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida – sempre em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância aos princípios éticos e bioéticos que ajudarão a trazer a maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos – tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros e revogando a Resolução CFM nº 2.013/2013, publicada no D.O.U. de 9 de maio de 2013, Seção I, p. 119. Disponível em: <https://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2015/2121_2015.pdf>. Acesso em: 17 out. 17.
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