Certo e brilhante confrade dizia-me ontem que ‘futebol é a bola’. Não há juízo mais inexato, mais utópico, mais irrealístico. O colega esvazia o futebol como um pneu, e repito: retira do futebol tudo o que ele tem de misterioso e de patético. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural. Eu diria ao ilustre confrade ainda o seguinte: - em futebol, o pior cego é o que só vê a bola (Nelson Rodrigues, 1963).
1 – Introdução
A Constituição Federal estatui em seu artigo 5º, inciso XXVIII, "a", o seguinte: "São assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas".
Ao assegurar a proteção à participação individual em obras coletivas, a Carta Republicana consagra o direito de arena, sem qualquer restrição, remetendo à legislação infraconstitucional a sua regulamentação. No pertinente aos atletas profissionais de futebol, a norma de regência é a Lei nº 9.615/98, que, em seu artigo 42, define o direito de arena, in verbis:
Art. 42: Às entidades de prática desportiva pertence o direito de negociar, autorizar e proibir a fixação, a transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo ou eventos desportivos de que participem.
§ 1º: Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço total da autorização, como mínimo, será distribuído, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo ou evento. (grifo nosso)
§ 2º: O disposto neste artigo não se aplica a flagrantes de espetáculo ou evento desportivo para fins, exclusivamente jornalísticos ou educativos, cuja duração, no conjunto, não exceda três por cento do total do tempo previsto para o espetáculo.
Com base no texto legal, doutrina e jurisprudência, tenciono desenvolver linha de raciocínio lógico para ao final concluir sobre a natureza jurídica de tal instituto.
Este artigo não tem, absolutamente, a pretensão de esgotar a matéria abordada, mas, apenas, constituir-se em singela colaboração ao debate que se vem travando acerca da natureza jurídica do direito de arena, a partir da vigência da Lei nº 9.615/98, também denominada Lei Pelé.
2 – Conceito
Barros (2003, p. 260), em sua consagrada obra "As Relações de Trabalho no Espetáculo", esposa o seguinte entendimento sobre o direito de arena:
Em conseqüência, a exploração econômica do esporte modificou sobremaneira as relações entre os protagonistas do espetáculo desportista e os meios audiovisuais. O ‘desportista profissional’ é o ator do espetáculo e sua imagem é essencial e inevitável. Surge em função dessa atuação o direito de o desportista participar do preço, da autorização, da fixação, transmissão ou retransmissão do espetáculo esportivo público com entrada paga, ao qual se denomina direito de arena.
O autor prossegue afirmando:
Como vimos, o direito de arena é considerado pela doutrina um ‘direito conexo’, ‘vizinho’ dos direitos autorais e é ligado também ao direito à imagem do atleta. Ele é reconhecido aos desportistas e lhes assegura uma ‘regalia pelas transmissões radiofônicas e/ou televisivas de suas atuações públicas sobre a base da originalidade e da criatividade de suas destrezas pessoais, que não são meras informações periódicas’ (BARROS, 2003, p. 260).
Antonio Chaves, apud Santiago (2007), esclarece ser o direito de arena a "prerrogativa que compete ao esportista de impedir que terceiros venham, sem autorização, divulgar tomadas de sua imagem ao participar de competição, ressalvados os casos expressamente previstos em lei".
Ainda no mesmo trabalho, Santiago (2007) colaciona o entendimento de José de Oliveira Ascensão, que assevera ser este o "direito de autorizar ou proibir a fixação, transmissão ou retransmissão, por quaisquer meios ou processos, de espetáculo desportivo público, com entrada paga".
3 - Natureza Jurídica
Quanto à natureza jurídica, doutrina e jurisprudência têm encontrado razoável dificuldade em definir exatamente o instituto, se de natureza civil ou trabalhista. Zainaghi (2004, p. 36), em seu livro "Nova Legislação Desportiva – aspectos trabalhistas", assevera que "o valor pago como direito de arena tem natureza jurídica remuneratória, uma vez sua similitude com as gorjetas, já que é pago por terceiros".
Santiago (2007), em artigo mencionado anteriormente, denominado Direito de Arena, tem opinião contrária, ao afirmar:
(...) embora o direito de arena não se confunda com o direito à imagem, do qual o atleta é titular, o direito de arena envolve a divulgação da imagem do atleta, que é protegida constitucionalmente como direito fundamental e civilmente como direito da personalidade. A participação do atleta no direito de arena decorre, então, de um direito da personalidade, embora o titular do direito de arena seja a entidade esportiva e exista polêmica sobre a possibilidade de existirem direitos da personalidade para as pessoas jurídicas.
No ano de 2006, o Ministério do Esporte lançou a Cartilha de Padronização de Práticas Contábeis para os clubes de futebol profissional, com o objetivo de uniformizar as técnicas de contabilidade utilizadas pelas entidades desportivas em virtude da alteração da legislação. Nessa oportunidade, publicou pareceres relativamente a diversos temas, merecendo de nossa parte especial destaque o definido quanto ao direito de arena, item 3.6.1:
A Comissão entende ser evidente que a partir da legislação em vigor, os direitos de arena pertencem aos clubes e, portanto, são de natureza civil. O próprio Sindicato dos Atletas, quando ajuíza uma ação pleiteando esse direito em favor dos seus associados o faz na Justiça Comum Cível e não na especializada Trabalhista. Em suma, se pode concluir que o Direito de Arena pertence aos clubes e não possui natureza trabalhista.
Quanto ao critério de contabilização, a quota de transmissão deverá ser integralmente reconhecida como receita operacional e o direito de arena como custo operacional.
Vale ressaltar que tal cartilha constitui importante manual de orientação contábil às entidades de prática desportiva.
No tocante à jurisprudência, da mesma forma, tem vivenciado ampla divergência na conceituação de sua natureza jurídica. Colham-se como exemplos:
TST - RR - 1210/2004-025-03-00 - Relator – GMABL - DJ - 16/03/2007 - DIREITO DE ARENA NATUREZA JURÍDICA. I - O direito de arena não se confunde com o direito à imagem. II - Com efeito, o direito à imagem é assegurado constitucionalmente (art. 5º, incisos V, X e XXVIII), é personalíssimo, imprescritível, oponível erga omnes e indisponível. O Direito de Arena está previsto no artigo 42 da Lei 9.615/98, o qual estabelece a titularidade da entidade de prática desportiva. III Por determinação legal, vinte por cento do preço total da autorização deve ser distribuído aos atletas profissionais que participarem do evento esportivo. IV - Assim sendo, não se trata de contrato individual para autorização da utilização da imagem do atleta, este sim de natureza civil, mas de decorrência do contrato de trabalho firmado com o clube. Ou seja, o clube por determinação legal paga aos seus atletas participantes um percentual do preço estipulado para a transmissão do evento esportivo. Daí vir à doutrina e a jurisprudência majoritária nacional comparando o direito de arena à gorjeta, reconhecendo-lhe a natureza remuneratória. V- Recurso conhecido e provido.
TST - AIRR - 940/2002-004-03-40 - DJ - 18/02/2005 - AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. 1. DO DIREITO DE ARENA. NATUREZA JURÍDICA. INTEGRAÇÃO AO SALÁRIO. Sendo o direito de arena resultante da participação dos atletas profissionais sobre o valor negociado pela entidade desportiva com órgãos responsáveis pela transmissão e retransmissão de imagens, o valor percebido, vale dizer, condicionado à participação no evento, resulta da contraprestação por este ato, decorrente da relação empregatícia, possuindo, então, natureza jurídica de salário, nos termos dos arts. 457 da CLT c/c 42, § 1º, da Lei n. 9.615/98. Inexistem ofensas às normas dos arts. 5º, II e XXVIII, da CF/88 e 214 do Decreto n. 3.048/99. Agravo improvido. 2. MULTA DO ART. 467 DA CLT.
Em sentido contrário, a 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região:
SALÁRIO. JOGADOR DE FUTEBOL. DIREITO DE ARENA. OUTROS GANHOS PELO USO DA IMAGEM POR TERCEIROS. NATUREZA JURÍDICA. VALORES ALEATÓRIOS E VARIADOS. PREFIXAÇÃO EM CONTRATO DE TRABALHO. FRAUDE. EFEITOS. O chamado direito de arena, valor que é pago por terceiros, detentores dos meios de comunicação, aos atletas, como remuneração pela transmissão dos jogos dos quais eles são os principais atores e os catalisadores da motivação popular para angariar audiências, não constitui salário, direto ou indireto, no sentido técnico do instituto, sobre quaisquer de suas modalidades, eis que não se destina, nem mesmo remota ou indiretamente, ao custeio do trabalho prestado ao clube contratante, nem tem relação alguma com a execução do contrato de trabalho. Tratando-se de pagamento originário, pelos compradores dos direitos dos espetáculos, aos seus astros, sob a forma de negócios comerciais distintos e paralelos aos contratos de trabalho. Da mesma forma os demais direitos conexos pagos pelo uso do nome ou imagem do atleta profissional em campanhas publicitárias, institucionais e licenciamento de produtos e serviços diversos. Que se referem sempre à pessoa do jogador, nos seus atributos intrínsecos da personalidade, não se vinculando ao contrato de trabalho, nem se restringindo ao tempo de duração dele, pois como apanágios do ser humano acompanham-no do berço ao túmulo e deitam memória no tempo posterior ao da duração da sua vida. O que está conforme a moderna perspectiva de que tudo tem valor comercial para uma gama tão infindável quanto diversificada de negócios mercantis que se valem de toda sorte de apelos ao consumidor para viabilizar mercados. Ainda que recebidos em bloco pelo clube empregador e distribuído por este a cada atleta, segundo a quantidade que lhe caiba, não perde a natureza de ganho extra-salarial. Não caracterizando, pois, fraude ao salário o fato de serem pagos fora da folha de pagamento e até mesmo por intermédio de cômodas empresas constituídas para gerenciar tais atividades. Não servindo de base para cálculo dos demais direitos trabalhistas que se fundam no salário contratado. Haverá fraude, no entanto, mesmo com a conivência do atleta empregado, quando o empregador, vendo na hipótese uma atraente possibilidade de deslocar para esta rubrica uma parte do salário combinado, para safar-se dos encargos sociais e tributários, pré-contrata com ele uma quantia fixa, sempre igual, mensal, a este título. Pois os direitos de arena e demais ganhos pelo uso da imagem e nome que não configuram salário são aqueles específicos e inequívocos. E que dependem, por isso, de negociação concreta e dos valores para tanto combinados. Caso em que, verificada a fraude, manda-se fazer a exata separação, por apuração em liquidação de sentença, do que, no valor lançado nesta rubrica, seja efetivamente pagamento dos direitos conexos do atleta e salário camuflado, para que sobre esta segunda parte calculem-se os demais direitos trabalhistas. Recurso parcialmente provido (Proc. nº 16695/2001 – RO – Partes: Edson Luiz da Silva e Clube Atlético Mineiro).
Ainda sobre o mesmo tema, o Superior Tribunal de Justiça assim se pronunciou no Agravo Regimental nº 141987 / SP, em julgamento realizado em 15/12/97:
DIREITO DE ARENA. LIMITAÇÃO. DIREITO DE IMAGEM. DIVERGENCIA JURISPRUDENCIAL NÃO CONFIGURADA.
I - o direito de arena é uma exceção ao direito de imagem, e deve ser interpretado restritivamente. A utilização com intuito comercial da imagem do atleta fora do contexto do evento esportivo não esta por ele autorizado. Dever de indenizar que se impõe.
Como se verifica, tanto a doutrina quanto a jurisprudência não são uníssonas em explicar a natureza jurídica do direito de arena. De um lado e de outro, perfilam-se eminentes juristas com argumentos que, apesar de divergentes, são capazes de justificar amplamente o seu posicionamento.
Um outro ponto importante, ainda que raramente abordado, remonta à questão dos desportistas "convocados" para a seleção brasileira de futebol.
Ao reunir a seleção profissional, a Confederação Brasileira de Futebol - CBF transmuda-se, ainda que momentaneamente, de entidade de administração para entidade de prática desportiva, sujeitando-se nesse particular aos ditames do artigo 41, da Lei Pelé, que prescreve:
Art. 41. A participação de atletas profissionais em seleções será estabelecida na forma como acordarem a entidade de administração convocante e a entidade de prática desportiva cedente.
§ 1º A entidade convocadora indenizará a cedente dos encargos previstos no contrato de trabalho, pelo período em que durar a convocação do atleta, sem prejuízo de eventuais ajustes celebrados entre este e a entidade convocadora.
Infere-se que, em caso de convocação, o atleta continua a ser remunerado pelo clube de origem, cabendo à CBF indenizar a entidade desportiva pelo período em que este ficar a sua disposição. Não há interrupção do contrato de trabalho entre o profissional e o clube e, por conseguinte, também não há vínculo trabalhista entre o mesmo atleta e a Confederação convocadora.
Nada obstante, a CBF tem o direito de negociar, autorizar ou proibir a fixação, a transmissão ou retransmissão de imagem dos jogos da seleção. Nesses casos, os atletas "convocados" e que venham a participar do evento esportivo fazem jus ao direito de arena.
Como o artigo 42, § 1º, da Lei 9.615/98 determina que a distribuição dessa verba seja feita diretamente aos atletas participantes e, em não havendo, nesta hipótese, qualquer relação do profissional com o seu clube de origem, cumpre à CBF distribuir tais recursos diretamente aos interessados, não se aplicando a norma do § 1º do artigo 41 da mencionada legislação.
4 - Conclusão
Alinho-me entre aqueles que entendem ter natureza civil a verba originária do direito de arena.
E por que seguir em tal linha de visada? Porque, a meu sentir, tal direito não decorre de contraprestação por serviços prestados à entidade de prática desportiva ou do contrato de trabalho, como querem alguns, muito menos por equiparação às gorjetas (por não incidir o conteúdo subjetivo da vontade), como querem outros. Deriva, isto sim, da obrigatoriedade do pagamento de valores aleatórios e não habituais oriundos da mera participação coletiva do atleta em espetáculo desportivo, se fixado, transmitido ou retransmitido.
Ademais, se tal verba tivesse natureza jurídica trabalhista, a hipótese da seleção brasileira de futebol ou o vínculo existente entre a CBF e o convocado consistiria em relação de trabalho ou, se assim não o fosse, teria de ser incluída no rol dos encargos previstos no contrato de trabalho entre o atleta e o clube, o que não ocorre.
Afastadas as possibilidades acima aventadas, forçoso deduzir estar o direito de arena revestido de natureza eminentemente civil, a inviabilizar sua repercussão sobre o FGTS, férias e 13º salário, ou outras verbas aqui não mencionadas, haja vista a impossibilidade de atribuir-se ao mesmo instituto natureza jurídica diversa, dependendo da circunstância.
Reforça esse entendimento a previsão contida na Lei Pelé ao mencionar expressamente que, à falta de acordo entre os clubes e os jogadores, o percentual a ser distribuído é de 20% (vinte por cento) sobre o preço negociado.
Ao fixar essa margem, deita por terra a tese da natureza remuneratória de tal dotação, pois a repercussão sobre as parcelas da remuneração, ainda que restrita ao FGTS, 13º salário e férias, ultrapassaria o valor fixado em lei, ou o acordado, elevando-se a patamares superiores, por exemplo, aos 20% (vinte por cento) legais.
Note-se que, se a lei tem por escopo ceder 20% (vinte por cento) da cota de transmissão de determinado evento aos profissionais participantes, a reverberação sobre verbas de natureza trabalhista, por óbvio, oneraria em demasia os já combalidos clubes, que teriam de transferir valores em porcentagem superior à fixada, em flagrante vulneração ao texto de regência e em total descompasso com as regras da boa exegese jurídica.
Na verdade, em não havendo previsão contratual, se a lei pré-fixa a porcentagem incidente sobre as cotas de transmissão arrecadadas pelos clubes de futebol a ser distribuída aos atletas participantes do evento desportivo, não pode o intérprete, sob a utilização de quaisquer artifícios, elevá-la a níveis superiores aos pré-fixados por absoluta falta de previsão legal. A mesma interpretação é aplicável em caso de expresso acordo entre as partes, clubes e atletas.
Impende, então, concluir, que o Direito de Arena encontra a sua exata expressão no § 1º, art. 42, da Lei 9.615/98, correspondendo à participação dos atletas sobre as cotas de comercialização de eventos desportivos pelas entidades de prática desportiva, através da fixação, transmissão ou retransmissão de imagens, em percentual previamente acordado, que pode ser inferior, igual ou superior aos 20% (vinte por cento) mencionados na legislação, caracterizando-se por sua natureza eminentemente civil.
BIBLIOGRAFIA
BARROS, Alice Monteiro de. As relações de trabalho no espetáculo. São Paulo: LTr, 2003.
BRASIL. Ministério do Esporte. Cartilha de Padronização de Práticas Contábeis. 2006.
RODRIGUES, Nelson. À Sombra das Chuteiras Imortais, São Paulo: Companhia das Letras, p.104. Crônica publicada originariamente no Globo de 18/11/1963.
SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Direito de arena. Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigosc/Mariana_arena.doc>. Acesso em: 10 ago. 2007.
ZAINAGHI, Domingos Sávio. Nova legislação desportiva – aspectos trabalhistas. 2. ed. São Paulo: LTr, 2004.