A violência doméstica, crime predominantemente oculto, ocorre dentro de um contexto específico, marcado por relações de poder desiguais. Nesse cenário, a palavra da vítima, muitas vezes fragilizada emocionalmente, pode ser a única prova direta do crime.
Em diversos casos, ainda que aconteça perante testemunhas oculares, estas se omitem, pois ainda persiste a ideia patriarcal de que se trata de “briga de marido e mulher”. Diante disso, é incontroverso que palavra da vítima ostenta fundamental importância e o depoimento de pessoas próximas, como familiares e amigos, desempenha um papel essencial ao corroborar o relato da vítima e fornecer um quadro mais amplo para a compreensão dos fatos.
Nesse contexto, testemunhas indiretas também têm especial relevo. Nas lições de Valéria Diez Scarance Fernandes1, “essas testemunhas podem trazer aos autos informações relevantes quanto ao comportamento do agressor, consumo de álcool e drogas, posse de armas de fogo, facas, comportamentos de controle, gritos de socorro, barulhos de briga, objetos quebrando, histórico de violência, pedidos de socorro, ferimentos frequentes ou danos para a saúde da vítima”.
Vale ressaltar que as pessoas que presenciam fatos posteriores ao crime não são testemunhas indiretas, ou seja, não são de “ouvir dizer”. São reconhecidas pelo STJ como testemunhas diretas de fatos posteriores ao crime e, portanto, absolutamente aptas a corroborarem o ocorrido. Vejamos:
[...]4. Reitero que os depoimentos das testemunhas - policiais e vizinha - não são de "ouvir dizer", como alega a defesa. O fato de não terem presenciado o fato principal não as qualifica como testemunhas indiretas, mas, sim, testemunhas diretas de fatos posteriores ao crime, aptas a corroborarem o ocorrido. Nesse sentido, os policiais relataram ter encontrado a vítima lesionada e ensanguentada, logo após o crime, tendo ela apontado o acusado como autor das lesões. Ainda, o policial, em juízo, afirmou ter visto sangue na residência em que coabitavam o réu e a ofendida. A vizinha, por sua vez, noticiou que a vítima foi à sua casa e pediu um pano para usar no caminho até a UPA. [...](STJ, no AREsp n. 2.478.173/DF, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 6/8/2024, DJe de 9/8/2024.)
O Código de Processo Penal dispõe que toda pessoa pode ser testemunha (art. 202). O art. 206. ressalva que não será deferido compromisso aos parentes do acusado, vejamos:
Art. 206. A testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor. Poderão, entretanto, recusar-se a fazê-lo o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias. (sem grifos no original)
Com redação inequívoca e categórica, a limitação definida pelo Código de Processo Penal se refere exclusivamente às pessoas com os vínculos especificados em relação ao acusado, inexistindo possibilidade de extensão às pessoas que possuam laços familiares com vítima.
Nesse sentido, o elucidativo entendimento do STJ: “Inexiste nulidade decorrente do depoimento testemunhal dos parentes da vítima, os quais têm o dever legal de dizer a verdade, de modo que, conforme o art. 206. do CPP, as exceções ao compromisso de dizer referem-se apenas àqueles que possuem grau de parentesco com o acusado" (AgRg no RHC n. 117.506/CE e AgRg no HC n. 685.211/PB, DJe de 15/8/2023.) 2
Diante disso, os parentes da vítima prestam o compromisso de dizer a verdade e são ouvidos como testemunhas, tendo especial relevo seu depoimento em crimes cometidos no âmbito da violência doméstica, uma vez que geralmente têm conhecimento direto do convívio familiar."
Em outros termos, os familiares da vítima, por estarem inseridos no núcleo doméstico, detêm conhecimento elevado sobre o convívio doméstico e, por isso, seus depoimentos são fundamentais para a comprovação dos fatos."
Não obstante, na hipótese de suspeita de parcialidade, a testemunha poderá ser contraditada, hipótese em que será ouvida como informante, com aplicação subsidiária do art. 457, §2º, do Código de Processo Civil que preconiza que, uma vez acolhida a contradita, o juiz dispensará a testemunha ou lhe tomará o depoimento como informante.
Referido dispositivo esclarece que a oitiva como informante é uma faculdade do juiz, a quem cabe a condução do processo, tendo poderes para indeferir as provas que entender inúteis e desnecessárias ao deslinde da controvérsia estabelecida nos autos.
Embora seja prerrogativa do juiz decidir se aceita ou não o depoimento de uma testemunha na qualidade de informante, a negativa de seu acolhimento pode, em certos casos, impedir que provas relevantes sejam produzidas, comprometendo a equidade do processo, o que, por conseguinte, gera nulidade.
De todo modo, o depoimento do informante em audiências relativas a vítimas de violência doméstica é uma ferramenta essencial para a obtenção de uma decisão justa e embasada, pois, em muitos casos, as vítimas podem enfrentar dificuldades para depor, seja por medo de retaliação, vergonha, ou por estarem emocionalmente abaladas. Nessas situações, o informante desempenha um papel fundamental – por ser uma pessoa próxima à ofendida - fornecendo informações complementares ao relato dela, que ajudam a corroborar a narrativa dos fatos e a contextualizar a situação de violência.
Ele pode, por exemplo, relatar comportamentos observados no agressor, mudanças no comportamento da vítima, revelar a dinâmica familiar, padrões de violência anteriores, e o impacto psicológico da violência na vida da vítima.
Esse tipo de depoimento é especialmente relevante quando a vítima se sente ameaçada ou intimidada, pois o informante pode servir como uma voz de reforço, trazendo à tona detalhes que a vítima, sozinha, poderia não conseguir expressar plenamente.
Com efeito, também nas situações em que há poucas provas materiais, ocorridas dentro do lar, sem a presença de testemunhas diretas, os depoimentos de pessoas próximas podem contribuir para a credibilidade do relato.
E mais, tais declarações também desempenham um papel fundamental na humanização do processo judicial por dar voz àqueles que convivem com a vítima e que testemunham as consequências da violência, reforçando a importância de protegê-las e ampará-las.
À luz do expendido, conclui-se que a palavra da vítima, nos crimes cometidos no contexto de violência doméstica, geralmente às escondidas, é essencial, sobretudo quando corroborada por outros elementos de prova, de modo que é imprescindível conferir eficácia social às normas processuais penais e, especialmente, valorizar os testemunhos de pessoas que mantiveram ligações com a ofendida.
Por conseguinte, além do depoimento da vítima, deve ser considerada prova tanto a testemunha que presenciou o ocorrido como aquela que teve ciência e narrou os fatos, sendo plenamente possível a utilização do depoimento da testemunha indireta e dos parentes e de pessoas próximas à vítima, que, em vários casos, assumem o papel de protagonismo probatório para a convicção do magistrado, auxiliando na apuração dos fatos, e também contribuindo para uma justiça mais sensível e efetiva.
BIBLIOGRAFIA
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Notas
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FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha: o processo no caminho da efetividade. 4. ed. São Paulo: JusPodvium, 2023, p. 416.
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No mesmo sentido: STJ, AgRg no AREsp 1594445-SP, RHC 100002-SP; e. “O artigo 202 do Código de Processo Penal prevê que "toda pessoa poderá ser testemunha", sendo que o artigo 208 do mesmo diploma normativo ressalva que "não se deferirá o compromisso a que alude o art. 203. aos doentes e deficientes mentais e aos menores de 14 (quatorze) anos, nem às pessoas a que se refere o art. 206". 2. Inexiste qualquer óbice à colheita do depoimento da mãe da vítima, que também atuou como assistente de acusação, cabendo ao magistrado aferir o valor probatório das declarações por ela prestadas. Doutrina. Precedentes”. (AgRg no RHC n. 118.384/MG, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 18/8/2020, DJe de 25/8/2020.