O problema da cumulação de esferas punitivas e o princípio do ne bis in idem no direito contemporâneo: Aproximação de um (novo) direito fundamental à unidade da pretensão punitiva no direito sancionador

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18/09/2024 às 15:03
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3. A QUESTÃO DO NE BIS IN IDEM EM TRATADOS INTERNACIONAIS E NO DIREITO COMPARADO

Atualmente, o fenômeno crescente de expansão da responsabilização de atores públicos e privados, a partir da multiplicação de órgãos estatais dotados e competências semelhantes ou análogas e da sobreposição de normas jurídicas que tutelam, em muitos casos, uma mesma circunstância fática e os mesmos bens jurídicos 34, além de provocar uma hipertrofia do sistema punitivo e a superposição de esferas de punição em detrimento das garantias fundamentais do cidadão contra o arbítrio (SILVEIRA e GOMES JR., 2014, p. 290), acabou reforçando o clima de insegurança quanto aos efeitos e força dos acordos de colaboração premiada e de leniência, especialmente no plano da repressão aos ilícitos contra a administração pública (TEIXEIRA, ESTELLITA e CAVALI, 2018).

Muito embora a doutrina administrativista venha assumindo que o direito administrativo no Estado contemporâneo deverá ser traduzido como um direito do administrado

inspirado na flexibilidade, na colaboração, na competição e, sobretudo, na confiança recíproca entre sociedade e Estado – consórcio de interesses, parceiros de relações abertas e associados no desenvolvimento – com a robustecida certeza de que a consensualidade desempenha papel tanto ou mais importante que a coerção no curso do progresso humano (MOREIRA NETO, 2014, p. 144).

A ampliação de poderes do Estado e a cultura repressiva no aparato burocrático do Estado abriram espaço para o direito administrativo sancionador e a consequente cumulação entre as esferas administrativa e penal, a exemplo da legislação em defesa do patrimônio material da Administração Pública.

Interessante mencionar neste ponto que a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992) e a Lei Anticorrupcao (Lei nº 12.846/2013) se submetem ao chamado regime jurídico de direito administrativo sancionador e, conforme anota Adriano Farias Puerari (2016, p. 98),

trazem à tona um grupo de modalidades sancionadoras administrativas que, pelo seu alto grau de lesividade, não se limitam à função de complementar os ilícitos penais, sobrepondo, talvez, a incidência de sanções em razão da proteção de interesses coletivos idênticos. 35

E essa questão tem se revelado um dado concreto, assumindo especial relevância e maior visibilidade na doutrina, dada a “estreita relação entre determinadas figuras delitivas e suas correspondentes infrações administrativas, bem como a conhecida fluidez entre os dois ordenamentos jurídicos” (SILVEIRA e GOMES JR., 2014, p. 293), circunstância que demanda uma análise dos tratados internacionais e da jurisprudência das Cortes Internacionais.

3.1 A JURISPRUDÊNCIA ESTADUNIDENSE

Nos Estados Unidos, a Quinta Emenda à Constituição prevê que nenhuma pessoa poderá ter a vida ou a integridade física colocada em risco por duas vezes em razão da mesma conduta, tratando-se de garantia que tem por objetivo a vedação do duplo risco (double jeopardy), postulado também reconhecido no direito brasileiro em precedentes do Supremo Tribunal Federal 36, consagrando a regra, que vem do direito romano, que veda o bis in idem.

Durante muito tempo, a Suprema Corte dos Estados Unidos 37 sustentou que a double jeopardy clause não impediria a punição do mesmo fato na esfera extrapenal (civil ou administrativo) e na esfera penal.

No entanto, a partir do Case of United States v. Halper, 490 U.S. 435. (1989), a Suprema Corte decidiu que, “dada a natureza ‘intrinsecamente pessoal’ da cláusula da proibição do duplo risco, sua violação ‘poderia ser verificada apenas pela avaliação das características das sanções efetivamente impostas sobre o indivíduo pela máquina do Estado” 38.

Na oportunidade, a Suprema Corte reconheceu que a aplicação da punição civil era desproporcional, mas alertou que a aplicação da double jeopardy clause para esses casos era extraordinária, isto é, somente seria aplicável em casos raros.

Tal entendimento, contudo, não foi mantido pela Suprema Corte quando do julgamento do Case of United States v. Ursery, 518 U.S. 267. (1996), no qual decidiu que os argumentos utilizados no precedente anterior somente se aplicariam a sanções pecuniárias, não incidindo, portanto, a outras medidas sancionatórias, como o confisco de caráter civil.

E no ano seguinte, a Suprema Corte julgou o Case of Hudson v. United States, 522 U.S. 93. (1997), o qual se tratava da aplicação de penalidades pecuniárias a três indivíduos pela agência de controle monetário (Office of the Comptroller of the Currency - OCC), órgão supervisor e fiscalizador dos bancos, por violação da regulação bancária federal, mediante a utilização de suas posições em dois bancos para obter empréstimos em favor de terceiros, além da imposição da pena de banimento de participarem de negócios com instituições financeiras sem autorização escrita da agência de controle monetário e de outros entes reguladores do mercado bancário, e da acusação criminal de conspiração, desvio de fundos bancários e declarações falsas perante instituição financeira.

No referido julgamento, a Suprema Corte ponderou sobre a necessidade de examinar, se, a legislação apontava, expressa ou implicitamente, a natureza civil ou criminal das sanções aplicadas, destacando que mesmo nos casos em que se trate de natureza civil poderá configurar, no caso concreto, sanção de caráter criminal, a partir das provas colhidas e da observância dos critérios já fixados no julgamento do Case of Kennedy v. Menoza Martinez, 372 U.S. (1989) 39.

Após essa análise, em sentido contrário ao entendimento acolhido no caso United States v. Halper, a Suprema Corte afirmou que a verificação da desproporcionalidade das sanções se relaciona com os princípios do devido processo legal (due process), da proteção isonômica (equal protection) e da proibição de multas civis excessivas (Oitava Emenda à Constituição), e não com a proibição do duplo risco, visto que a double jeopardy clause proíbe “o processamento do mesmo fato por duas vezes, de modo que não seria viável aguardar a imposição da sanção para verificar o cabimento de sua aplicação” (CAVALI, 2017, p. 206).

Além disso, a Corte deixou assentado o entendimento que a multa e a suspensão de exercício profissional não ostentam caráter punitivo, uma vez que possuem caráter preventivo geral e visam promover a estabilidade do setor bancário, sendo certo que tais objetivos são admitidos em ambas as esferas, penal e extrapenal, e não transformam as sanções em penas, para fins de impedimento do duplo risco, o que “prejudicaria gravemente a capacidade do governo de regulamentação eficaz das instituições financeiras” (CAVALI, 2017, p. 206-207).

Essa é a posição, como expõe Marcelo Costenaro Cavali (2017), que vem sendo reafirmada em diversos casos na jurisprudência americana, a exemplo dos julgados que dizem respeito ao duplo sancionamento por infrações ao mercado de capitais 40 nas esferas administrativa e penal e que não implicam ofensa à cláusula de proibição do duplo risco, ainda que decorram essencialmente da mesma conduta 41.

3.2 A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS E DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA

Na Europa, é o artigo 4º do Protocolo nº 7 à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais que prevê o direito a não ser penalmente julgado ou punido mais de uma vez pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infração pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado, cujo dispositivo aponta a impossibilidade de dupla sanção criminal, muito embora a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), a partir do Case of Engel et Autres v. Pays-Bas (Affaire n. 5100/71, n. 5101/71, n. 5102/71) (1976), decidiu que a qualificação adotada pelo legislador não é suficiente para definir a natureza jurídica de uma infração como penal, caso contrário os princípios fundamentais do direito a um julgamento justo (art. 6º da CEDH) e da legalidade (art. 7º da CEDH) restariam subordinados à vontade soberana dos Estados (CAVALI, 2017, p. 208).

Para tanto, no referido julgado, a Corte fixou três critérios para a realização desse exame à luz da Convenção e das leis dos Estados-membros, os quais ficaram conhecidos como ‘critérios Engel’ (Engel criteria)” (CAVALI, 2017, p. 208), sendo: (i) se a infração está inserida no direito penal, a qual se atribui peso relativo, (ii) a natureza da infração e (iii) o grau de severidade da pena.

Assim, com base nos critérios adotados, a Corte reforçou essa orientação nos casos subsequentes, identificando, por exemplo, no Case of Öztürk v. Allemagne (Requête n. 8544/79), ECHR, de 21 de fevereiro de 1984, a natureza de contraordenação da infração de trânsito no direito alemão e a relevância da distinção entre crime e contraordenação no processo de descriminalização do direito alemão, decidindo que, para os efeitos da Convenção, a infração deveria ser adjetivada como criminal, com base nos seguintes argumentos: “a) sua aplicação tem finalidade de dissuasão de futuras condutas no mesmo sentido; b) sua aplicação tem, também, caráter punitivo, o que é uma característica das sanções criminais; c) outros países continuam a punir esse tipo de conduta pelo direito penal; e d) a infração não está limitada a um círculo restrito de possíveis agentes, mas a todo e qualquer cidadão que incorrer na conduta descrita” (CAVALI, 2017, p. 209).

No ponto, a Corte asseverou que “a característica geral da regra e o propósito da penalidade, sendo tanto dissuasório como punitivo, é suficiente para demonstrar que a ofensa em questão era, nos termos do artigo 6º da Convenção, de natureza criminal” (CAVALI, 2017, p. 209).

A jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, a partir desse julgamento referente ao direito a um julgamento justo e ao princípio da legalidade, começou a aplicar esse entendimento à proibição do bis in idem, a exemplo do Case of Sergey Zolotukhin v. Russia (Application n. 14939/03), ECHR, de 10 de fevereiro de 2009 42, em que a Corte aplicou os ‘critérios Engel’, decidindo que a infração administrativa consistente em praticar atos de desordem de menor importância possui caráter criminal, uma vez que protege a dignidade humana e a ordem pública, mediante a imposição de pena privativa de liberdade máxima de 15 dias.

Na sequência, a Corte “passou a examinar quais são os critérios a serem utilizados para se definir se a infração pela qual se deu a primeira condenação pode ser considerada ‘a mesma’, para fins de aplicação da norma convencional que proíbe o bis in idem” (CAVALI, 2017, p. 211), destacando as três correntes adotadas para cada um dos casos examinados 43: (i) Case of Gradinger v. Austria (Application n. 15963/90), ECHR, de 23 de outubro de 1995, (ii) Case of Oliveira v. Switzerland (84/1997/868/1080), ECHR, de 30 de julho de 1998, (iii) Case of Fischer v. Austria (37950/97), ECHR, de 29 de maio de 2001.

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Nesse sentido, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, analisando tanto o alcance do Pacto de San José, quanto de seu congênere europeu, ressaltou a amplitude do primeiro, enfatizando que uma análise dos instrumentos internacionais que preveem o princípio do no bis in idem revela uma variedade de termos pelos quais ele é expressado.

Dessa forma, as decisões do TEDH têm afirmado que os instrumentos internacionais incorporam o princípio non bis in idem em uma ou outra forma, isto é, o artigo 4º do Protocolo nº 7 da Convenção Americana de Direitos Humanos (incorporada ao direito brasileiro pelo Decreto nº 678/1992), o artigo 14, § 7º do Pacto das Nações Unidas sobre os Direitos Civis e Políticos (incorporado ao direito brasileiro pelo Decreto nº 592/1992) e o artigo 50 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia referem-se à mesma infração, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos refere-se à mesma causa ("mesmos faits"), a Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen proíbe os processos judiciais pelos mesmos atos, e o Estatuto do Tribunal Penal Internacional (incorporado ao direito brasileiro pelo Decreto nº 4.388/2002) emprega o termo mesma conduta ('[mêmes] actes constitutifs') 44.

A respeito da diferença entre os termos utilizados pela legislação internacional – a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – e a vedação ao bis in idem, o TEDH decidiu que

[a] diferença entre os termos "mesmos fatos" ou "mesma causa" ("mesmos faits"), por um lado, e o termo "[mesma] infração" ("[mesmo] infração"), por outro, foi analisada pela Corte de Justiça da União Europeia e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, entendendo-se que a diferença entre os termos “mesmos fatos” de um lado, e do termo “mesma infração” de outro, era um importante elemento em prol da adoção de uma abordagem baseada estritamente na identidade de fatos materiais, tornando a classificação legal de tais fatos irrelevante. Com tal conclusão, as duas Cortes enfatizaram que tal abordagem favoreceria o indivíduo, o qual teria a certeza que, uma vez condenado, cumprido sua punição, ou absolvido, ele não teria mais que temer nenhum novo processo pelos mesmos fatos. [...] O Tribunal considera que o artigo 4º do Protocolo n.º 7 proíbe a acusação ou julgamento de uma segunda "infração" desde que ela surja de fatos idênticos ou que sejam ‘substancialmente’ os mesmos". 45


4. A IMPORTÂNCIA DA DECISÃO DO TEDH E A APROXIMAÇÃO DE UM (NOVO) DIREITO FUNDAMENTAL À UNIDADE DA PRETENSÃO PUNITIVA NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA

A decisão do TEDH, no case Grande Stevens and others v. Italy, é relevante sob dois aspectos, constituindo, em ambos, um novo paradigma.

O primeiro deles diz respeito à maneira como foram examinadas as sanções previstas na legislação administrativa e na legislação penal, em toda a sua extensão e profundidade, em conexão com os direitos fundamentais, no âmbito de processos judiciais e administrativos.

Quanto a essas questões, importante ressaltar o conceito de sanção administrativa, o qual consiste, segundo Fábio Medina Osório (2009, p. 95)

em um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos, com alcance geral e potencialmente pro futuro, imposto pela Administração Pública, materialmente considerada, pelo Judiciário ou por corporações de direito público, a um administrado, jurisdicionado, agente público, pessoa física ou jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como consequência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativo.

Eduardo García de Enterría (1976, p. 399-430), em linhas gerais, conceitua a sanção administrativa como um mal infligido pela Administração a um administrado, em consequência de uma conduta ilícita, sendo que esse mal, representando a finalidade aflitiva, consistiria na privação de um bem ou direito.

Por sua vez, a sanção penal pode ser definida de diversas formas: (i) é um ato violento, premeditado e preparado de contenção do acusado ou do culpado pela prática de uma infração penal, posteriormente condenado à pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, imposta pelo Judiciário; (ii) é uma violência organizada que visa impedir a vingança, cuja finalidade é aplicar a retribuição punitiva, provocar a readaptação social e prevenir novas transgressões pela intimidação dirigida à sociedade; (iii) é o exercício de um poder punitivo organizado, uma reação do Estado contra a vontade individual do criminoso, marcado pelo poder de punir como instrumento necessário de proteção de bens jurídicos e inclusive o próprio delinquente (LOPES JR., 2007, p. 4); (iv) é um instrumento político (CARVALHO, 2003, p. 150) 46 de negação da vingança; (v) um limite ao poder punitivo que visa punir o criminoso, preservar garantias penais e processuais, minimizar a violência e o poder punitivo, reduzindo o arbítrio e o tormento das penas.

Há, portanto, no plano teórico uma equivalência entre os dois tipos de sanção, administrativa e penal. Essa similitude entre as sanções administrativas e judiciais 47, realçada com especial ênfase na jurisprudência do TEDH e do TJUE, é importante para que se possa, no Brasil, repensar algumas concepções tradicionais, como a fórmula da independência das instâncias.

Além disso, ficou claro nos julgados examinados que não há um critério qualitativo, nem quantitativo capaz de diferenciar as infrações administrativas e os ilícitos penais, bem como entre as respectivas respostas sancionatórias, sobretudo quando se sabe que há sanções administrativas muito mais severas do que as sanções penais (por exemplo, a perda do cargo, a suspensão de direitos políticos, a proibição de contratar ou de receber benefícios, entre outras, são mais graves que uma multa aplicada num processo penal), a evidenciar a manifesta proximidade entre os institutos 48.

Ademais, na decisão do caso Grande Stevens et autres v. Italie ficou evidenciado que para se determinar a existência de uma infração penal é necessário ter em conta três fatores: (i) a classificação jurídica da medida em causa no direito nacional, (ii) a natureza da medida e (iii) a natureza e grau de gravidade da pena.

E, no caso em apreço, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) observou que as manipulações de mercado com as quais os recorrentes foram acusados ​​não constituíam uma infração penal na legislação italiana, cuja conduta foi efetivamente punida por uma sanção classificada como administrativa pela lei italiana (art. 187, § 1º do DL nº 58/1998).

A respeito da natureza da infração, entendeu o TEDH que tanto as disposições que os recorrentes foram acusados ​​de violar tinham por objetivo garantir a integridade do mercado financeiro e manter a confiança do público na segurança das transações, como o órgão administrativo independente (a Consob italiana) tem exatamente a tarefa de proteger os investidores e garantir a eficácia, a transparência e o desenvolvimento dos mercados de ações, aduzindo que são interesses gerais da sociedade protegidos pelo direito penal.

Também considerou o TEDH que as multas impostas aos recorrentes foram essencialmente destinadas a punir, a fim de evitar a reincidência, isto é, dissuadir os recorrentes de retomarem a atividade em causa, e punitiva, uma vez que reprimiam o comportamento ilícito.

No ponto, esclareceu o TEDH que, mesmo que as multas administrativas não possam ser substituídas por uma pena privativa de liberdade em caso de não pagamento, a multa que a Consob tinha o direito de impor, por exemplo, poderia subir a 5.000.000 euros, e este montante máximo ordinário também poderia, em certas circunstâncias, ser triplicado ou fixado em dez vezes o valor do produto ou lucro obtido por meio da ilegalidade da conduta.

Dessa forma, concluiu o TEDH que as penalidades não se destinavam apenas, como alegado pelo Governo Italiano, a reparar danos de natureza financeira, mas foram impostas pela Consob com base na gravidade da conduta impugnada, e não nos danos causados ​​aos investidores.

Além disso, pesou no julgamento o fato de que a imposição de sanções administrativas pecuniárias implica a perda temporária da própria honra dos representantes das empresas envolvidas, inclusive porque, se as empresas são cotadas em bolsa de valores, os seus representantes estão temporariamente proibidos de administrar ou supervisionar as empresas listadas para períodos que variam de dois meses a três anos.

Contundente também o argumento exposto sobre a possibilidade da Consob proibir as empresas listadas, as sociedades de gestão e as empresas de auditoria de suspender os serviços do infrator, por um período máximo de três anos, além de solicitar que as associações profissionais também suspendam, temporariamente, o direito do indivíduo de participar da atividade profissional.

Dizendo de outro modo, sustentou o TEDH que a imposição de sanções administrativas financeiras implica o confisco dos lucros do comportamento ilícito e dos bens que o tornaram possível.

Portanto, o TEDH reconheceu que a conotação criminal dos procedimentos depende do grau de severidade da pena a que a pessoa em questão é a priori responsável, e não a gravidade da pena imposta em última instância.

E, no caso concreto, prevaleceu o entendimento de que a gravidade das sanções aplicadas e a possibilidade de serem aplicadas novas sanções implicam no reconhecimento da natureza criminosa das sanções em causa, configurando, assim, a violação do princípio do non bis in idem.

Tal entendimento do TEDH pode ser internalizado no regime jurídico punitivo estatal brasileiro, sobretudo porque infração administrativa e delito são manifestações do poder-dever (BUSATO, 2013, p. 19) de punir do Estado, não havendo diferenças substanciais entre as normas penais e as normas administrativas sancionadoras, tampouco entre as sanções penais e administrativas.

Nessa ordem de ideias, fundamental compreender que a defesa da unidade do ius puniendi do Estado no plano concreto é a “aplicação de princípios comuns ao Direito Penal e ao Direito Administrativo Sancionador, reforçando-se, nesse passo, as garantias individuais” (OSÓRIO, 2009, p. 107), a merecer a devida articulação e proteção pela interpretação sistemática 49, no sentido de atribuir a melhor significação aos princípios do non bis in idem, da proporcionalidade e da vedação à arbitrariedade estatal, fixando-lhes o alcance e superando as antinomias entre os diversos regimes punitivos e na imposição de penas cumulativas quanto ao rigor da pena aplicada e à possibilidade de aplicação de novas sanções à luz dos mesmos fatos, para a realização dos valores substantivos previstos na Constituição Federal brasileira.

E essa questão assume especial relevância em países de democracia tardia, “sem muita tradição na concretude dos direitos fundamentais dos homens, como é o caso do Brasil” (SABOYA, 2012, p. 18).

Daí o segundo aspecto relevante da decisão do TEDH concerne ao reconhecimento da vigência do princípio ne bis in idem entre infrações de naturezas jurídicas distintas, tendo em vista que o Tribunal considerou que as infrações com as quais os recorrentes foram acusados perante a Consob e perante os tribunais penais envolvem a mesma conduta, como suficiente para concluir que houve violação do artigo 4º do Protocolo n.º 7 50, tendo sido determinado ao Estado-Membro demandado que o novo processo penal intentado seja imediatamente encerrado e sem qualquer consequência negativa para os recorrentes.

Dito de outro modo, os recorrentes alegaram, entre outras violações, que houve violação do princípio ne bis in idem, garantido pelo artigo 4º do Protocolo nº 7, uma vez que foram vítimas de uma sanção penal na sequência do processo perante a Consob em que foram condenados, cujo objeto do processo penal corrrespondia aos mesmos fatos impugnados pela referida autoridade administrativa.

Nesse sentido, citando o caso Sergey Zolotukhin v. Russia 51, o TEDH reiterou que o artigo 4º do Protocolo nº 7 deve ser entendido como proibindo a acusação ou o julgamento de uma segunda ofensa, como ocorre com fatos que são substancialmente os mesmos, porquanto a garantia consagrada no artigo 4º do Protocolo nº 7 torna-se relevante no início de uma nova acusação, em que uma absolvição ou condenação anterior já adquiriu força de res judicata, devendo ser examinado se os fatos em ambos os procedimentos são idênticos ou substancialmente iguais.

Em outras palavras, o TEDH considerou irrelevante que somente alguma conduta inserida no contexto das novas acusações seja eventualmente confirmada ou rejeitada nos processos subsequentes, uma vez que o artigo 4º do Protocolo nº 7 contém uma salvaguarda contra a tentativa ou a possibilidade de ser julgado novamente em novos processos, em vez de proibir uma segunda condenação ou absolvição.

Um exemplo extraído da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos ajuda a compreender melhor a questão. Em 1997, no caso Loayza Tamayo v. Perú, restou consagrada a impossibilidade de dupla punição pelos mesmos fatos, tendo sido definido que o princípio do non bis in idem “destina-se a proteger os direitos de indivíduos que foram julgados por fatos específicos de serem sujeitos a um novo julgamento pela mesma causa” 52.

Segundo a posição defendida por Denise Nachtigall Luz (2012), o non bis in idem proíbe a aplicação de mais de uma pena de mesma natureza pelo mesmo Estado, “independente da denominação ou classificação dada pela legislação interna e isso deve ter efeitos para impedir a convivência de dois sistemas de punição no direito brasileiro, um pela improbidade administrativa e outro pela via penal” 53.

Em conclusão, a importância do caso decorre da natureza complexa das deficiências processuais dos processos administrativos e judiciais, da imposição de sanções administrativas claramente desproporcionais e a perseguição e punição subsequentes dos envolvidos em novos processos penais em relação aos mesmos fatos que foram objeto de procedimento administrativo sancionador anterior.

Por oportuno, cumpre sublinhar que, no caso da Itália, havia uma diretiva sobre o abuso de mercado que proíbe e pune o abuso de informações e a manipulação de mercado. Em consequência, os Estados-Membros foram obrigados a prever sanções administrativas obrigatórias, sem prejuízo do seu direito de impor sanções penais adicionais 54 – o chamado sistema de dupla via para a punição em processos administrativos e judiciais (penais) pelos mesmos fatos.

Na Itália, assim como no Brasil, as sanções administrativas são estabelecidas sem prejuízo das sanções penais aplicáveis ​​quando a ação constitui uma infração penal. A propósito, essa ideia de dupla ou múltipla punição da mesma conduta nas esferas administrativa, cível e criminal vem sendo confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em razão da incidência do princípio da independência as instâncias, ressalvadas as hipóteses de inexistência material do fato e de negativa de autoria 55.

No entanto, à luz do novo julgado do TEDH, esse sistema punitivo de dupla ou múltipla punição viola o princípio do ne bis in idem, tanto na sua concepção dogmática quanto na prática atual, não havendo nenhuma reserva ao artigo 4º do Protocolo n.º 7 da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Inclusive para evitar punir o mesmo fato duas vezes (bis in idem), o sistema italiano prevê duas garantias: o princípio da especialidade e o princípio da dedução da sanção administrativa na seara penal. E no caso examinado, tais garantias não foram suficientes para impedir o bis in idem, pois o Tribunal de Cassação e o Tribunal de Recurso de Turim entenderam que o princípio da especialidade não se aplicava ao caso, diferente da posição do Tribunal Europeu.

Na visão do TEDH, a infração administrativa e a infração penal visavam proteger o mesmo bem jurídico (transparência do mercado), sendo que a diferença entre eles residia no fato que o ilícito administrativo protegia o “risco abstrato de ofensa ao mal” e a infração penal o “risco concreto de danos”.

Logo, asseverou o TEDH que deveria ter sido aplicado o princípio da especialidade, uma vez que o risco concreto de dano é especial em relação ao risco abstrato de prejuízo, já que se tratava do mesmo bem jurídico protegido e, portanto, o processo penal deveria prevalecer, arquivando-se, assim, os processos administrativos.

Além disso, a acumulação material de sanções criminais e administrativas não só sobrecarrega o Estado com duas investigações autônomas, com o risco de diferentes pronunciamentos sobre os mesmos fatos, mas também frustra claramente o princípio da especialidade.

Ademais, a questão da duplicidade de punições por um mesmo fato trata-se de um problema de legalidade e, especificamente, de definir a aplicabilidade de uma norma em detrimento de outra, ou ainda, de uma punição que afasta outra possível sanção.

Em síntese, convém sublinhar que o duplo ou triplo processamento e/ou a condenação pelos mesmos fatos viola direitos e princípios fundamentais: o devido processo legal formal e substancial, o princípio de interdição à arbitrariedade dos poderes públicos, o princípio do non bis in idem, o princípio da proporcionalidade, o princípio da segurança jurídica, entre outros.

Da mesma forma, a reiteração da imputação de fatos e condutas nas esferas administrativa, cível e penal também viola princípios internacionais que protegem a dignidade da pessoa humana, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, que integra o direito brasileiro por meio do Decreto nº 628/1992.

Nesse ponto específico, o Pacto de São José da Costa Rica amplia a cláusula do non bis in idem, proibindo que o mesmo acusado seja processado ou punido mais de uma vez pelos mesmos fatos, independentemente da identidade de regimes jurídicos 56.

Portanto, a ratio da decisão do TEDH é estimular a adoção pelos Estados-Membros de um novo marco regulatório conforme a Convenção Europeia de Direitos Humanos e as decisões do TEDH 57, na medida em que a defesa dos direitos fundamentais individuais e o controle do poder punitivo estatal exigem respostas estatais harmônicas e coerentes entre si 58, sendo recomendável aproximar a ideia de um (novo) direito fundamental à unidade da pretensão punitiva na ordem jurídica brasileira, com a adoção tempestiva de mecanismos e ferramentas inovadoras, eficientes e racionais de prevenção, de controle e de tratamento dos atos de fraude e corrupção na administração pública, de modo a viabilizar a celebração de acordos substitutivos tanto como técnica igualmente hábil a disciplinar o interesse público e as atividades privadas 59, quanto como medida eficaz e suficiente para a proteção do bem jurídico penal e, com isso, possa fornecer um modelo de orientação da conduta humana.

Sobre o autor
Fabiano Nobre Zimmer

Advogado, Mestre em Direito (PUCRS) e Especialista em Direito Penal Econômico (UCS-ESMAFERS). Sócio do escritório FNZ Advogados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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