O discurso de ódio e o paradoxo da tolerância: uma análise dos limites à liberdade de expressão à luz do Direito comparado

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Resumo

O presente artigo analisa, comparativamente, a forma como o discurso de ódio, também conhecido como hate speech, é tratado pela jurisprudência estadunidense, alemã e brasileira, e os parâmetros estabelecidos pelos referidos Estados para limitar, com base em seus conceitos de democracia, o exercício à liberdade de expressão.

Palavras-chave: discurso de ódio; hate speech; liberdade de expressão; jurisprudência; democracia.

Résumé

Le présent article analyse, comparativement, la forme comme le discours de haine, aussi connu comme hate speech, est traité par la jurisprudence américaine, allemande et brésilienne, et les paramètres établis par les États référés pour limiter, basés sur ses concepts de démocratie, l’exercice à la liberté d’expression.

Mots-clés: discours de haine; hate speech; liberté d’expression; jurisprudence; démocratie.


1. Introdução

A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais mais caros às democracias consolidadas ao redor do planeta. A pluralidade de opiniões e pensamentos distintos, externados sem obstáculos, prévia censura ou retaliações, constitui um dos corolários dessa espécie de regime político, servindo de base para o exercício de outras liberdades individuais. Dessa maneira, todos os pensamentos e idéias devem ser protegidos constitucionalmente sob o manto do referido bem jurídico?

Em suas mais diversas manifestações, possui uma dimensão objetiva e impõe ao Estado a priori uma conduta negativa, absenteísta, de modo a não restringir seu exercício pelos indivíduos. Contudo, o mesmo não é absoluto, podendo sofrer restrições em situações concretas, quando o abuso de seu exercício seja capaz de gerar danos a terceiros ou à ordem social.

Neste sentido, faz-se necessária a reflexão sobre o problema do chamado hate speech, ou discurso de ódio, que pode ser conceituado, genericamente, como qualquer forma de expressão que inferiorize ou incite a violência contra indivíduos ou grupos de indivíduos (historicamente vulnerabilizados, geralmente), com base em critérios como raça, etnia, nacionalidade, orientação sexual, gênero, religião, credo e deficiência física ou mental.

Segundo Winfried Brugger, “o discurso de ódio refere-se a palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar violência”2.

Para Daniel Sarmento, o hate speech compreende “manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos, motivadas por preconceitos ligados à etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e orientação sexual, dentre outros fatores”3.

A característica mais nefasta dessa espécie de discurso é que ele prega, normalmente, a redução do acesso das pessoas às quais se destina a direitos estendidos a todos4, inferiorizando indivíduos a ponto de negar-lhes, por vezes, a própria condição humana e a dignidade que lhe seria inerente:

Contra o discurso de ódio (…), há de se considerar, ainda mais, o efeito inibidor dessas práticas à plena participação dos grupos discriminados em diversas atividades da sociedade civil. A contumaz desqualificação que o discurso de ódio provoca tende a reduzir a autoridade dessas vítimas nas discussões de que participam, ferindo a finalidade democrática que inspira a liberdade de expressão.5

Segundo Immanuel Kant6, a quem é atribuído o conceito de dignidade humana:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.

O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento (Affektionspreis); aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade.

Em sua grande maioria, Cortes internacionais e constitucionais, à exceção da Suprema Corte estadunidense, apresentam tendência a limitar a liberdade de expressão em detrimento de discursos de ódio contra minorias, fazendo prevalecer a dignidade da pessoa humana, o que vem sendo encarado de forma dúbia pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, conforme se depreende dos posicionamentos adotados nos autos do Habeas Corpus (HC) nº 82.424-2/ RS (caso Ellwanger), do Inquérito (Inq.) nº 4.694/DF, e no julgamento conjunto do Mandado de Injunção (MI) nº 4.733 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº26.

Como, no entanto, coibir discursos de cunho discriminatório e ofensivo sem invadir ou restringir a liberdade individual? Até que ponto o Estado e a sociedade devem tolerar condutas que, em sua essência, denotam características antidemocráticas?

Em sua obra “A sociedade aberta e seus inimigos”7, o filósofo austríaco Karl Popper ajuda a responder a esses questionamentos:

(…) a tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até aqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância. — Nesta formulação, não quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia.

O paradoxo da tolerância, explicado por Popper, aponta que mesmo manifestações de natureza intolerante precisam ser toleradas até um certo limite. Se assim não o fosse, a liberdade de expressão em si estaria ameaçada, podendo sofrer restrições ao alvedrio de grupos dominantes. Entretanto, como definir juridicamente os limites da intervenção estatal?

O discurso de ódio é tema que já foi enfrentado por diversas Cortes constitucionais estrangeiras, mas possui tratamento diverso na jurisprudência de países como Estados Unidos e Alemanha. Desta forma, impende analisar alguns dos precedentes dos referidos tribunais.


2. A prevalência da liberdade de expressão sob a ótica da Suprema Corte dos Estados Unidos

A Primeira Emenda à Constituição estadunidense de 1791 determina que o Congresso não pode editar qualquer lei que limite a liberdade de expressão ou de imprensa. Sua redação e a interpretação de tal dispositivo pela Suprema Corte do país eleva a liberdade de expressão à categoria de valor quase absoluto, primando pelo liberalismo.

Conforme será possível analisar a seguir, a Suprema Corte dos Estados Unidos consolidou em sua jurisprudência o entendimento de que o Poder Judiciário não tem competência para firmar juízos de valor sobre o conteúdo das mais diversas formas de expressão, mesmo que propaguem idéias consideradas como repulsivas pela grande maioria da população, somente podendo restringir tal direito nos casos em que, por sua amplitude e forma, o discurso engendre uma imminent lawless action, ou seja, uma ação ilegal iminente que possa perturbar a ordem e a paz públicas. Contudo, nem sempre foi essa a linha interpretativa adotada:

Nos primórdios do século XX, a jurisprudência americana adotou como linha interpretativa sobre os limites do exercício do direito à liberdade de expressão (assegurado, em termos bastante genéricos, pela Primeira Emenda) a teoria do clear and present danger (perigo claro e iminente).

Em termos teóricos, essa visão significa que é legítimo o exercício da liberdade de expressão, ainda que possa causar danos a terceiros, desde que com isso não se cause um perigo claro e iminente. Essa doutrina, aparentemente liberal, terminou por justificar decisões que limitavam sobremaneira a liberdade de manifestação do pensamento. Até mesmo a propaganda de partidos comunistas foi considerada um perigo claro e iminente (Caso Schenck vs. United States, 1919), comprovando que instrumentos teoricamente coerentes podem ser sujeitos a práticas que os desvirtuem.8

No caso Beauharnais v. Illinois9, por exemplo, a Suprema Corte manteve a condenação de um indivíduo que havia distribuído, na cidade de Chicago, panfletos que convocavam pessoas brancas a se unirem contra pessoas negras, a fim de evitar a miscigenação racial e acusando estas de serem responsáveis por roubos, estupros e outros crimes. A condenação se deu com base em uma lei estadual que previa uma noção de difamação coletiva, proibindo, em locais públicos, a exibição de publicações que retratassem depravação, criminalidade, falta de castidade ou de virtude de um grupo de cidadãos de qualquer raça, cor, credo ou religião. O Tribunal entendeu que a conduta de Beauharnais, por conta da própria história do país, apresentava perigo claro e iminente “de um mal substancial”.

Já no caso Chaplinsky v. New Hampshire10, a Suprema Corte manteve a condenação de Walter Chaplinsky, uma testemunha de Jeová que, em 06 de abril de 1940, estava distribuindo panfletos na cidade de Rochester e acusando as religiões organizadas de praticarem extorsão. Ao ver um policial, que já o havia advertido no mesmo dia, Chaplinsky começou a chamá-lo de extorsor e fascista. Sua prisão se deu com fulcro em uma lei estadual que tipificava como crime o uso de palavras ofensivas, desdenhosas ou irritantes contra uma pessoa que estivesse legalmente em qualquer espaço público ou chamá-la por nomes ofensivos ou desdenhosos. No julgamento, o Tribunal inaugurou a doutrina das fighting words, indicando que o discurso que incita atos de violência ou raiva nas pessoas ao qual se destina diretamente, tendente a uma iminente quebra da paz, não deveria receber proteção sob a Primeira Emenda.

Para melhor compreensão, em Texas v. Johnson11, a Suprema Corte confirmou uma decisão, no sentido de reverter a condenação de Gregory Lee “Joey” Johnson por ter violado uma lei estadual ao queimar uma bandeira do país, em um protesto realizado durante a Convenção Nacional do Partido Republicano de 1984. A Corte sustentou que o ato de queimar um símbolo nacional estava protegido constitucionalmente, uma vez que a manifestação, pelas circunstâncias, não teria o condão de gerar uma revolta e que, em sua demonstração de insatisfação com o Governo, Johnson não utilizou fighting words, que poderiam ser caracterizadas por meio de insultos pessoais ou um convite para brigar.

Voltando ao campo do discurso de ódio, em Brandenburg v. Ohio12, a Suprema Corte reverteu a condenação de um fazendeiro que convidou um repórter de uma estação de televisão de Cincinnati para participar de uma manifestação da Ku Klux Klan que aconteceria em uma fazenda. O repórter e um cinegrafista compareceram ao local e filmaram o evento, o que foi, posteriormente, reproduzido em uma rede de televisão local e outra nacional. Em seu discurso, o homem dizia que os judeus deveriam ser devolvidos para Israel e que negros deveriam ser enterrados, por exemplo. O Tribunal decidiu que as liberdades de expressão e imprensa somente poderiam ser restringidas pelo uso da força ou pela lei quando fossem direcionadas a incitar ou produzir uma ação ilegal iminente.

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Outro caso emblemático é National Socialist Party v. Skokie13. Nos anos 70, na cidade de Skokie, membros do Partido Nacional-Socialista da América decidiram realizar uma marcha portando o uniforme e símbolos nazistas, em um bairro habitado por judeus, o que foi proibido pelas instâncias judiciárias locais. Após recurso à Suprema Corte, o Partido obteve a autorização requerida. O Tribunal considerou que o uso de símbolos como a suástica não seria abrangido pelo conceito de fighting words e estaria protegido pela Primeira Emenda.

Assim, após esta breve análise, verifica-se que o Judiciário estadunidense dá prevalência à liberdade de expressão, sem ponderar os danos possivelmente causados a terceiros, decorrentes da violação da honra, da imagem e da própria dignidade, mantendo-se neutro quanto ao conteúdo das mais diversas formas de manifestação do pensamento. Para João Trindade Cavalcante Filho14, a Justiça dos Estados Unidos abraça a ideologia liberal, enraizada na história e tradições do país:

Em resumo, as ideias prevalentes na ideologia liberal, e que serão buscadas nos precedentes, para confirmar ou infirmar sua influência sobre a interpretação do discurso do ódio, podem ser assim resumidas: a) o justo tem prioridade sobre o bom (o que é certo tem prioridade sobre o que é bom para a coletividade); b) os direitos têm preferência sobre a maximização do bem-estar (um direito só pode ser restringido em virtude de outro direito, mas não em virtude de a restrição trazer bem-estar à coletividade); c) o indivíduo e seus direitos têm prioridade sobre o bemestar da coletividade; d) a sociedade não pode ser governada por nenhuma particular concepção de vida boa, mas sim por princípios neutros e justos que permitam a cada um viver segundo sua concepção de bem.

A linha jurisprudencial consagrada nos Estados Unidos, dissociada dos parâmetros estabelecidos em inúmeros tratados internacionais, não é a mesma seguida no continente europeu. Nesta senda, é imperativo verificar como a questão é enfrentada pela Alemanha, Estado cuja história é marcada pelo hate speech.


3. A visão alemã e o conceito de democracia militante

Pela própria redação da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha de 1949, é possível verificar que a dignidade da pessoa humana ocupa um local de destaque no ordenamento jurídico do país. Em seu primeiro artigo, a Constituição alemã estabelece a intangibilidade da dignidade da pessoa humana e a obrigação de respeitá-la por parte de todo o poder público.

Em seu artigo 2º, a Grundgesetz, ao tratar dos direitos de liberdade, define o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, “desde que não violem os direitos de outros e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral15. Já no artigo 5º, a Lei Fundamental de Bonn, ao disciplinar a liberdade de expressão, define como seus limites as disposições das leis gerais, os regulamentos legais para a proteção da juventude e o direito à honra pessoal.

Sendo assim, na Alemanha, a liberdade de expressão é um direito que encontra limitação expressa na Carta Magna. Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, a livre manifestação possui uma dupla dimensão, eis que, subjetivamente, é indispensável ao desenvolvimento da personalidade de qualquer indivíduo, enquanto que, objetivamente, legitima o pluralismo de idéias dentro da democracia. Na lição de Brugger16:

Embora a liberdade de expressão não seja, em regra, um direito prevalecente na Alemanha, ela possui o status de direito de especial importância devido às funções a que serve. A Corte alemã tem mencionado as famosas razões de decidir americanas sobre a importância do discurso e, aparentemente, trabalha em uma abordagem em dois níveis. A Corte alemã reconhece a especial importância da liberdade de expressão na formação de opiniões que, por sua vez, são vitais para a autonomia do orador independentemente das conseqüências. A Corte alemã também reconhece a importância da livre troca de informações e idéias para sustentar a busca da verdade, legitimar a democracia, ajudar a tomada de decisões em assuntos privados e públicos e eliminar a necessidade de recorrer à violência física.

Entretanto, a Lei Fundamental de Bonn, ao resguardar a lei moral e o direito à honra pessoal, impõe nítidos limites à liberdade de expressão, a qual não possui um caráter quase absoluto, como na jurisprudência estadunidense. Na jurisprudência alemã, há um primado pela dignidade da pessoa humana e uma efetiva preocupação com os danos que podem ser causados a terceiros, à coletividade em geral ou à própria democracia por conta do hate speech.

O Tribunal Constitucional alemão adota, em alguns de seus julgados, um conceito de democracia militante (wehrhafte ou streitbare Demokratie), cunhado, em 1937, por Karl Loewenstein. O filósofo afirma, ao criticar o avanço do fascismo na Europa, que a democracia não deve tolerar idéias que coloquem em risco a sua própria existência, definindo regras jurídicas capazes de inibir a atuação do que ele chama de “inimigos da ordem democrática”17.

No caso David Irving (ou Auschwitz lie), de 1994, a idéia de democracia militante fica patente. In casu, o Tribunal Constitucional alemão julgou constitucional a proibição por autoridades administrativas de uma palestra que deveria ser realizada por David Irving, um revisionista inglês que nega o acontecimento do Holocausto. As citadas autoridades tomaram tal decisão com base em alguns dispositivos do Código Penal alemão (§§ 130, 185 e 189), que tipificam como crimes o amotinamento do povo18, a injúria e o ato de denegrir a memória dos mortos. O Tribunal entendeu que a manifestação de Irving estaria despida de proteção jurídica, uma vez que afirmações falsas sobre fatos já provados como verdadeiros não contribuem para a formação de opinião presumida na norma constitucional19.

Já no julgamento do caso Soldaten sind Mörder, também conhecido como Tucholsky II (BVerfGE, 93, 266), de 1995, o Tribunal Constitucional anulou a condenação criminal de indivíduos que haviam distribuído panfletos e cartazes com os dizeres “soldados são assassinos”, por entender que não se tratava de uma acusação de homicídio dirigida contra os militares, mas sim, uma forte crítica ao uso da força bélica, às guerras e às Forças Armadas.

Segundo Daniel Sarmento20:

Apesar da sua linguagem conciliatória, a Corte deixou claro que “o Código Penal não pode limitar as instituições públicas da crítica pública, por mais dura que seja, uma vez que esta crítica é expressamente garantida pelo direito constitucional à liberdade de expressão”.

Portanto, vê-se que a Corte alemã soube distinguir o hate speech de manifestações que, conquanto pudessem ferir as suscetibilidades e até ofender os integrantes de determinados grupos, configuravam legítima expressão de opinião em tema de relevância pública.

Logo, verifica-se que o Tribunal leva em consideração a relevância que o discurso, por mais ofensivo que possa parecer para determinados indivíduos, apresenta para o debate e pluralidade de opiniões dentro da sociedade, bem como a real intenção dos interlocutores, a fim de legitimar sua liberdade de expressão.

Ainda, no caso Rudolf Hess (1 BvR 2150/08)21, o Tribunal Constitucional Federal, em interessante e controverso julgado, manteve a proibição arbitrada pelo Tribunal Federal Administrativo, no sentido de que o Partido Nacional Socialista Alemão se abstivesse de realizar, em 20 de agosto de 2005, na cidade de Wunsiedel, homenagem ao referido oficial nazista, considerado como o braço direito de Adolf Hitler.

A proibição se deu com base no §130.4, do Código Penal, conforme reforma aprovada em 24 de março de 2005. O citado dispositivo tipificou como crime a conduta de aprovar, glorificar ou justificar publicamente o uso da força pelo Partido Nacional Socialista, de modo a perturbar a paz pública.

Os autores da reclamação constitucional alegaram que o novo texto da lei penal seria inconstitucional, tendo em vista não se tratar de lei geral e que, logo, não poderia constituir limite à liberdade de expressão, nos termos do artigo 5º da Constituição.

O Tribunal considerou que, apesar de não se tratar de uma lei geral, eis que se dirige a uma única espécie de discurso, a tipificação das condutas em apreço se coaduna, excepcionalmente, com a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana, pois visa a impedir a exaltação dos atos de um regime que tentou eliminar grupos populacionais inteiros, o que, segundo o julgado, ante a consciência atual, constituiu um “pesadelo de brutalidade desmedida”.

Muitos autores acreditam que a decisão não se deu com base em critérios jurídicos, mas sim, morais, históricos e políticos, a exemplo de João Trindade Cavalcante Filho22, in verbis:

Mais uma vez – e em Hess, segundo nossa visão, da maneira mais clara possível – tem-se a corrupção do código jurídico pelo código político. O reconhecimento de que a lei não é geral, mas está protegida por uma “proibição implícita”, que leva em conta a “realidade histórica”, possui uma “legitimação objetiva” e “alto valor simbólico” não é a mera influência da política sobre o direito: é a substituição deste por aquela.

Percebe-se, então, a manifestação de uma verdadeira democracia militante, representada pela existência de um forte ativismo judicial, que, assim como no Estado brasileiro, faz com que argumentos jurídicos e políticos caminhem lado a lado. Tal fenômeno traz avanços sociais importantes, mas pode se tornar perigoso sem uma jurisprudência coerente e baseada em precedentes bem estabelecidos, culminando com a instauração de grave insegurança jurídica. O holocausto é página que o Poder Judiciário alemão não pretende ver reescrita na história, porém, se este objetivo não tiver como arcabouço forte regramento jurídico, mudanças políticas poderiam ser capazes de impedir sua consecução.

Sobre o autor
Igor Nóvoa dos Santos Velasco Azevedo

Mestre em Direito Internacional e Europeu Público e Privado, pela Universidade Nice Sophia Antipolis; Especialista em Direito Público, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG), e em Ciência Política, pela Universidade Estácio de Sá (UNESA); Advogado e Professor do curso de graduação em Direito da Faculdade Estácio do Pará.︎

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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