3. O tratamento dicotômico dispensado pelo Supremo Tribunal Federal
A Constituição Federal de 1988 representa um marco no Direito brasileiro, culminando com a redemocratização do país, após a ditadura militar que vigorou entre 1964 e 1985. Imbuída desse espírito, seguindo a tendência do neoconstitucionalismo, a Lei Maior define amplo rol de direitos e garantias fundamentais, os quais, em casos concretos, podem conflitar:
O constitucionalismo brasileiro é um paradigma desse modelo. Erigida num contexto de disputa entre forças políticas antitéticas, a Carta de 1988 materializa um compromisso entre a ideologia liberal e as exigências do Estado Social, entre os que buscavam construir um Estado democrático e os que se esforçavam para manter privilégios, entre o progresso e o atraso. Por isso, o fenômeno dos conflitos normativos é algo bastante corriqueiro em nossa realidade jurídica.23
Na ordem jurídica inaugurada em 1988, coube ao Poder Judiciário e, notadamente, ao Supremo Tribunal Federal, intérprete e guardião da Carta Magna, dirimir essas aparentes antinomias e definir parâmetros interpretativos capazes de limitar a eficácia desses direitos, quando se encontrem em posições antagônicas e sem possibilidade de composição.
O Pretório Excelso, em 2003, no histórico julgamento do HC 82.424-2/RS, conhecido como caso Ellwanger, demonstrou forte tendência a restringir os limites da liberdade de expressão em face da proteção à dignidade da pessoa humana.
Sigfried Ellwanger, autor, editor e sócio da empresa “Revisão Editora Ltda.”, foi condenado pelo crime de racismo, em 1996, pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, com fulcro no artigo 20 da Lei nº 7.716/89, conforme redação dada pela Lei nº 8.081/90.
Ellwanger foi responsável pela autoria de uma obra de natureza negacionista intitulada “Holocausto - judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século” e pela distribuição de outras obras com caráter antissemita, racista e discriminatório, segundo a denúncia realizada.
Em 2000, o réu impetrou habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, com o objetivo de afastar a imprescritibilidade atribuída pelo artigo 5º, XLII, da Constituição Federal, ao crime da prática de racismo, alegando que o povo judeu não pode ser considerado como uma raça. No entanto, a Corte denegou o pedido.
Foi apresentado, em 2002, novo pedido de habeas corpus, com os mesmos fundamentos, perante o Supremo Tribunal Federal. A relatoria foi atribuída ao Ministro Moreira Alves, que votou por acolher o pedido, indicando que a interpretação do dispositivo constitucional mencionado deveria ser restritiva e que os judeus não poderiam ser considerados como uma raça.
De acordo com Celso Lafer24, ao comentar a atuação do eminente jurista Miguel Reale Jr. no processo, na condição de amicus curiae:
A desconstrução do voto do Ministro Moreira Alves e da tese do habeas corpus passava, como mostra Miguel, pela distinção entre racialismo, que pensa o mundo em termos de raça, e racismo, teoria e prática política que conduzem à ação voltada para discriminar, excluir e segregar. O racialismo caracteriza a atuação de Ellwanger e embasa, em surdina, o voto do Ministro Moreira Alves. É um dos fundamentos da sua interpretação restritiva do crime da prática do racismo - os judeus não são uma raça. Daí a importância do item 3 do parecer de Miguel - Compreensão do termo “racismo”: aportes histórico-sociológicos, nos quais elabora circunstancialmente por que a inexistência de diferenças raciais, cientificamente demonstradas, não exclui a prática de racismo. Esta prática é uma realidade social e política, presente no Brasil e no mundo, voltada para o exercício da dominação e da segregação, lastreada numa ideologia racialista que busca legitimar a subordinação e no limite, como foi o caso do Holocausto empreendido pelo regime nazista, o extermínio de seres humanos que integram uma população. Por essa razão, o problema em questão no caso Ellwanger não era a raça - ou seja, a existência de uma raça judaica -, tal como a considerava o Ministro Moreira Alves no seu voto e postulava o habeas corpus, mas sim o racismo.
A tese acima foi adotada pela Corte, que denegou o pedido realizado pelo réu, fazendo referência, inclusive, ao mapeamento do genoma humano, que comprovou cientificamente a inexistência de diferenças biológicas entre os seres humanos. Logo, a divisão dos seres humanos em raças decorre de um fenômeno político-social que baseia relações de opressão e segregação, conforme entendimento firmado.
Ademais, a Corte afirmou que interpretar a prática de racismo de forma estrita em nada contribuiria com a proteção da dignidade da pessoa humana e do princípio da igualdade jurídica.
Recentemente, em 2019, no julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e do Mandado de Injunção nº 4.733, o Supremo Tribunal Federal adotou a mesma tese para considerar práticas homofóbicas e transfóbicas como expressões de racismo. A Corte ainda ressaltou, ante o questionamento de grupos religiosos, que não há qualquer incompatibilidade entre a repressão penal à homotransfobia e a intangibilidade do pleno exercício da liberdade religiosa:
A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.25
Apesar das decisões vanguardistas supracitadas, o Supremo Tribunal Federal considera que o discurso de ódio não se caracteriza quando proferido por um parlamentar no exercício de suas funções. O artigo 53, caput, da Constituição Federal, prevê que os parlamentares são invioláveis, civil e penalmente, por suas opiniões, palavras e votos.
Em 2018, o Ministério Público Federal apresentou denúncia contra Jair Bolsonaro, até então deputado federal e atual Presidente da República, imputando a ele o crime tipificado pelo artigo 20 da Lei nº 7.716/89 ("Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”).
Durante palestra ocorrida em 03 de abril de 2017, no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, o até então parlamentar proferiu discurso com teor discriminatório sobre quilombolas, indígenas, refugiados, mulheres e LGBTs, o que foi analisado de forma pormenorizada pelo Ministro Luís Roberto Barroso, in verbis:
Não vou repetir aspectos que já foram enfatizados, mas gostaria de destacar alguns momentos da manifestação do denunciado, para a construção do meu raciocínio.
Em relação às mulheres, disse o Deputado, aqui, denunciado: "Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens. A quinta, eu dei uma fraquejada, e veio uma mulher". Isto é: as mulheres são seres inferiores, na visão do denunciado.
Em seguida, pronunciou-se o denunciado em relação aos estrangeiros e disse: "uma das acusações que recebo é xenófobo. Eu sou contra estrangeiros aqui dentro. Nós não podemos abrir as portas do Brasil para todo mundo. O Brasil não pode se transformar na "casa da mãe joana". Não pode, a decisão de um governo, acolher todo mundo de forma indiscriminada".
Na visão do denunciado, os estrangeiros são mal-vindos.
Sobre os índios, assim se manifestou o denunciado: "dentro de Roraima, além de demarcação como terra indígena, o que eles fizeram lá? O único rio lá, que se poderia fazer três hidrelétricas, o pessoal encheu de índio. Não vai ter, se eu chegar lá, um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola".
Portanto, entende o denunciado que os índios não devem ter as suas terras demarcadas.
E em relação aos pobres, assim se pronunciou o denunciado: "nós não temos 12 milhões de desempregados, nós temos 40 milhões, porque eles consideram quem tem bolsa família como empregado. Alguém já viu um japonês pedindo esmola por aí? Porque é uma raça que tem vergonha na cara, não é igual a essa raça que está aí embaixo ou, como uma minoria, que está ruminado aqui do lado".
Portanto, os pobres brasileiros, na opinião do denunciado, não são como os japoneses que têm vergonha na cara.
Essas manifestações, Presidente, no meu modo de pensar, elas ultrapassam todos os limites do erro sem, todavia, transporem as fronteiras do crime. Assim me parece essas que eu transcrevi.
(…)
Todavia, Presidente, o denunciado também se manifestou em relação aos quilombolas e afrodescendentes. E o fez com o seguinte teor: "isso aqui é só reserva indígena, está faltando quilombolas, que é outra brincadeira. Eu fui em um quilombola, em Eldorado Paulista: olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador eles servem mais”.
Aqui, Presidente, arrobas e procriador são termos utilizados para se referir a animais irracionais, a bichos e, portanto, eu penso que equiparar pessoas negras a bichos, eu considero, em tese, para fins de recebimento da denúncia, um elemento plausível à violação do art. 20 da Lei do Crime Racial. Claramente, arrobas, para qualquer pessoa que tenha alguma familiaridade com a vida no campo, sabe que é a medida que se utiliza para vender bois.
Em relação a gays, a manifestação do denunciado tem o seguinte teor: "não vou dar uma de hipócrita aqui. Prefiro – tenho até dificuldade de ler essa passagem –, prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim, vai ter morrido mesmo, não vou combater, nem discriminar, mas, se eu vir dois homens se beijando na rua, eu vou bater"
Presidente, aqui, também com todas as vênias de quem pensa diferente, embora ainda que não haja, no Direito Brasileiro, a tipificação do crime de homofobia, eu vislumbro, com todas as vênias, em tal conduta, plausibilidade de enquadramento nos tipos de incitação ao crime e apologia ao crime previstos nos arts. 286 e 287 do Código Penal.26
Ao final, contudo, por maioria de votos, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal rejeitou a denúncia, com base no argumento de que as declarações produzidas por Jair Bolsonaro possuíam nexo de causalidade com o exercício do mandato parlamentar e, assim, estariam cobertas pela imunidade material.
Sobre o tema, o professor Pedro Lenza27 preleciona que:
(…) a imunidade parlamentar não é absoluta, assim como nenhum direito fundamental é absoluto. Em nosso entender, portanto, em situações excepcionalíssimas, determinadas opiniões, palavras e votos proferidos podem até caracterizar a prática de crime, já que o direito brasileiro não tolera o denominado hate speech.
É válido frisar que o posicionamento adotado pela Corte in casu pode ser interpretado pela sociedade como uma autorização para reproduzir declarações com teor semelhante e mesmo radicalizá-las, o que necessita ser combatido de diversas formas, considerando o caráter pedagógico das sanções:
Os discursos lançam um desafio de como enquadrar essas manifestações diante da imunidade parlamentar. No artigo, foi abordada a questão, apresentando-se as seguintes possibilidades: a) aumentar o debate no parlamento sobre as questões objeto do discurso parlamentar, o que seria próprio do sistema de debate parlamentar; b) responder – administrativa, civil e penalmente – pelos atos, [b1) flexibilizando-se o sistema de imunidade parlamentar na via do abuso parlamentar; b2) adotando-se uma tese mais restritiva do que se entende por propter officium]; e c) responsabilizar o parlamentar por falta de decoro.28
Ante o exposto, depreende-se que o discurso de ódio também não é admitido no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que viola a dignidade da pessoa humana e o princípio da isonomia. Entretanto, é indispensável ao fortalecimento da jurisprudência e do combate ao discurso de ódio a flexibilização da imunidade parlamentar material, a fim de que tal dicotomia não seja interpretada pela sociedade como impunidade e autorização para sua disseminação e possível radicalização.
4. Conclusão
O discurso de ódio é um fenômeno que decorre de características basilares da democracia e da própria raça humana, como o pluralismo e a diversidade.
Ao longo da história da humanidade, grupos dominantes tentaram silenciar, ridicularizar, desqualificar e mesmo aniquilar indivíduos pelos mais diversos motivos, tais quais cor da pele, raça, etnia, religião, credo, consciência, sexo, orientação sexual, identidade de gênero, deficiências físicas ou mentais etc.
Hodiernamente, contudo, muitos Estados, sob a égide dos direitos humanos, vêm se posicionando contra a intolerância e consagrando não só o direito à igualdade, mas também o direito à diferença, criando mecanismos específicos de proteção para os grupos vulneráveis:
(…) Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nessa ótica, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Em tal cenário as mulheres, as crianças, a população afrodescendente, os migrantes, as pessoas com deficiência entre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes assegura tratamento especial.29
Nesta senda, a jurisprudência alemã e brasileira (ressalvada a questão da imunidade parlamentar) lança sobre os jurisdicionados uma ótica diferenciada, ao tentar preservar a dignidade humana e estabelecer limites ao fenômeno do hate speech. Por outro lado, a jurisprudência estadunidense prima pela liberdade de expressão e pouco intervém em tal questão, desconsiderando os possíveis danos causados aos sujeitos atingidos, o que não viola seus ideais democráticos e liberais.
Em verdade, o problema levantado não possui resposta fácil, mas a posição adotada por Estados como a Alemanha e o Brasil parece ser a mais adequada no quesito de proteção à pessoa humana, estabelecendo parâmetros para a garantia da tolerância entre os mais diversos grupos sociais.