Ciberguerras ou guerra fria digital e a soberania nacional: a defesa do Estado e das instituições democráticas no contexto de conflitos virtuais

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4. ESTADO MODERNO E A SOBERANIA NACIONAL: DA CRISE OCASIONADA MEDIANTE A REVOLUÇÃO DIGITAL

Como é cediço, a soberania é indicada pela Constituição Federal de forma expressa como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, previsto em seu artigo 1º, I, tornando-se um pilar de uma nação. Podemos conceituar soberania conforme Jean Bodin como sendo “o poder absoluto e perpétuo de um Estado-Nação”.

Etimologicamente a palavra soberania advém do latim supremitas e potestas, e significa poder supremo, ou seja, um poder é dito soberano quando não existe outro poder superior a ele quer seja no plano na ordem externa nem igual na ordem interna. Assim, entende-se por soberania a qualidade máxima de poder social por meio da qual as normas e decisões elaboradas pelo Estado prevalecem sobre as normas e decisões emanadas de grupos sociais intermediários, nesse aspecto, no âmbito interno, a soberania estatal traduz a superioridade de suas diretrizes na organização da vida comunitária, já no âmbito externo, a soberania traduz, por sua vez, como a ideia de igualdade entre todos os Estados-Nação na comunidade internacional, associada à independência nacional.

Com o advento da tecnologia surge um novo modelo de soberania: a cibernética. A soberania cibernética consiste na defesa das suas capacidades informáticas e do pleno uso de suas estruturas cibernéticas, além da salvaguardar as suas infraestruturas críticas virtuais. Conforme fora apresentado, o dinamismo da tecnologia em meio a sociedade contribuiu para a abolição de fronteiras e a consequente relativização de distancias.

O pensamento acerca da soberania cibernética e a sua regulamentação já é uma realidade na comunidade internacional no tocante as questões de trato geopolítico. Esclarecemos que os ataques cibernéticos e virtuais representam novos métodos de ameaça às prerrogativas soberanas dos Estados-Nações. É necessário aos Estados adotarem a vigilância líquida que conforme Zygmunt Bauman ajudaria “a compreender o que está acontecendo num mundo de monitoramento, controle, observação, classificação, checagem e atenção sistemática25, assim sendo, Bauman propõe que “o projeto panóptico da vigilância quanto aos inventos contemporâneos nos revelaria um olhar globalizado que não deixaria margem para ocultação”. 26

O idealismo do ciberespaço e metaverso detém um caráter transnacional, podendo ser comparado aos oceanos, ao espaço aéreo internacional ou, ainda, ao continente antártico, sendo necessário a regulamentação semelhante as existentes sobre estes institutos, por meio de tratados e convenções internacionais. Todavia, é importante mencionar que a eventual existência de normas internacionais acerca do ciberespaço e o metaverso não isentará por si só os Estados de possuírem estruturas jurídico-militares próprias para a proteção de sua respectiva soberania cibernética nacional.

Diante desta senda de raciocínio, resta nítida a efetiva vinculação entre a ideia de soberania nacional e soberania cibernética, onde torna-se inviável assegurar a primeira sem uma política de defesa e segurança em relação à segunda dada a extrema interatividade entre elas misturando-se os conceitos em um espaço multidimensional de uma estrutura estatal. Dado este viés, entendemos que a consolidação de um modelo de segurança jurídico-constitucional face ao ciberespaço, metaverso e as infraestruturas cibernéticas nacionais aliada preservação dos interesses estatais, interna e externamente é um pressuposto essencial para a soberania estatal.


5. DO ESTADO DE EMERGÊNCIA CIBERNÉTICA: DIREITO PÚBLICO E PÓS MODERNIDADE NO TOCANTE À REGULAMENTAÇÃO DO ESTADO DE EXCEÇÃO CIBERNÉTICO

Na concepção clássica ao longo da construção histórica da humanidade, o soberano sempre foi o detentor da palavra final no tocante ao Estado possui ou não o direito inato de ir à guerra quando lhe fosse conveniente ou necessário. Em alusão a tal perspectiva, Martônio Mont`Alverne Barreto Lima discorrendo sobre o pensamento de Immanuel Kant, inteligentemente aponta que “o fato de que numa constituição republicana o povo decide se vai ou não à guerra, porque até hoje, aquele que suporta o ônus da guerra não decidiu por ela; e quem decidiu não suporta ônus algum, como perdas pessoais e patrimoniais”. 27 Em nossa Constituição Federal l o artigo844, XIX, determina que a decisão de ir à guerra e celebrar a paz é do Presidente da República.

Antevemos precipuamente que a nossa matriz constitucional disposta na Constituição da Republica Federal do Brasil de 1988, não apresenta previsão legal expressa para o enfrentamento de situações de emergências cibernéticas. A nossa Lex Fundamentalis atual trouxe a previsão de dois modelos de estados excepcionais para o enfrentamento de situações extremas relativas à defesa e à segurança: o Estado de sítio 28 e o Estado de defesa 29 . Ambos são modelos de tratamento impostos pelo legislador constituinte originário de forma excepcional, quando presente situação em que a estrutura ordinária de segurança e de defesa do Estado não logre êxito em manter a ordem pública e a preservação da soberania estatal, ensejando assim sua aplicabilidade.

Para além disso, convém ressaltar que a declaração formal de guerra aciona um conjunto de mecanismos excepcionais de matriz constitucional e infraconstitucional. O artigo 148, I, da CRFB/88 autoriza a instituição de um tributo especial denominado empréstimo compulsório de guerra para fazer frente às despesas excepcionais exigidas pelo momento excepcional. Também merece destaque outra consequência jurídica presente no Livro II, da Parte Especial do Código Penal Militar que prevê os delitos em tempo de guerra e está compreendido entre os artigos 355 e 408, com a aplicação de pena de morte em grau máximo da dosimetria penal, atendendo a permissão constitucional descrita no art. 5º, XLVII, “a”, CRFB/88.

Em análise a esses institutos excepcionais previstos na Constituição Federal para o enfretamento de crises, percebe-se que todas fazem menção expressa ou até implicitamente a uma dimensão física, ou seja, material, pessoal, concreta, podemos extrair do texto constitucional as expressões permitem limitar a permanência de pessoas em determinada “localidade”, suspensão do direito de “reunião” ou mesmo a requisição de “bens”. Desta forma, depreende-se que tais instrumentos têm, necessariamente, uma dimensão corporal, tornando-se inócuos ao cenário do enfrentamento cibernético. Assim sendo, há uma lacuna constitucional no tratamento das questões virtuais relacionadas às agressões contra à sociedade e ao Estado, o que conforme outrora explanado, representa um potencial ou concreto a soberania estatal.

Coadunando com o anteriormente elencado, vislumbra-se que o texto constitucional brasileiro vigente foi elaborado pelo legislador constituinte originário visando um cenário de um conflito bélico convencional, isto é, uma guerra cinética, a título de exemplo podemos citar o uso da expressão “agressão armada estrangeira”, reforçando a ideia de que o legislador tinha em mente a agressão física, feita por tropas materiais que atentassem contra as fronteiras ou instituições nacionais. Desta forma, a matriz constitucional atual, foi claramente pensada para conflitos de quarta geração, e em verdade, não está preparada para o enfrentamento de guerras de quinta dimensão travadas em um novo ambiente: o Ciberespaço e o Metaverso.

Levando em consideração que os ataques cibernéticos podem ser empregados como armas, ultrapassando a fronteira da ilicitude ou do terrorismo para ingressar na esfera de conflitos entre nações, se faz necessária a criação de mecanismos especiais para garantir o restabelecimento da normalidade institucional e social, resguardando-se assim o tecido democrático. É de imperiosa observação que a inexistência de disciplina jurídica para as situações excepcionais oriundas de ataques virtuais pelo ciberespaço que afetem a democracia direta ou indiretamente, se regulamentará por si mesma, o que em si já representa um risco democrático, visto à possível supressão de direitos e garantias fundamentais e lesões a outros direitos civis em nome da manutenção da ordem pública interna ou repressão às agressões externas produzidas contra a sua soberania nacional. Discorrendo sobre tal pensamento, é fundamental que os poderes excepcionais estejam expressamente previstos no texto constitucional, para que seja possível delimitar o seu uso e controle. Se torna necessário à constituição definir quais os instrumentos excepcionais têm seu uso autorizado quando da implementação dos modelos de exceção, por quanto tempo devem ou podem ser utilizados tais controles políticos e jurídicos aos quais estão submetidos, bem como, até mesmo, as consequências do abuso na utilização dos mesmos.

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Diante dos avanços tecnológicos é indubitável uma reforma no texto constitucional para a integração do denominado Estado de Emergência Cibernética (EEC), trata-se em verdade, de um modelo de exceção que funcionaria em paralelo aos já existentes Estado de sítio e Estado de defesa, visando assim, garantir a preservação da ordem e a segurança nacional. Assim sendo, faz-se imperioso o desenvolvimento de uma estrutura por meio de Emenda Constitucional, a qual possa ser utilizada nos casos graves de ofensas à soberania, preservação e paz social cibernética do ente estatal.

A implementação do Estado de Emergência Cibernética deve ser feita a luz de adaptações semânticas dos mecanismos atualmente previstos atualmente no texto constitucional, esse novo modelo de Estado de Exceção deverá ser estruturado de forma a escalonar as respostas estatais de acordo com o grau o nível crescente conforme a ameaça cibernética, de modo a reagir de forma eficiente e preservar concretamente a soberania nacional. Um fator importante na implementação do Estado de Emergência Cibernética é sem dúvidas a velocidade na tomada de decisões, quer no plano político, quer seja no estratégico-militar visto que a morosidade dessa acarretará em danos materiais concretos e devastadores a soberania cibernética nacional.

Nisto revela-se um ponto peculiar, a Constituição Federal deverá autorizar o Poder Executivo a agir de forma prévia e, se for o caso, antecipadamente para proteger a estrutura cibernética brasileira, pública ou privada, com isso, minimizar-se-á os possíveis danos a nossa soberania, posteriormente, em homenagem a aplicação do sistema de freios e contrapesos checks and balances 30 o Congresso Nacional deverá ser comunicado da utilização do Estado de Emergência Cibernética e facultativamente por maioria absoluta de seus membros a qualquer momento caso considere que o Poder Executivo não atentou aos requisitos constitucionalmente previstos, em nítida violação ou quando entender que o risco cibernético já fora superado, fazer cessar o uso do Estado de Emergência Cibernética.

Merece destaque o fato de que o uso de níveis de ameaças virtuais deverá respeitar os limites temporais respectivos e estar sujeitados as diversas instâncias de controle, sendo assim, não seria caso de dar poderes ilimitados para a decretação do Estado de Exceção Cibernética ao Poder Executivo, este limitar-se-á apenas a ação imediata para debelar o risco informático e preservar a soberania e o estado de paz nacional.

Sendo assim, torna-se justificável e essencial a implementação de medidas normativas de matriz constitucional para o enfrentamento de ameaças cibernéticas, em face das características próprias e específicas das ações cibernéticas, certo de que é humanamente impossível prever todos os eventos que eventualmente ocorrerão e as possíveis tomadas estratégicas que eventualmente o Estado tomará, por conseguinte, deve-se deixar a cargo das normas programáticas constitucionais a criação de estruturas básicas de enfrentamento aos conflitos cibernéticos.


7. ELUCIDAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento tecnológico permeia a própria evolução humana 31, e é de bom alvitre entendermos que a guerra cibernética se reveste de suma importância social e regulatória em nossa sociedade, temos que a sensação de segurança no tecido social está direta e intrinsecamente ligada à prestação de serviços a serem realizados pelo Estado, haja vista que este possui, via de regra, o monopólio do uso da força.

E conforme fora vislumbrado no presente trabalho, o forte processo de modernização tecnológica ocasionado em nossa sociedade gerou uma lacuna na estrutura constitucional no tocante ao enfrentamento de ameaças virtuais a nossa integridade democrática. A nossa atual Constituição Federal não foi pensada para a atuação em Estado de Exceção em resposta a agressões cibernéticas, quer realizadas por outros estados, quer seja por agentes não estatais. Convém ainda mencionar que o desenvolvimento democrático em um Estado de Direito deverá deter forças de segurança com ação em sinergia com a ordem legal, que é, em última análise, a vontade social.

Em suma, temos que as guerras da quinta dimensão ou também denominadas de guerras do futuro ocorridas em meio ao ciberespaço serão híbridas, voláteis, combinando ações cinéticas e cibernéticas, assim impõe-se a modernização e a atualização do texto constitucional em face as mudanças na conjectura jurídica ocorrerem na medida em que a sociedade mutaciona-se, ou seja, o direito acompanha a evolução da sociedade, não sendo estático e nem absoluto e relaciona-se com o contexto social, político ou moral de uma sociedade. Partindo de tal premissa, é necessário uma alteração em nossa constituição visando resguardar a soberania nacional no plano territorial cibernético, com vistas a garantir o respeito ao modelo democrático de Estado e adequada à preservação dos direitos e garantias constitucionais e os direitos civis virtuais no plano do metaverso e ciberespaço, considerando-se a evolução tecnológica e social frente à nova era a ser trabalhada no direito moderno, e a compreensão dos impactos da tecnologia no processo jurídico constitutivo do direito pós-moderno e a sua disciplina jurídica a ser realizada em tempo hábil em meados a nova realidade social.

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Sobre o autor
Ítalo Miqueias da Silva Alves

Escritor, Pesquisador, Jurista e Palestrante. Graduado em Direito e Pós graduado em Direito Constitucional, Direito Processual Penal, Direito Processual Civil e Direito Digital. Especialista em Direito Civil, Direito Penal e Direito Administrativo. Escritor de diversas obras na seara jurídica e autor dos livros: Manual Da Prática Jurídica: Português Jurídico Da Prática Forense; Constituição Dos Estados Unidos Da América: Traduzida, Comentada e Interpretada; O Instituto da Tutela Provisória no Direito Processual Civil; Os Impactos da Inteligência Artificial no Processo Jurídico Constitutivo do Direito Pós Moderno.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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