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CAPÍTULO II- VISÃO LEGAL E JURISPRUDENCIAL SOBRE A PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA
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Princípios fundamentais norteadores do direito de família
Princípio da afetividade
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Caracterizado como criador das relações socioafetivas e comunhão de vida entre pessoas, o princípio da afetividade constitui um elemento agregador e inspirador da família, por meio do qual, os membros desse grupo podem viver em condução e estabilidade afetiva (CARVALHO, 2011).
Esse princípio é responsável por acrescentar às relações familiares o ponto de partida do afeto, considerando acima de outros pontos e contextos que é possível criar animus de família apesar do sentimento (LÔBO, 2012).
Apesar de complementares, é importante destacar que a afetividade não se confunde com o afeto, pois a afetividade pode existir em uma relação mesmo que não esteja presente o afeto, ou seja é necessário ter afetividade durante um desamor ou desafeição. (GOMES, 1984).
Princípio da Dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana é um dos princípios basilar do Estado Democrático de Direito, visto que é um dos fundamentos, e está previsto na Constituição Federal de 1988 no artigo 1°, inciso III, que assim dispõe:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
Guilherme Amorim Campos da Silva compreende o princípio da dignidade da pessoa humana como:
Direito fundamental integrante da categoria de direitos negativos ou de defesa, também denominados direitos individuais ou de liberdade. Proclama o valor distinto da pessoa humana e tem, como conseqüência lógica, a afirmação de Direitos específicos de cada ser humano, sem distinções de gênero, raça, cor, credo, sexo e outras. Objetivo e fundamento dos direitos humanos dá unidade ao sistema constitucional brasileiro (SILVA, 2007, p. 114).
Assim, este princípio é um conjunto de princípios e valores, que protege o indivíduo em sua dignidade, abrangendo esta proteção na integridade físico, moral e espiritual. Assegurando ao homem os seus direitos perante a sociedade e o poder público.
Posse do estado de filho
A posse do estado de filho significa o reconhecimento de tal maneira, seja por si mesmo, ou por terceiros. Entretanto, a principal característica desse instituto é a forma como a sociedade enxerga determinada relação afetiva (BARROS, 2022) .
Esse conceito de “posse do estado de filho” inclui os chamados filhos de criação, quando apesar de não existir vínculos biológicos, são considerados como tais e se comportam dessa mesma maneira (CARVALHO,2011).
Sobre esse tema, Rolf Madaleno ( 2000) dispõe que:
Os filhos são realmente conquistados pelo coração, obra de uma relação de afeto construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente demonstração de amor a pessoa gerada indiferente origem genética, pois importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho de adoção por afeição. Afeto para conferir tráfego de duas vias a realização e a felicidade da pessoa. Representa dividir conversas, repartir carinho, conquistas, esperanças e preocupações; mostrar caminhos, receber e fornecer informação. Significa iluminar com a chama do afeto que sempre aqueceu o coração de pais e filhos socioafetivos, o espaço reservado por Deus na alma e nos desígnios de cada mortal, de acolher como filho aquele que foi gerado dentro do seu coração (MADALENO, 2000).
Ao olhar do ilustre doutrinador Paulo Lôbo (2008), a posse do estado de filho necessita dos seguintes elementos:
pessoas que se comportam como pai e mãe e outra pessoa que se comporta como filho;
convivência familiar;
estabilidade do relacionamento;
afetividade.
Dentre esses requisitos o principal é o afeto, pois não é possível que seja construída a posse do estado de filho sem esse vínculo entre as partes (BARROS, 2022).
José Bernardo Ramos (1999), se posiciona da seguinte forma:
A posse de estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai (RAMOS, 1999).
Por fim, conclui-se que a posse do estado de filho está diretamente ligada aos tratamentos que o filho recebe dos pais afetivos, o nome aplicado entre essa família e o reconhecimento social dessa família (LÔBO, 2012).
Assim, resta evidente que a posse do estado de filho é uma construção social que influencia diretamente no espaço jurídico das relações familiares.
Provimentos 63/2017 e 83/2019 do Conselho Nacional de Justiça
Apesar dos avanços legislativos e sociais sobre o tema em discussão, a possibilidade do reconhecimento da parentalidade socio afetiva de forma extrajudicial surgiu somente em 2017, com o advento do provimento 63/2017 que introduziu essa possibilidade, para os membros desse tipo de construção familiar (PINTO, p. 48, 2022).
Com maestria, a autora Rayana Costa (2022, pág. 47) dispõe o seguinte sobre o provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça:
“Basta uma rápida leitura pelos “considerandos” do Provimento 63 para ter certeza de que ele é fruto do julgamento do RE 898.060/SC pelo Supremo Tribunal Federal. A construção do provimento está assentada nos seguintes fundamentos e princípios: dignidade da pessoa humana, direito à busca pela felicidade, afetividade, pluralismo das entidades familiares, solidariedade familiar, igualdade da filiação, paternidade responsável, melhor interesse da criança e do adolescente (PINTO, p. 47, 2022)”
O referido texto normativo conta com nove artigos introdutórios, que explicam e contextualizam as regras gerais para a aplicação de seu conteúdo.
A partir do art. 10 é que de fato são definidos novos padrões para o reconhecimento da parentalidade socioafetivo. A Seção II da norma começa definindo que o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade será autorizado perante os oficiais de registro civil de pessoas naturais. (Provimento 63).
O mesmo artigo desta norma preceitua que:
[...]
§1º O reconhecimento da paternidade ou maternidade será irrevogável, somente podendo ser desconsiderado pela via judicial, nas hipóteses de vício de vontade, fraude ou simulação.
§2º Poderão requerer o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva de filho os maiores de dezoito anos de idade, independente do estado civil.
§3º Não poderão reconhecer a paternidade ou maternidade socioafetiva os irmãos entre si nem os ascendentes.
§ 4º O pretenso pai ou mãe será pelo menos dezesseis anos mais velho que o filho a ser reconhecido. (Provimento 63).
Já o artigo 11 do provimento determinou a documentação necessária e estabeleceu o procedimento correto a ser seguido por aqueles que desejam registrar o vinculo socioafetivo em seus documentos pela via extrajudicial. O provimento determina que é necessária a verificação rigorosa da identidade dos envolvidos pelo cartório responsável (CARVALHO, p. 5. 2024).
Ainda, o art. 12, dispôs que:
Art. 12. Suspeitando de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida sobre a configuração do estado de posse de filho, o registrador fundamentará a recusa, não praticará o ato e encaminhará o pedido ao juiz competente nos termos da legislação local. (Provimento 63).
É nítido que o Provimento 63/2017 ofereceu uma boa solução para a obrigatoriedade de demandas judiciais para regularizar a situação dos parentes socioafetivos, trazendo a baila a possibilidade de soluções por meio da via administrativa.
Entretanto, apesar das modificativas e importantes alterações o Provimento não conseguiu alcançar todos os objetivos do legislador, bem como não supriu todas as necessidades sociais que envolviam a temática. Um dos maiores pontos de critica a cerca do provimento é que ele limitou a quantidade de pais no registro de filiação, sendo esse limite no máximo dois (DIAS, 2005).
Essa limitação encontrou respaldo no texto do art. 14 desta norma, in verbis:
Art. 14. O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais ou de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento. (Provimento 63).
Diante do exposto, resta nítido que apesar do grande avanço proporcionado pelo Provimento 63/2017 ainda eram necessárias mudanças para atender de forma ampla as necessidades sociais sobre o Tema, é por esse caminho que surge o Provimento 83/2019.
Rayana Costa, em sua obra “O reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva de acordo com o provimento 63 do CNJ e suas alterações” publicada em 2022, descreveu o surgimento do Provimento 83/2019 da seguinte maneira:
“Apesar das mudanças significativas geradas pelo provimento 63 do CNJ, surgiram correntes que defendiam desde a manutenção até a revogação por completo do Provimento. Então, com o intuito de esclarecer temas do Provimento 63, bem como atender a vários pleitos e pedidos que foram formulados por entidades distintas, foi publicado o Provimento 83, de 14 de agosto de 2019, da Corregedoria Nacional de Justiça (PINTO, pág. 51, 2022)
O Provimento 83 surgiu justamente para complementar e alterar alguns pontos do Provimento 63/2017, e implementou as seguintes mudanças, listadas por Rayana Costa (2022, p. 53) com base na obra de Flávio Tartuce (2019, p. 10):
• Apenas pessoas acima de 12 anos de idade poderão se valer do registro da filiação socioafetiva pela via extrajudicial (para menores desta idade resta apenas a via judicial);
• O vínculo socioafetivo deverá ser estável e estar exteriorizado socialmente; ou seja, o novo texto deixa claro que esta relação deve ser duradoura e pública;
• O registrador atestará a existência da afetividade de forma objetiva, por todos os meios em direito permitidos, inclusive pelo intermédio de documentos e outros elementos concretos que a possam demonstrar6; haverá a participação prévia do Ministério Público, diretamente na serventia extrajudicial; sendo que somente serão realizados registros que tiverem parecer favorável do MP (os casos com parecer contrário deverão se socorrer da via judicial);
• Somente é possível a inclusão de um ascendente socioafetivo pela via extrajudicial (seja do lado paterno ou materno); eventual pretensão de inclusão de um segundo ascendente socioafetivo só poderá ser apresentada na via judicial. (Tartuce 2019, p. 10).
Nota-se que, ambos os provimentos ressaltam os esforços do Conselho Nacional de Justiça para criar regras e estabelecer parâmetros para que as famílias contemporâneas sejam alcançadas e protegidas pela legislação (CASSETTARI, 2017).
Posicionamento jurisprudencial sobre o tema
Além das legislações e provimentos que versam sobre a parentalidade socioafetiva, é importante salientar o posicionamento jurisprudencial sobre o tema.
As decisões do Superior Tribunal de Justiça têm decido pelo acolhimento da filiação socioafetiva em Ações de investigação de paternidade ou maternidade (CARVALHO, p. 18).
Em seu voto em decisão sobre o reconhecimento da prevalência da maternidade socioafetiva sobre a biológica, a Ministra Nancy Andrighi, dispôs que:
A filiação socioafetiva, que encontra alicerce no art. 227, 6º da CF/88, envolve não apenas a adoção, como também ‘parentescos de outra origem’, conforme introduzido pelo art. 1.593 do CC/02, além daqueles decorrentes da consanguinidade oriunda da ordem natural, de modo a contemplar a socioafetividade surgida como elemento de ordem cultural. Assim, ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. (...) Como fundamento maior a consolidar a acolhida da filiação socioafetiva no sistema jurídico vigente, exige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano (STJ. 3ª Turma. REsp. 1000356-SP. Relª. Min. Nancy Andrighi. J. 25.05.2010)
No mesmo sentido, tem sido as decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerias, observa-se a fundamentação apresentada pelo Desembargador Elias Camilo:
“O contido no art. 1593 permite, sem dúvida, a construção da paternidade socioafetiva ao referir-se a diversas origens de parentesco. Dele se infere que o parentesco pode derivar do laço de sangue, do vínculo adotivo ou de outra origem, como prevê expressamente. Não sendo a paternidade fundada na consanguinidade ou no parentesco civil, o legislador se referiu, por certo, à relação socioafetiva. É possível, então, agora, à luz dessa hermenêutica construtiva do Código Civil, sustentar que há, também, um nascimento socioafetivo, suscetível de fundar um assento e respectiva certidão de nascimento. Mesmo no reducionismo desatualizado do novo Código é possível garimpar tal horizonte, que pode frutificar por meio de uma hermenêutica construtiva, sistemática e principiológica. (Boletim do Instituto Brasileiro de Direito de Família, nº 19, mar/abr, 2003, p. 3)”.
Outros Tribunais, como o Tribunal de Justiça do Distrito Federal também vem proferindo decisões semelhantes, destaca-se:
RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. MODIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. PATERNIDADE BIOLÓGICA. DNA. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE DA PATERNIDADE BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA. 1. A paternidade não pode ser vista apenas sob enfoque biológico, pois é relevante o aspecto socioafetivo da relação tida entre pai e filha. 2. As provas dos autos demonstram que o apelante estabeleceu forte vínculo com a menor, tanto que, com o divórcio dos genitores, a guarda e o lar de referência é o paterno. 3. A tese de multiparentalidade foi julgada pelo STF em sede de repercussão geral e decidiu que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseado na origem biológica com os efeitos jurídicos próprios.4. Ante a existência dos dois vínculos paterno-filiais, que não podem ser desconstituídos, a orientação que melhor atende aos interesses das partes, notadamente o da menor, é o reconhecimento de ambos os vínculos paternos: o biológico e o socioafetivo, com as devidas anotações no seu registro civil. 5. Recurso conhecido e desprovido.( 20160210014256APC, Relatora: MARIA DE LOURDES ABREU, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 16/11/2017, publicado no DJe: 13/12/2017.)
Assim, com base na análise jurisprudencial, é notório que o reconhecimento das famílias socioafetivas além de presente no cotidiano social, também faz partes das decisões jurisprudenciais dos Tribunais Nacionais e encontra respaldo na legislação vigente.