As cicatrizes deixadas pelo golpe militar de 1964 ainda marcam profundamente a sociedade brasileira. Durante 21 anos, o Brasil viveu sob um regime autoritário que sufocou liberdades, silenciou vozes dissidentes e mergulhou o país em um longo período de instabilidade política.
A redemocratização, conquistada com grande esforço, não apenas resgatou a soberania popular como reforçou os pilares de um Estado que se compromete com os direitos e garantias fundamentais.
No entanto, eventos recentes, como o plano de assassinato de líderes nacionais revelado em novembro de 2024, nos fazem questionar se essas lições do passado foram devidamente assimiladas.
Esse novo episódio, que inclui um plano para eliminar fisicamente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, ecoa perigosamente o contexto de polarização e desprezo pelas instituições democráticas que precedeu o golpe de 1964.
Assim como naquela época, forças políticas e militares são suspeitas de participar de articulações que atentam contra a ordem constitucional.
Uma Breve Reminiscência Histórica
O golpe de 1964 teve como justificativa oficial a necessidade de combater uma suposta ameaça comunista e estabilizar o país, mas na prática inaugurou uma ditadura que restringiu direitos civis e políticos, instituiu a censura e utilizou-se de violência estatal para reprimir opositores.
As instituições democráticas foram desmanteladas, o Congresso Nacional foi fechado, e a presidência passou a ser ocupada por militares em um sistema de escolha indireta.
“Um dos principais legados negativos do regime militar é o enfraquecimento das instituições e o prolongamento de uma cultura de autoritarismo político,” analisa José Murilo de Carvalho, em sua obra Cidadania no Brasil.
Com a Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã, o Brasil deu um passo firme em direção à democracia, mas episódios como a tentativa de golpe de 2023 e o plano revelado em 2024 demonstram que a luta pela preservação do Estado Democrático de Direito é contínua.
O Plano de Assassinato e os Crimes Identificados
A revelação do plano para assassinar líderes das esferas Executiva e Judiciária expõe não apenas a fragilidade das instituições, mas também a ousadia de grupos que visam subverter a democracia.
Dentre os crimes tipificados, destacam-se:
1. Homicídio Qualificado
A tentativa de execução física de autoridades é punível com reclusão de 12 a 30 anos, agravada pelas qualificadoras de premeditação e motivo torpe. Como ensina Fernando Capez:
“A qualificadora por motivo torpe ocorre quando a motivação do crime é marcada por desprezo às normas sociais básicas, evidenciando uma conduta de extrema gravidade.” (Curso de Direito Penal – Parte Especial).
2. Organização Criminosa
A articulação hierarquizada e com divisão de tarefas, como as investigações indicaram, é punida pela Lei nº 12.850/2013, com penas de 3 a 8 anos, além das aplicáveis aos crimes praticados.
3. Atentado Contra a Segurança Nacional e Golpe de Estado
O plano se encaixa na Lei de Segurança Nacional, ainda em vigor para crimes que atentam contra a ordem política, e no Art. 359-M do Código Penal, introduzido pela Lei nº 14.197/2021, que prevê penas de 4 a 12 anos para tentativas de golpe.
As Evidências e a Conexão com Lideranças Políticas
Segundo a Polícia Federal, o plano, intitulado “Punhal Verde e Amarelo”, incluía monitoramento das rotinas das vítimas e discussões sobre métodos de execução, como uso de explosivos e envenenamento. Reuniões ocorreram em locais associados a figuras como Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa, gerando suspeitas sobre seu envolvimento.
A proximidade de Jair Bolsonaro com alguns dos suspeitos também levanta questões.
“A neutralização de lideranças democráticas sempre foi o prelúdio de regimes autoritários. O Brasil não pode ignorar esses sinais,” alerta Oscar Vilhena Vieira, em artigo publicado no Estado de Direito em Crise.
As Consequências e os Riscos Políticos
Bolsonaro e Braga Netto: Envolvimento e Riscos Jurídicos
Apesar de Jair Bolsonaro e Walter Braga Netto não terem sido formalmente implicados no caso, o contexto histórico e político em que atuaram, frequentemente caracterizado por ataques às instituições democráticas e à imprensa, levanta suspeitas sobre um possível envolvimento direto ou indireto.
As declarações de ambos e a atuação durante seus mandatos colocam em pauta questionamentos sobre suas responsabilidades na disseminação de discursos e ações que podem ter alimentado ou incentivado movimentos antidemocráticos.
Se as investigações apresentarem evidências concretas, ambos poderão ser acusados por crimes como:
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Incitação ao Crime (Art. 286, Código Penal): Se for comprovado que discursos ou ações públicas de Bolsonaro ou Braga Netto encorajaram direta ou indiretamente a prática dos atos.
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Associação Criminosa (Art. 288, Código Penal): Caso seja identificado que contribuíram, mesmo sem participação direta, para a articulação do grupo responsável pelo plano.
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Participação em Tentativa de Golpe de Estado (Art. 359-M, Código Penal): Configurada se houver indícios de colaboração na elaboração de estratégias para subverter o regime democrático.
Como bem destaca Guilherme Nucci:
“A apuração de crimes envolvendo figuras públicas exige rigor técnico e imparcialidade, mas também coragem para responsabilizar agentes poderosos que atuam contra a ordem constitucional.” (Manual de Direito Penal).
Esse cenário reforça a importância de uma investigação meticulosa e imparcial, considerando o impacto político e social das decisões judiciais em casos de alta relevância.
Efetividade da Justiça
Historicamente, a responsabilização de figuras políticas de alto escalão no Brasil enfrenta diversos entraves, como pressões institucionais, resistência corporativa e polarização social.
Apesar da operação da Polícia Federal ser um marco na investigação de crimes contra a democracia, sua efetividade dependerá de:
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Independência do Judiciário: É essencial que o Poder Judiciário atue livre de influências externas e priorize a aplicação imparcial da lei.
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Pressão Social: A opinião pública desempenha um papel relevante em assegurar que as investigações sejam conduzidas de maneira transparente e que as decisões finais reflitam o compromisso com a justiça.
Como ensina Luiz Flávio Gomes:
“O Direito Penal de um Estado Democrático de Direito deve funcionar não como ferramenta de vingança, mas como instrumento de equilíbrio social e respeito às garantias fundamentais.”
Impacto na Democracia
A eventual prisão de figuras de alta relevância política, como Jair Bolsonaro ou Walter Braga Netto, seria um divisor de águas na história recente do Brasil.
Tal medida enviaria uma mensagem clara de que o Estado de Direito se sobrepõe a interesses individuais, consolidando a confiança nas instituições democráticas e demonstrando que a lei é aplicada a todos, independentemente de sua posição ou influência.
Fortalecimento Institucional
Prender lideranças políticas envolvidas em crimes graves, como conspiração contra a democracia, reforçaria a independência do Poder Judiciário e a capacidade das instituições de punir ações que ameacem a ordem constitucional. Essa postura poderia fortalecer a credibilidade do sistema jurídico brasileiro, alinhando-o às práticas de democracias maduras.
C omo afirma José Afonso da Silva:
“O fortalecimento do Estado Democrático de Direito requer não apenas a aplicação imparcial da lei, mas também a demonstração de que nenhuma autoridade está acima do ordenamento jurídico.” (Curso de Direito Constitucional Positivo).
O Risco da Instabilidade Social
Por outro lado, a prisão de figuras como Bolsonaro ou Braga Netto poderia alimentar narrativas de perseguição política, amplamente utilizadas por líderes populistas para mobilizar suas bases de apoio. A polarização existente no Brasil sugere que tais ações poderiam desencadear protestos em larga escala ou movimentos desestabilizadores.
A construção de uma narrativa de vitimização é uma estratégia política eficaz para questionar a legitimidade das instituições.
Como apontado por Oscar Vilhena Vieira, em suas reflexões sobre regimes democráticos:
“A fragilidade das democracias contemporâneas reside em sua dificuldade de conter lideranças que usam as próprias liberdades do regime democrático para enfraquecê-lo.” (Estado de Direito em Crise).
Desafios para o Judiciário
O Judiciário enfrentará um delicado equilíbrio entre aplicar a lei de forma rigorosa e evitar interpretações que possam ser vistas como politização do processo penal. Decisões dessa magnitude exigem fundamentações robustas e transparência absoluta para mitigar riscos de questionamentos sobre sua legitimidade.
Como enfatiza Luiz Flávio Gomes:
“A imparcialidade e a tecnicidade do Judiciário são os pilares que sustentam a credibilidade de suas decisões, especialmente em casos de grande repercussão.”
Impactos de Longo Prazo
Se conduzidas de forma transparente e técnica, essas ações podem ter impactos positivos duradouros. Elas fortaleceriam as instituições brasileiras e enviariam um recado claro: o Brasil não tolera ameaças à democracia, independentemente da posição de poder dos envolvidos.
Contudo, o sucesso dessa estratégia depende da coesão entre os poderes e da percepção pública de que as investigações e decisões são justas.
Conclusão
Eventual prisão de figuras políticas como Bolsonaro ou Braga Netto é uma possibilidade que carrega tanto promessas de fortalecimento institucional quanto riscos de polarização social.
A gestão desse processo pelo Judiciário e pelas forças de segurança será determinante para garantir a preservação da estabilidade democrática no Brasil.
Como alerta José Afonso da Silva:
“A estabilidade democrática não é apenas um objetivo jurídico, mas um compromisso político e social que exige maturidade institucional.”
Aos olhos da história, o desfecho desse episódio será decisivo para consolidar ou fragilizar a jovem democracia brasileira.
A revelação do plano para assassinar lideranças brasileiras é mais do que um caso criminal; é um alerta sobre os riscos que o país ainda enfrenta em consolidar sua democracia.
O peso das cicatrizes deixadas pela ditadura militar e pela instabilidade política exige que as instituições atuem com firmeza e transparência, punindo os responsáveis e blindando o Brasil contra retrocessos.
Como afirmou o ministro Luís Roberto Barroso:
“A democracia é construída dia após dia, e sua defesa depende da coragem das instituições e da vigilância da sociedade.” (G1)
Referências
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